Las puertas de la percepción

por Daniel Lisboa

Casal de americanos que vive no Peru guia visitantes ao imprevisível mundo do cacto San Pedro

Ladeiras estreitas, charmosas vielas com nomes impronunciáveis e construções em estilo colonial, simpáticas lhamas conduzidas por criancinhas ainda mais simpáticas, pequenos cafofos ultra convidativos, gente que largou tudo para virar um hippie nômade e até um museu da folha de coca. O bairro de San Blas, em Cusco, Peru, é um destes lugares onde viajantes superam desconfianças e passam a ter certeza de que estão no lugar certo. É também um lugar que oferece experiências que fogem aos catálogos turísticos convencionais. Basta, por exemplo, bater à porta do hostel Casa de la Gringa e perguntar sobre o passeio que promete, de forma cuidadosa, escancarar as portas da sua percepção. 

Intimista e acolhedor, o hostel é dirigido pela americana Lesley. É ela que, junto com seu marido Steve, oferece aos incautos forasteiros a chance de conhecer os poderes do San Pedro, cacto considerado sagrado e, transformado em bebida, consumido por nativos das regiões andinas pelo menos desde o século XVI. Conhecido também como Wachuma, tem a mescalina como seu princípio ativo. A substância, encontrada também em cactos da América do Norte, teve seus efeitos esmiuçados pelo escritor inglês Aldous Huxley nos livros As Portas da Percepção e Céu e Inferno. Autor do clássico Admirável Mundo Novo, Huxley escreveu as obras consumindo a mescalina de maneira controlada e supervisionada e teria definido sua excêntrica empreitada como “uma cartografia das áreas não mapeadas da consciência humana”. O livro acabou cultuado, e não por acaso a banda The Doors tem esse nome. 

 

A orientação é não segurar nenhum tipo de emoção e, principalmente no início, não interferir na viagem alheia

 

Encarar experiência aparentemente tão instigante não é, porém, coisa para os interessados em ficar doidão e outros aventureiros. Primeiro, porque não é barato: na Casa de la Gringa, participar do ritual custa 80 dólares ou 230 soles peruanos. E, depois, porque alguém que tenha se informado minimamente sobre os efeitos da planta, e o seu significado para os locais, provavelmente irá desistir de uma experiência meramente recreativa. Como explica o material sobre o San Pedro divulgado pelo hostel, a bebida feita com o cacto leva a uma viagem muito particular aos recônditos do inconsciente humano e, por isso mesmo, pode jogar luz em aspectos nada agradáveis ou reveladores sobre nós mesmos. 

Mas, se ainda assim restarem dúvidas quanto ao respeito com o qual é necessário encarar o San Pedro, isto dificilmente se manterá na hora da cerimônia. Realizado na casa de Lesley e Steve, na parte mais alta de Cusco e de frente a ruínas de um templo inca, o ritual é simples e objetivo quando comparado, por exemplo, as mil e uma regras dos adeptos do Santo Daime no Brasil. Mas isto não significa superficialidade: os relatos pessoais de Lesley e Steve, que comandam a cerimônia junto com um nativo da etnia quechua, já são suficientes para mexer com o emocional dos presentes antes da ingestão da bebida. Entre uma lágrima e outra, eles contam como o San Pedro teria ajudado a superar problemas como depressão, drogas e alcoolismo e, ao tocarem nas garrafas com a bebida (feita com o cacto cozido por dez horas), lembram a todos que, em última instância, o que está contido ali é deus, ou seja, acreditam que todos estão prestes a tomar algo divino em suas possibilidades. 

Os participantes da cerimônia também devem se apresentar e dizer o que esperam da experiência. Sentados em círculo em uma espécie de choupana, todos recebem um copo cheio e, depois de ingerirem a gosmenta bebida, estão livres para fazer o que quiserem. Sim: a orientação é não segurar nenhum tipo de emoção e, principalmente no início, não interferir na viagem alheia. Vomitar é normal, até recomendável, e de preferência deve ter o belo jardim da casa como alvo. Se a vontade de fazer algo mais extravagante vier, Lesley e Steve dão a deixa tranquilizadora: esclarecem que não há nada que eles ainda não tenham visto naquele jardim. 

De modo geral, o San Pedro não costuma causar alucinações e tem como efeito mais visível a grande dilatação da percepção. Sons, cores, formas e sensações são amplificados de forma estrondosa. Como vale o mesmo para a percepção do inconsciente, daí a imprevisibilidade da reação de cada um. Questões mal resolvidas ou há muito adormecidas podem vir subitamente à tona e resultar em choro, riso ou perplexidade. E não existe “bad trip”, já que a proposta é justamente essa. Agradáveis ou não, as revelações deverão guiar as mudanças pedidas pela vida de cada um. “Escute o que o San Pedro tem a lhe dizer”, aconselha Steve que, junto com sua mulher, procura também não intervir. Os dois estão a postos, porém, caso alguém precise de qualquer tipo de apoio, mesmo que apenas conversar. 

 

Sons, cores, formas e sensações são amplificados de forma estrondosa

 

A cerimônia dura cerca de dez horas, tempo que o San Pedro costuma agir no organismo, e apenas frutas e chás são servidos aos participantes. Isto porque outros alimentos podem cortar o efeito do San Pedro ou fazer a pessoa passar mal. O ideal, inclusive, é começar um jejum pelo menos dez horas antes do consumo da bebida, que acontece perto das dez horas da manhã. 

A interação entre todos é reestabelecida com o tempo e, a não ser que surja algum improvável problema de relacionamento no grupo, acontece de forma suave e espontânea. Independente da reação de cada um, a atmosfera criada, e a ação do San Pedro sobre a mente, levam a um sentimento momentâneo de irmandade e de regozijo. 

Ao final, despedidas emocionadas e táxi de volta a Casa de la Gringa (mesmo para os que não estão hospedados lá) e, entre ruínas ancestrais, cachorros vadios e o crepúsculo que abraça Cusco, a sensação é a de que ali é o lugar para se estar no momento. No caminho de volta, anúncios de uma marca de refrigerante, pintados em fachadas empoeiradas de botecos, lembram que estão todos de volta ao mundo real e, ao mesmo tempo, soam ingênuos para quem acabou de vivenciar um festival de sensações. “Descubra a felicidade”, promete o slogan do tal refrigerante. 

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