por Luiz Alberto Mendes

”Para poder viver a minha vida aqui fora [da prisão] sem mergulhar na revolta, na vingança, na tristeza paralisante, tive que perdoar tudo. Sim, perdoar.”

Tive que perdoar e muito. Tudo e o tempo todo. Várias vezes adentrei em penitenciárias e reconheci guardas que haviam me sacrificado. Certa vez encontrei um que me quebrou o braço com uma barra de ferro por puro prazer. Alguns me espancaram com canos de ferro de largar no chão quebrado e sem forças sequer para levantar. Quase todas as vezes que a PM adentrava a prisão, eu apanhava bastante. Muitas vezes fui tão espancado que precisava uma semana para me recuperar. E isso vem desde que eu era menor de idade. No Juizado de Menores (hoje Fundação Casa), por duas vezes fiquei tomando caldo com canudinho por mais de semana porque a boca estava toda inchada e cortada por dentro de tanto socos. No DEIC então, passei três meses e meio sendo torturado quase que diariamente no pau de arara, pau de afogamento, pau de estrada, tomando choque nos órgãos genitais. As unhas de meus dedões nascem encravadas porque os policiais quebraram a cacetadas. Minha cabeça parece o mapa do inferno de tantas rachaduras e costuras. Tenho hemorróidas de tanto choque que levei no anus. Vivo neuroses terríveis; há acontecimentos que não consigo lembrar sem me desesperar e passar dias deprimido, sem conseguir conversar com ninguém. Muitas vezes acordo de pesadelos chorando, certo de ainda estar preso nas mãos dos torturadores.

Passei por tantos horrores que nem sei como estou vivo. Estou cheio de doenças, parece a música do Titãs: pneumonia, pressão arterial, asma, úlcera duodenal, taquicardia, meio surdo, enxergando só de uma vista... E tudo isso é oriundo dos espancamentos e das torturas.

Um dos motivos de fugir de casa aos 12 anos e viver na rua desde então por minha conta, é que meu pai já me espancava muito, quase que diariamente. Para poder viver a minha vida aqui fora sem mergulhar na revolta, na vingança, na tristeza paralisante, tive que perdoar tudo. Sim, perdoar.

Hoje, depois de 12 anos aqui fora, eu os encontro na rua, nas portas das cadeias em que vou com meus projetos educacionais/culturais a fim de empoderar, de ajudar meus ex-companheiros a construírem uma capacidade de autocrítica e perdoar. E os guardas ainda me perseguem, não acreditam em meus objetivos e muito menos em minha recuperação social. Em vez de pedirem o número de minha identidade, pedem o número de minha matrícula na prisão. Olham-me com ódio, ressentidos. Tentam humilhar e dizer, desse modo, que para eles não passo de um presidiário. Eu me esforço para compreendê-los. São pessoas amargas, feridas e frustradas em suas vidas. Quando me vêm publicando livros em editoras de peso, escrevendo para revistas, jornais, sendo entrevistado em rádio, jornais, revistas e TV, e até respeitado por autoridades que mandam neles, deve doer. E eu tenho pena. São vidas que se perdem no ódio, sem sentido, sem um rumo objetivo e que vão envelhecendo com aquelas enormes chaves nas mãos. Sinto que deve machucar fundo, ao ponto de me causarem profunda compaixão.

Já venho sentido essa compaixão de há muito, mas ao assistir os filmes sobre Mandela, se consolida uma vontade enorme de perdoá-los. Não tenho mais tempo ou cabeça para odiar ninguém. Estou muito velho para tais arrebatamentos apaixonados. Com Mandela, pude compreender que perdão liberta nossa alma, afasta o mal, por isso é a mais poderosa das armas que possui um ser humano. A reconciliação com os outros, o desejo de respeitar, compreender e até abraçar, dá sentido à nossa humanidade. Odiar, mal querer, vingar qualquer menino sabe fazer, parece que é uma segunda natureza humana. O desafio maior que a vida nos propõe é amar nossos inimigos, fazer o bem àqueles que nos odeiam. Isso é ultrapassagem, uma tarefa de homens.

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