Maconha artesanal

por Guilherme Russo

Mesmo distante da legalização, a economia e o ativismo ligados ao autocultivo já aquecem os negócios ligados à cultura canábica

Os cultivadores de maconha já são milhares no Brasil. Somente em São Paulo, as oito principais lojas que fornecem insumos aos jardineiros secretos no país já contam mais de dez mil clientes, em pessoa e online. Nesse verdejante e promissor universo, autocultivo da erva, negócios e ativismo pela legalização da Cannabis para uso medicinal e recreativo se entrelaçam sem caretice. A experiência norte-americana evidencia o óbvio: a maconha medicinal é sim um canal para fomentar a aceitação social e a legalização da erva; e a economia trilhardária que envolve a regulamentação desse mercado é a justificativa mais convincente para as boas-vindas definitivas à Cannabis a qualquer lugar no capitalismo.

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Margarete Brito, 45 anos, presidente da associação Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), foi a primeira pessoa do Brasil a receber autorização para cultivar Cannabis legalmente, na forma de um habeas corpus preventivo emitido pela Justiça do Rio de Janeiro em 17 de novembro de 2016. Mas ela já cultivava desde fevereiro.

Margarete se iniciou no ativismo canábico em setembro de 2013, ao saber que as convulsões que sua filha Sofia tinha em razão da síndrome genética rara de que sofre (CDKL5) podem ser parcialmente controladas pelo Canabidiol (CBD), princípio ativo da maconha que causa mais relaxamento — em vez da chapação mais eufórica do Tetraidrocanabinol (THC).

Ao entrar em contato com uma fabricante de extrato de Cannabis dos Estados Unidos, a ativista obteve uma amostra grátis de óleo rico em CBD, que chegou pelo correio e durou 40 dias. Animada com os bons resultados com sua filha, Margarete espalhou a notícia para várias outras mães desesperadas e começou seu trabalho pela regulamentação da produção e do uso de maconha medicinal.

Quando seu remédio acabou, Sofia, hoje com 8 anos, foi salva por um grupo de cultivadores que passou a fornecer o extrato erval que ela precisa para melhorar sua qualidade de vida. “Há um efeito milagroso para uns e satisfatório para outros. Com a Sofia, há um controle parcial das crises”, afirmou a mãe, rejeitando os rótulos “apelativos” frequentemente associados às iniciativas favoráveis à maconha medicinal.

Com mais de 300 associados, a Apepi advoga pela regulamentação da produção e do uso de Cannabis medicinal no Brasil, além de mobilizar e articular apoios à pesquisa com a erva no país. Em sua homepage, a associação fornece um passo a passo de como obter a prescrição médica necessária para importar extrato de maconha e lista profissionais de saúde que podem prescrever o medicamento. Porém, importar esse óleo, legal ou ilegalmente, é muito caro. Além de burocrático pelas vias legais e arriscado pelas vias ilegais.

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A solução é plantar. E a Apepi ensina como, por meio de um manual de cultivo que pode ser baixado de seu site. Outra fonte confiável para obter um guia para cultivar maconha é a página do Growroom, fórum online de discussão sobre cultivo de Cannabis que reúne atualmente mais de 93 mil usuários — informações atualizadas e de qualidade sobre o mundo canábico são publicadas assiduamente no site do Growroom, entidade que advoga pela regulamentação do uso, da produção e do mercado canábico no Brasil, a exemplo do que ocorreu no Uruguai de José Mujica.

Dedo verde

O norte-americano Jorge Cervantes é considerado o mestre supremo do cultivo de Cannabis. O “senhor dedo verde” publica desde 1983 guias de cultivo na forma de livros, colunas, vídeos e artigos. Sua “bíblia” e sua “enciclopédia” são usadas em faculdades de Cannabis (existem ao menos seis atualmente, online e nos EUA), mas ainda não foram traduzidas ao português — pelo menos não oficialmente, dando os créditos devidos ao autor.

O criador do Growroom, William Lantelme Filho, 41 anos, já contou à Trip a sua história. Hoje, a principal campanha de sua entidade é para que cada vez mais gente plante maconha abertamente. “O que vai fazer a mudança é as pessoas cultivarem mesmo e saírem do armário. Isso que vai fazer as coisas mudarem, uma mudança de comportamento”, afirma William. Juntamente com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, o Growroom tem feito o lobby verde no Congresso e na Justiça.

O advogado Emílio Figueiredo, consultor jurídico do Growroom e integrante da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, informou que a Justiça brasileira emitiu apenas sete habeas corpus para permitir o cultivo de Cannabis medicinal. Na Paraíba, a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) conseguiu autorização para plantar maconha para a fabricação de óleo medicinal de Cannabis, que é fornecido para seus 151 membros.

A saga do cultivo

Plantar maconha não é tão simples. Mesmo com sua autorização de cultivo, Margarete, que já manteve 12 pés, hoje tem apenas três. “Mudei de casa e tive problemas de temperatura (alta demais) no espaço novo. Não é fácil cultivar...”, contou a moradora do Rio de Janeiro, contrariando a visão de muitos ativistas. “É fácil sim! Ela podia se esforçar um pouquinho mais...”, revoltou-se William, que vive em São Paulo, ao ser informado da opinião da colega de ativismo.

Fato é que em lugares onde as temperaturas ultrapassam frequentemente os 35C, 40C, o cultivo pode ser bem difícil mesmo — ainda mais se o cultivador optar por plantar Cannabis com altos índices de CBD e THC, pois essas cepas são produzidas principalmente nos EUA, no Canadá e na Europa, feitas para prosperar em zonas temperadas. 

Conseguir boas sementes pode se tornar o maior problema do cultivador. É possível comprar em lojas estrangeiras, mas pode ser que a encomenda não chegue — e nem todas as lojas ressarcem esse tipo de perda. Meses depois de encomendar sementes, muitos cultivadores são chamados pela Polícia Federal para se explicar. O Growroom mantém uma rede de advogados ativistas que oferecem gratuitamente assistência jurídica especializada para cultivadores que tiverem problemas com as autoridades; o contato deve ser feito pelo e-mail sos@growroom.net. E há mais entidades que atuam dessa maneira.

Cooperativismo canábico

O ativista Sérgio Delvair Costa, 53 anos, conhecido como “THC Procê”, pagou cinco meses de cadeia entre junho e dezembro de 2016. Foi preso em sua casa em Brasília com 80 pés de maconha e 2 mil sementes, enquadrado como traficante. A promotoria pede 10 anos de prisão. Atualmente, ele aguarda o julgamento em liberdade.

Sérgio contou que começou a cultivar maconha em 1988, quando fez um experimento na fazenda de sua família, em Goiás. “Mas o caseiro viu, meu pai descobriu as plantas (três) e mandou acabar com elas. Comecei a plantar porque queria me livrar do tráfico. E vi que era possível.”

Técnico em segurança, Sérgio manjava bastante de agricultura porque seu pai tinha uma loja de adubo. Nunca tirou da cabeça a ideia de plantar Cannabis. Em 2000, resolveu comprar sementes de uma loja canadense. “E fui aprendendo a cultivar.”

Por inspiração divina, disse, em 2008 decidiu montar um canal no YouTube chamado THC Procê, sob o lema “plantar para não comprar”, mostrando as plantas que mantinha. “No dia seguinte, tinha 500 visualizações e muitos elogios. Comecei a fazer mais vídeos e fui tomando gosto”, contou. Atualmente, seu canal tem quase 52 mil inscritos e seus vídeos, mais de 4,2 milhões de visualizações. Sérgio ensinou tudo o que sabe sobre cultivo de maconha nos mais de 570 vídeos que já gravou — e passou a ser conhecido pelo nome do canal.

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THC Procê contou que aprendeu a produzir sementes de Cannabis e, em 2011, criou uma cooperativa de cultivadores para enviar sementes de maconha aos sócios gratuitamente. Sérgio estima que tenha distribuído – grátis – cerca de 20 mil sementes da erva a cultivadores de todo o Brasil até 2015. Sua cooperativa juntou 1,6 mil associados. “Eu pagava até o envio.”

Porém, THC Procê lembrou que várias matrizes que importava tinham ficado pelo caminho e, em novembro daquele ano, ele levantou R$ 15 mil com os cooperados e viajou para o Reino Unido, em janeiro de 2016, com a missão de comprar mil sementes.

Sérgio relatou que foi muito bem recebido no exterior — e, ao chegar na loja de sementes, falou de seu ativismo canábico ao dono do estabelecimento, que, compadecido, doou 3 mil sementes à causa. THC Procê disse que voltou para o Brasil com 4 mil sementes, entregou as mil já prometidas aos cooperados e começou a distribuir as outras 3 mil sugerindo a doação de R$ 35.

Quebrando tudo

A operação para rodar Sérgio teve até helicóptero, recordou o ativista, definindo a ação como “cinematográfica”. “Entraram quebrando tudo.” Três dos policiais que participaram da batida mandaram a resposta do estado brasileiro aos cultivadores cooperados em tom de ameaça, num vídeo postado no canal de THC Procê: “Temos o endereço de cada um dos senhores. Vamos bater nas casas dos senhores (...). Os senhores vão responder por tráfico de drogas e associação para o tráfico. (...) O THC (Procê) tentava usar de artifícios para corromper nossas crianças, para corromper nossas famílias. Somos contra isso”, diz um policial. Para quem gosta de tragédia, vale uma risada com o vídeo abaixo. O advogado Emílio Figueiredo informou que nenhum cooperado foi processado.   

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Atualmente, Sérgio finaliza um livro sobre o período que passou na cadeia e está organizando uma entidade para representar plantadores de maconha, a Associação dos Cultivadores de Cannabis Medicinal do Brasil.

Maconha não é mais tabu. Pelo menos quatro campeonatos de Cannabis já ocorreram no Brasil, premiando as melhores cepas de Cannabis e as melhores extrações (haxixes). Enquanto isso, a tresloucada Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda aposta na demonização da erva. Em seu último parecer sobre o assunto, seus técnicos ressaltaram que seu uso “crônico” pode levar a síndrome de abstinência comparável à da heroína.

Organizado em São Paulo pela segunda vez este ano, o festival Ganja Talks promove a discussão sobre o universo canábico por meio de palestras. Este ano, o evento teve como foco principal o mercado criado pela regulamentação da erva.

Pouco antes do início do festival, na manhã de 29 de julho, um sábado de sol, o empresário João Paulo Costa, 33 anos, um dos organizadores, avisava aos seguranças que os frequentadores fumariam maconha, orientando os agentes a não incomodar ninguém por causa disso. Cena linda de se ver.

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