O esporte dos reis

por Redação

Desde as raízes do surf na Polinésia até seu desenvolvimento em um fenômeno comercial e cultural, o livro de Jim Heimann, “Surfing: 1778 – 2015”, é definitivamente um marco na literatura do esporte

“Ele se afastou da praia até o lugar onde as ondas começavam a se formar. Quando notava, sob o seu olhar extremamente cuidadoso, que a onda começava a se erguer, ele remava rapidamente à sua frente até o ponto em que ficava mais alta que ele, tendo força suficiente para fazer a sua canoa deslizar sem que ela escapasse por baixo dele. Agora, sentado e imóvel em sua canoa, era carregado juntamente com a onda até chegar à praia. Em seguida, descia da canoa, esvaziava a água e novamente se lançava ao mar à procura da próxima onda”.

Este registro no diário de bordo do navio Resolution, redigido em 1777 pelo médico da embarcação, William Anderson, é considerado o primeiro registro escrito sobre o surf. Sua experiência na costa do Havaí fora algo tão marcante que ele resume sua observação quase em tom poético. “Eu não pude deixar de notar que o homem sentia um prazer indescritível quando era carregado tão leve e suavemente pelo mar”. Na época em que o descobridor britânico James Cook ancorou na costa do Havaí, o surf era permitido somente aos reis e apenas durante as festas dedicadas ao deus Lono.

Quase dois séculos depois, Jim Heimann, criado no sul do estado da Califórnia, foi envolvido pelo mesmo encanto. Na adolescência, fascinado pela visão dos surfistas deslizando sobre as ondas, ele absorvia tudo que o esporte tinha para oferecer e mergulhou na cena surfista da costa oeste. “O surf é um esporte complexo e único. O seu desenvolvimento – desde a habilidade de se equilibrar sobre um pedaço de madeira na água e deslizar sobre uma onda até a comunidade internacional de hoje, contaminada pela rivalidade – passa por um labirinto de lugares, celebridades e emoções. O surf pode ser imprevisível e mortal, inofensivo e tempestuoso, estático ou gratificante. Não existe nada parecido no mundo dos esportes”, observa Heimann.

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Há décadas “infectado” com o vírus do surf, Heimann criou uma obra monumental que supera tudo o que já se viu na literatura do esporte. O livro “Surfing: 1778-2015”, com suas 600 páginas cheias de fotos impressionantes e emocionantes, descreve como o surf, a partir da Polinésia, conquistou o mundo tornando-se um instrumento de marketing e desenvolvendo sua própria indústria.

O que já foi esporte dos reis tornou-se um movimento com cerca de 20 milhões de surfistas ativos – um fenômeno cultural e comercial de alcance global. Enquanto o número de surfistas na Califórnia na década de 1960 girava em torno de 5 mil pessoas, o surf hoje é um ideal cheio de sonhos de liberdade e satisfação pessoal para as massas. O surf é conformação e rebelião, um pedaço da história da civilização que repousa sobre uma pequena prancha pontiaguda. 

O livro, que traça essa gigantesca narrativa de séculos, é dividido em cinco capítulos em que Heimann aborda as diferentes fases históricas do esporte sempre teve similaridades com o movimento hippie, marcado por buscas de sentido e resistência contra o sistema. “A minha vida inteira é esta fuga, esta onda em que eu me lanço”, constata Mickey Dora Da Cat, uma lenda da cultura surf. “Eu luto pela minha vida, cara, eu arrisco tudo, deixando para trás tudo o que me incomoda – políticos, religiosos, policiais e windsurfers. E, quando acabo de pegar uma onda, faço um arco, pego outra onda e começo toda essa maldita busca novamente”.

O vai-e-vem das correntes culturais nas diferentes décadas, como a influência de movimentos juvenis – que entendiam o surf como um ato de revolução – até a sensação de vida hedonista de toda uma geração de surfistas, é apresentado por Heimann de maneira única, com imagens fortes e textos sucintos e aprofundados. 

Descrições e entrevistas em primeira mão com lendas do surf, experts do ramo e renomados fotógrafos do esporte fazem do livro um marco histórico, oferecendo ao leitor um turbilhão de emoções. Segundo o autor, colocar no papel o fascínio e a emoção que faz a adrenalina saltar a níveis imensuráveis, que é o fator viciante do surf, é algo simplesmente impossível de ser feito. “A sensação que o surf traz é impossível de ser reproduzida em algo tão tangível e concreto como um livro. O surf traz uma satisfação que tanto surfistas como não surfistas sentem ao entrar em profunda conexão com a natureza quando, por exemplo, se reúnem em grupo na costa Rincón, remam cedo de manhã em busca de uma onda na Biarritz, atacam uma 'onda-monstro' em Teahupoo ou simplesmente, sentados na praia, apreciam as ondas quebrarem como num transe. A roupa, as pranchas, a música, os campeonatos, rivalidades e amizades são efeitos secundários – a grande protagonista ainda é a água”, explica Heimann.

Mesmo assim, o esporte não conseguiu escapar de ser marcado pela cultura pop. Especialmente nos dois últimos capítulos, o antropólogo californiano aborda a força sedutora da propaganda, da indústria da moda, do cinema e da música. Com base em imagens de outdoors, cartões postais, pôsteres de filmes, capas de revistas, peças de roupas e fotos de surfistas profissionais e amadores, ele descreve o sobe-e-desce do surf e consegue criar novos pontos de vista que surpreenderiam até mesmo surfistas veteranos. Outro tema do livro é a evolução da prancha, descrita desde a tábua de madeira até a prancha de espuma com revestimento de fibra – que já é uma história em si – como também as diversas correntes de estilo do surf que contribuíram para o desenvolvimento de modalidades e maneiras de surfar bem peculiares.

A tarefa mais desgastante para Heimann foi fazer a seleção das imagens de um arquivo com 7 mil fotos para um livro de 600 páginas. Uma experiência nada fácil, mas com um resultado extremamente atrativo. A obra de Heimann é considerada uma homenagem ilustrada ao surf, descrevendo o esporte como um meio termo entre romântico e moderno, como um estilo de vida mais perto da natureza e não conformista e, ao mesmo tempo, um esporte artificial e das massas.

O surf tem uma influência singular sobre a música, moda, estilo de vida e linguagem e incorpora esses e outros elementos da cultura popular de bom grado para promover o esporte.

“Conceber toda a história do surf em um único volume é absolutamente impossível”, escreve Heimann em seu prefácio. Contudo, o autor teve muito êxito em reconhecer e reparar várias lacunas deixadas por publicações passadas. Mais de 230 anos de história do surf resumidos em uma edição de luxo que representa uma obra de peso e não somente pelos seus sete quilos. Sejam amantes do surf ou apaixonados por praias e fotografias excepcionais, a obra promete cativar a todos que se encantam pelo estilo de vida desse esporte.

 

*Matéria publicada originalmente na edição #21 da Trip Europa.
Conheça Trip Europa - Tradução do alemão por Mathias Rempel

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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