Mais África no computador

por Carlos Nader
Trip #184

A informática usa pouco as potencialidades do corpo humano; falta ginga à cibernética

A informática ainda usa pouco as potencialidades do corpo humano. faltam ginga e malemolência à cibernética

Antes de se transformar num catálogo tendencioso de consumo tecnológico travestido de revista de tendências tecnoculturais, a Wired catalisou as ideias de uma geração de pioneiros do ciberespaço. Isso foi nos anos 90. Entre as seções mais interessantes da época havia uma coluna especial, chamada justamente Idées Fortes, assim mesmo, em francês, que eu esperava avidamente para ler, mês a mês.

Lembro que um dos textos que mais me marcaram foi assinado pelo Jaron Larnier, um programador rastafári que clamava por “mais África no computador”. A África em questão era metafórica, sinônimo de um uso do corpo mais livre e integral. O colunista lembrava que o computador é uma invenção coletiva de um grupo de nerds norte-ocidentais, essa gente bem pouco bronzeada que tem seu valor, mas que não tem quase nenhuma relação com o próprio corpo e menos ainda com o corpo dos outros. Para Larnier, a falta de ginga da turma do Vale do Silício teve um impacto fundador no manejo frio e cerebral de hardwares e softwares.

Não é surpresa então que até hoje a nossa principal interface física com a tecnologia da informação seja a ponta dos dedos. Ainda somos digitais através das digitais. Bom, é verdade, quase todos os adultos sabem, que é possível fazer algumas coisas esfuziantemente físicas com a pontinha de um dedo, em qualquer área. E é verdade também que nesses últimos anos até houve algum progresso na “africanização” da informática, mas ainda me pergunto bastante: por que é que ainda não mergulhamos de corpo inteiro na virtualidade tecnológica?

Guerreiros autômatos
Os anos de maturação da TI trouxeram novidades como por exemplo o Nintendo Wii e alguns outros gadgets mais malemolentes, de uso civil ou militar, médico ou esportivo, científico ou sexual, que transcendem a ponta do dedo. Eles são exceção. O fato é que ainda há hoje tanto de África na tecnologia quanto há de tecnologia no continente africano. Ou seja, relativamente pouco. O corpo humano ainda não invadiu a cibernética.

A novidade é que é a cibernética que está invadindo o corpo humano. A invasão tecnológica, como sempre, começa pelos campos militar e médico para depois se estender para os outros. Já há microcâmeras percorrendo as entranhas de pacientes em grandes hospitais do mundo inteiro. Marcapassos cerebrais são implantados com frequência. Operações robotizadas não assustam mais ninguém. O que assusta, mas está a pleno vapor no hemisfério norte, é a corrida pela construção de nanoarmas e guerreiros autômatos ou semiautômatos.

Nas próximas décadas, o implante de metal eletrificado na carne humana vai virar carne de vaca. Chips, próteses eletrônicas, monitoramento audiovisual etc. A fronteira física entre corpo e máquina tomará contornos novos. O conceito de mestiçagem adquirirá novos significados. Não tão novos assim porque, mesmo ainda não fisicamente invadidos, já somos em parte máquina no que diz respeito à nossa atividade mental. O cérebro contemporâneo é dividido em várias partes, entre elas o hipocampo, o lobo frontal e o Google.

Como toda a revolução tecnológica, esta que vai colonizar o nosso corpo não é intrinsecamente boa nem má, desde que o debate ético se mantenha aberto e sempre norteado pela manutenção da liberdade. Nesse sentido, é preciso garantir que a tecnologia, que nunca conseguiu incorporar totalmente a África em sua estrutura, não acabe também por eliminar o que ainda resta de África, em diferentes graus, nos corpos que vivem em todos os continentes.

*CARLOS NADER, 43, é diretor do documentário Pan-cinema permanente. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com

 

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