por Tom Cardoso
Trip #150

O brasileiro Andreas Pavel é o pai do stereobelt, aparelho de som portátil precursor do walkman

"Adicionar trilha sonora à vida real": esse era o despretensioso objetivo de Andreas Pavel quando inventou, no Brasil, o stereobelt - pai de brinquedinhos como walkman, celular e players de música tipo o iPod. Conheça a odisséia desse germano-paulista que torrou 3,5 milhões de dólares para reconhecer sua cria em processos contra empresas como Sony e Apple, até afinal receber o devido crédito - e dividendos - e poder relaxar ouvindo chorinho, João Gilberto e Stockhausen

Assim ouve a humanidade

1972: Pavel concebe o stereobelt e o testa numa viagem à Suíça 1977: Pavel registra patente de seu stereobelt  1979: a Sony lança, no Japão, o primeiro walkman, com duas saídas para fones  1980: a Sony lança o primeiro rádio transistor de bolso em formato walkman, sem alto-falante embutido, reproduzido apenas por fone  1985: nasce o D-50, o popular discman da Sony, primeiro aparelho de bolso capaz de tocar música digital de alta qualidade  1992: Sony coloca no mercado o minidisc (MD), disco baseado em armazenamento de dados  2001: lançado pela Apple, o iPod, um tocador de música, armazena canções baixadas pela Internet em disco rígido 2004: o telefone celular passa a ser usado como receptor de rádio e para download de MP3

Parem as máquinas. Andreas Pavel acaba de inventar o beijo rotativo, “um método para beijar uma pessoa nas bochechas e ao mesmo tempo ser beijado por ela na maior velocidade possível sem perder o contato”. É prudente não duvidar da utilidade dos inventos desse filósofo alemão de 61 anos, brasileiro por devoção. Mais de 30 anos atrás, ele também não foi levado muito a sério quando criou um brinquedinho que permitia ouvir, com alta qualidade, música num aparelho de som portátil, ligado a dois fones de ouvido. Sim, Pavel inventou o walkman. Ou melhor: o stereobelt, concebido numa madrugada de 1972, durante uma reunião de amigos em sua casa no bairro de Cidade Jardim, em São Paulo.

Hoje, depois de uma longa e penosa disputa judicial, o fã de João Gilberto e Stockhausen conseguiu impor um acordo à maior fabricante de produtos eletrônicos, a Sony, e cobrir os primeiros anos de venda do iPod em alguns países (ainda aguarda a próxima concessão de uma patente nos Estados Unidos, que cobrirá celulares dotados de MP3 – combinação que ele já antecipou na sua primeira patente, depositada em 1977). Colhendo os louros do sucesso, Pavel segue se comportando como um jovem estudante de filosofia da USP. Não pára de ter delírios criativos. “Acabei de registrar um pedido de patente que vai inovar a maneira de usar o celular”, dispara, ao receber a reportagem da Trip na velha casa da família em São Paulo. Sobre isso, ele faz mistério. Por enquanto, só revela os segredos do tal beijo rotativo – invento que fez questão de testar, sem a menor cerimônia, nas bochechas rosadas da sua namorada, a italiana Anna Sutor. Parece haver muito pouco de alemão em Andreas Pavel. Nascido em Berlim e criado em Hamburgo, chegou ao Brasil aos seis anos de idade, em 1951, depois que o pai, o economista Herbert Pavel, recebeu uma proposta para trabalhar nas empresas do grupo Matarazzo, na época o maior complexo industrial do país. “A viagem de navio para o Brasil durava duas semanas. Era mágico chegar ao mundo tropical após tanto tempo em mar aberto: receptivo, colorido e com aquela lentidão agradável que só o calor consegue produzir. Me impressionei com a beleza de São Paulo, o canto dos bem-te-vis e dos sabiás”, lembra. A família fixou residência no Jardim Europa, e, anos depois, em Cidade Jardim. Foi ali, numa casa idealizada pela mãe, Ninca Bordano, mulher de espírito liberal e apaixonada por artes e literatura, e projetada por Ronaldo Duschenes, da escola do arquiteto Vilanova Artigas, que Pavel concebeu a idéia do “brinquedo” que mudaria para sempre a forma de ouvir música.

A arrojada casa de dona Ninca aproveitava a acústica da construção – uma abóbada de concreto aparente onde se desenvolvia um avançado sistema de audição musical. Era freqüentada por amigos que Andreas Pavel cultivou nas aulas de filosofia e em sua passagem pela TV Cultura e Abril Cultural: Bolivar Lamounier, Drauzio Varella, Francisco Achcar, Antonio Medina Rodrigues, Thomas Farkas, Otaviano de Fiore, Fernando Pacheco Jordão, José Gaiarsa, Augusto de Campos, Boris Fausto e muitos outros.

O maior inventor é o acaso
“Eram tempos de ditadura militar e de contracultura. Ficávamos horas, madrugada adentro, conversando sobre filosofia, política, literatura, estética”, lembra o anfitrião. Os encontros, claro, eram regados por boa música. De Bach a Janis Joplin, de Hermeto Pascoal a Noel Rosa — até flautas dos templos japoneses e coros pigmeus eram ouvidos na abóbada de Cidade Jardim... Em meados de 1972, Pavel partiu com a namorada para uma viagem de um mês pela Europa. Ali deu-se o estalo da criação. “Cria-se, em todos os campos, por variação e seleção, mas o maior inventor de todos é sem dúvida o acaso. Não há esforço deliberado que possa substituir as maravilhas que o acaso pode produzir”, filosofa. O raciocínio do inventor foi simples: “Estava viciado em música. Não suportava a idéia de ficar 30 dias sem ouvir absolutamente nada. Não posso carregar uma vitrola comigo, mas posso levar um aparelho de fita cassete. Mas como ouvir?”.

Até então, os fones de ouvido eram usados só para controlar a qualidade de uma gravação ou para ouvir música em casa, individualmente. Ninguém havia pensado no óbvio, nem mesmo os engenheiros da Sony, da Philips, da Panasonic, as gigantes do ramo eletrônico: plugar os fones de ouvido num aparelho de bolso dotado de saída estereofônica e, com isso, transportar a música para onde quisesse, “adicionar”, segundo o inventor, “trilha sonora à vida real”. Pavel resolveu colocar em prática a idéia. Depois de rodar a Europa e testar vários tipos de fones, conseguiu montar o primeiro protótipo que acabaria sendo registrado como “pequeno equipamento de fixação corpórea para reprodução de eventos auditivos em alta qualidade”, ou simplesmente — já que era para ser usado na cintura — “stereobelt”. Pavel testou pela primeira vez sua invenção em fevereiro de 1972, ao lado da sua namorada, nos bosques suíços de Saint Moritz. O efeito surpresa, ele conta, foi “acachapante”.

 

“Começamos a ouvir ‘Push Push’ [uma parceria do flautista de jazz Herbie Mann com o guitarrista de rock Duane Allman] e ficamos imersos num teatro invisível aos outros. Eu não esperava que uma caixinha tão pequena pudesse colocar você num teatro com orquestra sinfônica. É a vida transformada em cinema”, poetiza Pavel, que a partir daí passou a usar seu novo brinquedo: “Demorei anos para sacar que aquilo era uma invenção preciosa”, conta. “Viajava sempre com o aparelho; os amigos achavam genial, mas nunca passou pela cabeça que o stereobelt fosse invenção minha. Parecia tão simples — todo técnico de áudio poderia bolar —, que tinha certeza de que a qualquer hora algum fabricante iria lançar”, lembra.

O tempo passou e nada. A indústria continuou despejando no mercado milhares de aparelhos de fita cassete todos os anos, um mais moderno que o outro, mas nenhum próximo do invento de Andreas Pavel, que decidiu colocar a mão na massa. Ainda antes de registrar a patente, o filósofo-inventor procurou representantes da Sony e da Philips numa feira de som. Sem revelar a idéia, Pavel sugeriu o efeito da invenção aos engenheiros. “Lia um texto que descrevia a sensação: ‘imagine você andando na rua, sem peso, sem bagagem, num belo dia de céu azul. De repente, aperta um botão e começa a ouvir violinos, pianos, um grupo de jazz, uma orquestra’”, recorda. O inventor só teve a certeza de que a indústria penaria para descobrir o que a ele parecia óbvio quando o representante da Sony, espantado, perguntou: “Mas como o senhor faz? Carrega alto-falantes nos ombros?”.

“Curioso é que, há anos, a própria Sony detinha a tecnologia para produzir o walkman. Era só converter o convencional gravador monofônico de voz num leitor estereofônico de música com amplificador de fones. Mas eles não sacaram: na Sony o cara é contratado para projetar gravadores e faz isso a vida toda. Outro é contratado para desenvolver fones. Eram departamentos separados. Faltava alguém para subverter as regras — que é o princípio criativo”, reflete Pavel.

No dia 5 de outubro de 1978, o pedido de patente de Pavel foi publicado. Em menos de duas semanas, surgia nos laboratórios da Sony o primeiro protótipo do aparelho, lançado no Japão em julho de 1979. “Estava em Milão quando encontrei meu amigo Antônio Peticov [artista plástico], que havia acabado de voltar de Tóquio. Ele me alertou: “Vi uns japoneses andando pela rua com fones de ouvido...”. Meses depois, no dia 1º de abril de 1980, saiu um anúncio na Playboy americana, de página inteira, mostrando um par de jovens voando pelo céu, com fones de ouvido. “Adotaram até minha metáfora!”, indigna-se. Assim iniciava uma longa batalha judicial entre o inventor da estereofonia de bolso e a gigante da indústria eletrônica. Akio Morita, gênio do marketing e presidente da Sony, levou fama de criador do walkman – e deitou numa cama recheada de verdinhas. Pavel teve de arranjar milhões de dólares para pagar advogados: “Fiz empréstimos e financiamentos com bancos, amigos, familiares, peguei resto de herança, abri dívidas... Estimo os custos da batalha em 3,5 milhões de dólares”, contabiliza.

Nessa contenda, Pavel quase foi à lona: teve seus bens paralisados por ordem judicial de 1993 a 1999 — e, um belo dia, para surpresa do cientista, um juiz emitiu uma ordem de custos de 1,8 milhão de libras, para cobrir os custos legais da Sony — que, aliás, fritou oito milhões de dólares para levar a melhor. “Nessa altura”, Pavel lembra, “eu não tinha outra atividade além de administrar, a contragosto, uma série de processos em vários países. Uma vez o Haroldo de Campos me disse que a complexa atividade da batalha contra uma grande multinacional tinha o fascínio estético de um jogo de xadrez... Apesar dos muitos reveses, não fiquei deprimido. Achava — e ainda acho — que o milagre de viver era 99% do show. Nunca considerei a Sony inimiga: era só uma grande máquina que funcionava com sua lógica própria”, conta Pavel, que, à época, massageava os ouvidos com Scarlatti, Boulez, Messiaen, Miles Davis e Jackson do Pandeiro.

Afinal, Pavel conseguiu fazer valer seus direitos. Recentemente firmou acordo com a multinacional — que lhe confere inclusive direitos pela produção de celulares, iPods e outros leitores digitais de MP3. Afinal, o stereobelt é o primeiro legítimo aparelho portátil da nova tecnologia. “Foi o primeiro protótipo de estereofonia pessoal e portanto móvel, o primeiro nome do que depois viria a se chamar walkman e hoje iPod”, embala a criança Pavel. “Por duas vezes, esse conceito mágico – transformar o cotidiano em ficção – alavancou de forma inesperada uma multinacional que já era famosa [Sony, depois Apple]”, conta. “O primeiro brinquedo eletrônico de bolso da humanidade, que todo mundo tinha, foi substituído por outro, o celular, em torno do qual outras funções agora se agregam, inclusive o leitor de estereofonia pessoal [personal stereo player]”, reflete ele, espantado com a evolução da estereofonia pessoal que diz ser uma característica da evolução geral/global: “Primeiro o conteúdo de um disco [na fita cassete], depois a minha discoteca inteira [no iPod], depois o acesso à discoteca universal [de tudo que é trocado e acessado na Internet: pelo celular]”, exemplifica.

“A tecnologia é por definição meio, não fim; portanto, o seu vício só pode estar no prazer infantil de apertar botões e ter um resultado imediato”

Vivendo o sonho alucinado de macluhan

Sobre o acordo com a Sony, Pavel não revela detalhes. Nem está preocupado em ser reconhecido oficialmente como “inventor do walkman”. Morando em Milão, mas sempre flutuando por aqui, entre São Paulo e Rio, onde preside o Instituto Memória Musical Brasileira (www.jornalmusical.com.br), o filósofo-designer está orgulhoso por trabalhar diretamente na recuperação da obra de Altamiro Carrilho, “maior instrumentista vivo da MPB”, conforme aponta. “Ele é o último grande mestre da nossa tradição mais antiga — o choro — e um dos maiores flautistas de todos os tempos”, afirma Pavel, responsável pela produção e direção de um DVD duplo de seis horas em homenagem ao músico, que deve sair ainda este ano.

Como é sua relação atual com a tecnologia? “Entre impaciente e divertida, mas vivendo o sonho alucinado de McLuhan”, diz Pavel, que não se considera um viciado em tecnologia — “Ela é por definição meio, não fim; portanto, o vício com a tecnologia em si só pode estar no prazer infantil de apertar botões e ter um resultado imediato. Como dizia Skinner, ‘a gratificação reforça o comportamento no sentido de aumentar as instâncias do seu aparecimento’”, cita o professor, que, evidente, tem iPod, computador e celular. Acha que as pessoas usam pouco ou demais a tecnologia? “Os jovens demais, os velhos de menos.” Mas o que é usar demais? “É dar pouco espaço à beleza do céu, da natureza, das cidades, das pessoas, aos sons e imagens que chegam a nós a cada momento, sem nenhuma mediação — sem mídia, melhor dizendo.” Então, caro leitor, fica o convite: arranque já esses fones brancos dos ouvidos e vá já para a rua.

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