Culturas aprisionadas

São tantas as inteligências e as capacidades jogadas fora na prisão. Não as temos em profusão para que possamos desperdiçar potencial assim

Darwin afirma que, se, em meio a centenas ou milhares de galinhas, aparecer alguma com o bico mais forte que as outras e que melhor a habilite no esforço pela alimentação, essa terá tal mutação preservada em sua descendência. Mais forte e saudável, estará mais capacitada a ultrapassar todos os obstáculos que surgirem à sua frente na luta pela sobrevivência.

Em meio a cerca de 240 mil homens aprisionados somente no estado de São Paulo, pergunto-me: quantos têm a mente mais refinada, reflexiva, o bico mais forte que os outros e são mais inteligentes que a maioria? Grandes clássicos da literatura, a começar por Os Lusíadas, de Camões, Dom Quixote, de Cervantes e De profundis, de Oscar Wilde, foram concebidos enquanto seus autores estavam presos. Alguns dos maiores líderes, artistas e até religiosos da humanidade já estiveram presos. Não se pode negar o fato, por exemplo, de que o PCC é uma realização de pessoas muito espertas e inteligentes. Da mente de pessoas aprisionadas foi criada uma estrutura tão forte que deu base a uma organização criminosa poderosa. Tem, sob seu comando, um exército de milhares de iniciados e simpatizantes que dão a vida pela bandeira que defendem.

Faz parte da condição humana criar cultura onde quer que o bicho-homem seja encontrável. A prisão, esse espaço potencial de dor, é um ambiente cultural perfeito para a proliferação desse “vírus”. Quando essa cultura alça voos e transpõe as muralhas da prisão, as favelas, os morros, os bairros pobres e afastados dos grandes centros tornam-se presas fáceis. A pobreza, a falta de emprego, de saúde, de estudo e de cultura são pratos requentados do homem empobrecido. Em um ambiente assim fragilizado, onde falta tudo e não sobra nada, a cultura do crime vem junto com o dinheiro das drogas. Os jovens, cuja capacidade crítica ainda não está completamente formada, são imediatamente cooptados.

Vigiar e punir

A essa juventude que reage fascinada pela aventura e pelo sonho de ser feliz imediatamente, o meu abraço. Sofri tudo isso, e, o pior, não adiantou aconselhar, por isso nem tento com os outros. Sei que não funciona. Só os que nascem com um bico mais forte sobrevivem. A esses a alimentação será farta, assim como as consequências. Eles, como eu no passado, já escolheram o caminho das pedras pontiagudas. É lamentável, mas a dor, a solidão e a loucura os aguardam logo ao virarem a esquina da primeira galeria. Parecem alegres, felizes, mas logo a vida os engolirá, deglutirá e depois vomitará em qualquer sarjeta.

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Imagine que horror deve ter sido e o trauma que deve ter ficado naqueles que presenciaram os recentes massacres de homens nas prisões do Norte e Nordeste do país. Aquelas imagens monstruosas farão morada obrigatória em suas almas até o fim de suas vidas. Será sempre uma dor a mais na existência. Homens tendo suas cabeças e corações arrancados brutalmente. Seres humanos tendo seus braços, pernas e outras partes separadas de seus corpos e os pedaços misturados em um carrinho de lixo. O IML de Manaus ainda retém corpos e pedaços de corpos por conta da impossibilidade de identificá-los.

São cerca de 500 mil seres humanos aprisionados no país todo. A riqueza de uma cidade, já dizia o escocês Adam Smith, pai da economia, provém de seus cidadãos. A educação e o respeito de um povo são sua cultura e sua maior riqueza. Penso no desperdício do potencial de tantas inteligências e capacidades, assim, jogadas fora, na prisão. Não as temos em profusão para que possamos ser assim perdulários.

Os filósofos atuais, agrupados na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, afirmaram, com todas as letras, que a esperança do mundo está nos “inempregáveis”, nos vagabundos, nos viciados, nas prostitutas e agora também nos drogados. Afirmaram que esses ainda se revoltaram, lutaram e rejeitaram a sociedade de consumo em que convivemos. Nasceram assim, parece que não foram “bafejados” pela atual onda “pós-modernizante”. Formulariam a “antítese” de Marx contestando a tese para que surja o melhor, o novo, a síntese.

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