por Luiz Alberto Mendes

”Enquanto houver um homem encarcerado minha alma há de chorar porque sei exatamente o que ele sofre”

Enquanto houver um homem encarcerado minha alma há de chorar porque sei exatamente o que ele sofre. Errar não é só humano; é fundamental para o desenvolvimento do ser humano. Ninguém acerta de primeira. Graciliano Ramos; Fernando Pessoa; Drummond; Saramago; Dostoiévski, Clarice Lispector, grandes escritores, primeiro aprenderam o abecedário. Darwin; Madame Curie; Skinner; Pasteur; Newton; para citar apenas alguns cientistas; todos eles já foram analfabetos, não nasceram sabendo falar, escrever e pensar. Assim como nós, pobres mortais, todos tiveram que aprender a ciência de colocar uma palavra na frente da outra e dar um sentido a ambas.

Eu já havia tomado uma decisão há cerca de uns 25 anos atrás. Ainda estava preso, mas eu seria um homem honesto. Mesmo preso e nunca no sentido social do termo. Mas, em termos éticos e morais:

Errar foi meu sucesso.
Sofrer, minha alegria, meu progresso.

Sempre fui um explicador que de tão minucioso e detalhista, acabava com a paciência dos outros. Não entendia porque as pessoas se aborreciam. Eu estudava e me esforçava muito para saber das coisas. Porque eles não se interessavam em receber o que eu entregava já sofrido, mastigado? Somente quando fui guindado à posição de ensinar é que fui descobrir. Eu já procedia com os outros como fora um professor e sequer percebia. Havia prazer em mim em corrigir e ensinar. Fazia isso com toda tranquilidade do mundo. Parecia mesmo que eu nascera para aquilo.

Consegui me vencer em múltiplas pequenas e grandes batalhas. Estou há quase 13 anos aqui fora, e tenho sido respeitado, lido e até homenageado , por incrível que possa parecer. Vivo uma vida de pobre. Não tenho nada, apenas um canto para encostar a cabeça que minha mãe me deixou. Mas estou em paz, vivendo de fazer o que gosto (escrever), tendo todo tempo que preciso (reclamo um pouco, mas faz parte).

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Daí, assim como um tiro no peito, aparece na tela de meu laptop a figura de vários homens decapitados. Olhei aquilo e chacoalhei a cabeça; não era possível! Que monstruosidade era aquela? E as cenas foram mostradas em sequência. Membros separados de corpos e corpos sem braços ou pernas. De repente, aparece um homem com a cabeça arrancada e o peito aberto por um corte profundo. A seguir, alguém sem rosto mostra uma cabeça numa mão e um coração na outra, ainda sangrando. E seguem outra cenas de corpos mutilados, queimados e amontoados dentro de um carrinho. Não demorou mais que dias para que as cenas se repetissem mais cruentas ainda. Um rapaz serrava o pescoço de um outro que parecia já morto, enquanto um outro segurava a cabeça para dar mais segurança no corte.

Até agora não sei como aquela desgraceira toda veio parar em minha pagina do Facebook por duas vezes. Aquilo me agrediu no mais recôndito de meu ser. Doía como se houvesse levado uma surra. Já vivi cenas assim monstruosas. Já haviam arrancado uma cabeça na minha frente e saíram chutando como bola, na quadra de futebol. Quando sai da prisão já havia quem ameaçasse separar as partes dos corpos de seus inimigos e vi vários lambendo o sangue da vítima, enquanto a estavam matando. Já se falava de algo tão monstruosamente coletivo, como aconteceu e esta acontecendo no Amazonas, Rondônia e Rio Grande do Norte. Havia "rupas" (matanças entre presos), em que vários companheiros eram mortos como porcos, com pedaços de ferro com ponta, quando não tinham o crânio esmagado.

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Tudo voltou à memória, automaticamente. Passei dias sem dormir, completamente perturbado com aquilo tudo. Passaram-se anos, mais de uma década que sai da prisão. Pensei haver escapado, mas não, não consegui, ainda estou preso a tais imagens. Elas me sacrificam. Sinto a insegurança de todos, preencho de imagens anteriores e posteriores as cenas que me forçaram a ver (não consegui tirar os olhos, hipnotizado). Quase sinto o desespero, o horror, daqueles que foram massacrados tão brutalmente. Como eu não queria ter vivido tudo o que vivenciei, como quero escapar de toda essa infelicidade...

Mas parece, meu espírito ainda anda preso junto a todo homem aprisionado. A dor deles também é minha, por mais que eu queira me livrar.

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