por Gustavo Ziller

Kilian Jornet escalou o Everest duas vezes no mesmo mês. Ele é um super-humano, e super-humanos são responsáveis pela evolução da espécie

O dia 29 de maio de 1953 foi especial para o montanhismo. Nesta data, o Everest recebia, em seu cume, a visita do explorador neozelandês Edmund Hillary e do sherpa Tenzing Norgay. Era a primeira vez na história que o cimo da montanha mais alta do planeta (8.848 metros de altitude) era conquistado.      

Normalmente essas grandes realizações tem efeito positivo na civilização – digo, na nossa espécie, os sapiens. Positivo porque quebra barreiras quase que intransponíveis e, por consequência, empurra a raça humana para frente. Faz sentido? Sim, faz tanto sentido que cientistas ao redor do mundo estudam esses super-humanos e o que os levam a feitos extraordinários.

O escritor e jornalista norte-americano Steven Kotler está dedicando boa parte da sua existência para estudar o que ele chama de “flow”, uma espécie de estado mental e corporal em que super-humanos entram quando batem recordes ou realizam o impossível. O estudo de Kotler rendeu um best seller (recomendo a leitura: The Rise of Superman) e outros tantos artigos científicos. Essa obsessão foi elevada à enésima potência com a fundação do Flow Genoma Project, uma organização internacional multidisciplinar que pretende mapear o genoma do “flow” até 2020. Para Kotler e seus cientistas, “flow” é o ingrediente que faz o sapiens andar... para frente.

Corta pra maio de 2017.   

Dois dias antes do aniversário dos 64 anos da primeira conquista do Everest, mais precisamente no dia 27 de maio, o espanhol Kilian Jornet, o ser humano mais próximo da existência do tal “flow”, realizou uma conquista, digamos, ousada: escalou pela segunda vez o Everest na mesma semana, sem usar oxigênio suplementar, sem cordas e sem a ajuda de sherpas. É bom repetir em diferentes palavras: em um intervalo de sete dias, Kilian Jornet escalou a maior montanha do planeta duas vezes, sem nenhum tipo de auxílio ou proteção.

Na primeira ascensão, Kilian levou 26 horas para sair do Campo Base, a 5.200 metros, até o cume do Everest. Na segunda, ele foi mais rápido. Jornet saiu do Campo Base Avançado, a 6.500 metros de altitude, e levou 17 horas para chegar ao cume, em um dia em que o vento não deu trégua, de acordo com informações postadas nas redes sociais pelo próprio atleta.

EM COMUNHÃO
O esforço físico e mental em feitos como esse são tão intensos que não há outra explicação que não seja o tal “flow”, corpo e mente entram em comunhão, partes do cérebro acessam lugares nunca antes explorados, a consciência flutua em outro patamar e o super-humano passa a pertencer ao ambiente em que está. A percepção muda, a intuição também. Eu sei como é, já estive ali.

No dia 03 de julho de 2017, às 10h30 da manhã, eu e minha expedição estávamos no ataque ao cume da maior montanha da América do Norte, o Monte Denali, localizado no Alasca, com 6.194 metros de altitude. Depois de 3 horas, em meio à uma nevasca intensa que nos permitia enxergar 1,5 metro de corda e a pegada na neve do montanhista da frente, chegávamos ao Denali Pass. Confesso que ali eu estava em outra dimensão, mas o frio de 30 graus negativos com rajadas de vento de 50 km/h me traziam pra realidade. Nosso líder de expedição interrompeu o silêncio com um “vamos pra casa, agora estamos bem, mas daqui a 12h, não sei dizer como estaremos”. Doze horas era o que nos restava de ataque ao cume.

Kilian Jornet levou 11h48min para atacar o cume dessa mesma montanha, o Denali. Mas ao contrário da nossa expedição, que partiu do High Camp, a aproximadamente 5.200 metros de altitude, Kilian partiu do Campo Base, a 2.200 metros. Ele é um super-humano, e super-humanos são os responsáveis pela evolução da espécie.

Perguntei ao Kilian se ele achava que seu feito, de fato, move nossa civilização adiante. Ele tinha acabado de realizar a conquista do Everest. Laura Font, sua assessora de imprensa, respondeu por ele. “Gustavo, Kilian está cansado e se preparando para a ultramaratona de Hardrock 100 [uma das provas de longa distância mais difíceis do planeta, 60 quilômetros correndo nas montanhas do Colorado], prometo resposta depois”.

Kilian acaba de ser campeão da Hardrock, correndo a maior parte da prova com o braço numa tipoia, imobilizado, por causa de uma queda na corrida que lhe rendeu uma lesão no ombro.

Ainda não tenho sua resposta, mas acredito na palavra de Laura. Portanto, esse assunto ainda vai render muitas reflexões para aqueles que, como eu, ficam fascinados com esses exemplos. Essa história continua.  

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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