Isto é uma igreja

por Millos Kaiser
Trip #190

O movimento religioso Meninos de Deus evangelizava misturando cristianismo com amor livre

Até onde vai o amor divino? Para o Meninos de Deus, até a cama. O movimento religioso, fundado pelo guru David Berg e com forte presença no Brasil, misturava cristianismo com amor livre e usava o sexo como forma de evangelização. Hoje, conhecido como A Família, encaretou – mas as polêmicas permanecem

Já faz mais de duas décadas, mas Mateus lembra como se fosse hoje. Era madrugada em São Paulo quando sua mãe acordou-o de supetão: “Filho, está na hora. Pega a mala de fuga”. Sempre pronta, deixada no canto do quarto, finalmente a tal mala justificaria o nome. Seu dono, então com 10 anos, já sabia o que fazer. Agarrou-a e escapou a pé de casa, acompanhado das outras 20 pessoas com quem morava. Minutos depois os carros de reportagem da Rede Globo e os da polícia chegavam ao local. Cerco armado, câmeras a postos, mas apenas dois moradores restaram para fazer as honras. O motivo da batida: uma denúncia envolvendo abuso sexual de crianças. Nada foi provado.

Berg estimulava o amor livre entre seus seguidores, independentemente

Não era a primeira nem seria a última polêmica envolvendo o Meninos de Deus, hoje conhecidos como Família Internacional (FI). Surgido na Califórnia em 1968, o movimento religioso misturava cristianismo radical com ideias nada ortodoxas. Para seu líder e fundador David Berg, falecido em 1994, o amor de Deus era sua maior dádiva e, como tal, deveria ser posto em prática sempre que possível. E de forma literal: Berg - também chamado de Mo, Pai David ou simplesmente Papai - estimulava o amor livre entre seus seguidores, independentemente do estado civil. Mais que isso, as relações sexuais eram uma maneira de “incentivar a união e combater a solidão dos necessitados”, o que era chamado de sexo sacrifical.

Ele também era utilizado como forma de evangelização, sob o nome de flirty-fishing, que encorajava mulheres a prostituírem-se em nome do amor divino. A pesca-coquete (como a prática era chamada no Brasil) acontecia principalmente à noite, em boates, com agências de escort facilitando o processo. Em 1987, depois de mais de 223 mil homens fisgados, e com a Aids já fazendo suas primeiras vítimas, os dirigentes do grupo comunicaram que o mar não estava mais para peixe: “Todo sexo com pessoas de fora está proibido! A não ser que elas sejam já próximas e amigos bem conhecidos!”, dizia a publicação oficial.

“Parecia que a gente estava o tempo todo chapado, de tão felizes que éramos”

 

Como a maioria dos primeiros integrantes, o norte-americano Paul era hippie. Conheceu os ensinamentos de David no Texas, em 1970, e largou tudo – família, escola e trabalho – para seguir o guru. Loucura? Talvez. Mas compreensível naqueles tempos férteis em utopias. “Em uma mesma praça, você via os hare krishna, rituais de tribos africanas, um evangélico pregando o inferno, os motoqueiros do Hell’s Angels... Estavam todos atrás de algo em que se apoiar”, ele relembra. O então adolescente mudou-se para a The Soul Clinic (A Clínica da Alma), uma das primeiras e maiores comunidades do MD, onde estudava as Cartas de Mo (espécie de manuais da teologia do grupo) por até oito horas diárias. No resto do dia, ia para as ruas “litificar” e “testificar” (respectivamente, distribuir a literatura oficial e dar testemunho, no jargão do grupo). “Parecia que a gente estava o tempo todo chapado, de tão felizes que éramos”.

Crescei e multiplicai-vos

Em três anos, os 300 Meninos de Deus viraram 4 mil, espalhados por mais de 20 países. De fazer inveja a qualquer multinacional, o crescimento era visto como prova divina de que eles estavam no caminho certo. O milagre, porém, pode ser explicado de forma bem terrena: além das relações sexuais livres e numerosas entre os membros, métodos contraceptivos eram proibidos. Paul, por exemplo, tem oito filhos de dois casamentos.

No Brasil, os primeiros Meninos de Deus apareceram em 1973. Eram o casal baiano Letícia e Sérgio, que conheceram o grupo durante um exílio na Holanda. Eles rapidamente multiplicaram-se por aqui, impulsionados pelo sucesso da banda Meninos de Deus, formada por músicos brasileiros e estrangeiros – entre eles, o guitarrista Jeremy Spencer, que abandonou a banda Fleetwood Mac no auge do sucesso mundial para servir à Deus.

O conjunto foi descoberto por um executivo da gravadora Polydor quando se apresentava em praça pública. Com três LPs lançados e o hit “Aleluia”, chegaram a se apresentar para 200 mil pessoas no Maracanã, no programa do Bozo e até no Sílvio Santos.

“Hoje ela tem nove filhos. Deve ter gostado da coisa, nasceu para isso”

Além da investida da Rede Globo, o Meninos de Deus também foi pauta de outros veículos, investigado pelo DEIC (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado) e perseguido pela UNE, que preocupava-se com jovens convertidos que largavam a escola.

Jovens como Marcos Henrique, atualmente pastor evangélico, que entrou no grupo aos 17 anos por amor. Não exatamente por Deus, mas por uma integrante que atendia pelo nome de Cristal Harmony. Quando descobriu que a moça era uma flirty-fisher, desistiu de revelar sua paixão. “Hoje ela tem nove filhos. Deve ter gostado da coisa, nasceu para isso.” Marcos tampouco se saiu mal. Teve cinco namoros durante o ano que morou com os MD, fora os rolos, esses “incontáveis”. “Era tanta mulher bonita que eu nem me preocupava em correr atrás, simplesmente acontecia. Mas não era nada pornográfico.”

Seu dia no começava às 5h. Ele e seus companheiros oravam, tomavam um café da manhã “natureba e cheio de sustância” e iam em duplas para as ruas evangelizar. Tinham até as 20h para retornar e trazer a cota diária de doações, equivalente a um salário mínimo. Quando o repórter pede auxílio para visitar um lar, ele desconversa: “Já te aviso uma coisa: você tem que saber com quem está mexendo. Eles têm poder aquisitivo, advogados por trás. Não vou te levar, é muita responsabilidade”.

Sistemáticos e caretas

“Tudo que você ouvir é verdade. Os abusos aconteceram, sim”, diz logo Keli Garcia na entrevista por telefone. Ela acredita “ter ganhado na loteria”. Seu padrasto, líder do lar em que morava, não via a libertinagem sexual com bons olhos e não permitia que a filha ficasse acordada até tarde como as outras. “Ele era chamado de egoísta, sistemático [termo que designava quem era ‘do sistema’], tanto que fomos expulsos da comunidade. Acho que saí no lucro, porque peguei só a parte boa, que é a estrutura cristã. Tem gente que não sabia quem era o pai, quem era a mãe ou então ia descobrir muito depois.” O irmão de Keli, um ano mais novo, morou em outro lar com o pai verdadeiro e não teve a mesma sorte. Foi abusado, nunca estudou e só foi aprender a ler quase adulto. Traumatizado, não quis dar depoimento. Já o pai abandonou a Família oito anos atrás, sem aposentadoria, dependente químico e afastado dos familiares. “Eles acreditavam estar vivendo o fim dos tempos, por isso não se preocupavam em trabalhar, estudar ou acumular bens. Mas aí o mundo não acabou e muitos entraram em crise. Meu pai acha que foi tudo em vão”, ela diz.

“Tem gente que não sabia quem era o pai, quem era a mãe ou então ia descobrir muito depois”

Turma da Mônica

Depois da fuga noturna, Mateus Aragão, o menino da mala, foi morar com a mãe em uma comunidade alternativa em São Lourenço, fora da igreja. Neto do poeta Ferreira Gullar, ele tem sete irmãos maternos e oito paternos, alguns ainda adeptos da Família. De todos eles, foi o único que quis falar à Trip.

 

O ator River Phoenix também foi um menino de deus e revelou ter perdido a virgindade aos 4 anos

Ficou surpreso quando a reportagem informou-lhe que Davidito, filho adotivo de David Berg, havia cometido suicídio em 2005, depois de assassinar uma das babás que o criaram. O garoto, que acusava o pai de tê-lo molestado, era protagonista de livros sobre educação infantil produzidos pelo grupo. Alguns contém imagens dele envolvendo-se sexualmente com pessoas mais velhas. “Era a nossa Turma da Mônica”, conta Mateus. O ator americano River Phoenix, estrela do clássico da Sessão da Tarde Conta Comigo, também foi um Meninos de Deus e revelou ter perdido a virgindade aos 4 anos. Em 1993, ele morreu de overdose de drogas.

Woodstock cristão

Nos últimos dez anos, a Família Internacional “encaretou”. Fotos recentes dos lares que ainda existem nem de longe lembram o “Woodstock cristão” de outrora. A líder Karen Zerby, viúva de Berg, concluiu que, nos moldes antigos, o movimento tornou-se insustentável. Ele agora vive um momento de entressafra, de reavaliação de diretrizes. A principal mudança, já em curso, é o fim da vida em comunidade.

 

“Que o amor fosse livre, mas com limitações. Não vou pegar a sua mina, sacou?!”

O papel dos filiados também mudou, pouco a pouco integrando-se ao sistema. No lugar de angariar novos adeptos, o foco agora é em ações de cunho social, como trabalhos voluntários em hospitais. Paul, que hoje trabalha como assessor de comunicação do grupo no Brasil, condena os escândalos do passado, mas diz que nunca presenciou nada parecido. Sobre os casos de abuso infantil, acha que eles ocorreram com a mesma incidência que ocorrem em qualquer outro círculo da sociedade. Já a pesca-coquete “era uma ideia muito pura, sincera, mas a aplicação fugiu do controle”. “Existem muitos anos de trabalho de pessoas sérias que foram soterrados por manchetes sobre essas coisas. Tiramos muitas pessoas das drogas, lutamos contra a ditadura e o racismo”, ressente-se Paul. Olhando para trás, porém, ele não escapa de certo mea-culpa: “Descobrimos que somos seres humanos. A gente achava que dava para se isentar desse detalhe, mas não deu. Achávamos que se houvesse amor, organização e metas tudo daria certo. Em alguns casos até dava, mas isso se tornou exceção e não regra”. Enquanto isso, Marcos Henrique, apesar do coração quebrado por Cristal Harmony, diz que ser um Menino de Deus foi “a melhor coisa da minha vida”. E que, se pudesse, faria tudo outra vez. Com uma diferença: “Se ainda existisse esse negócio de amor livre, eu iria combatê-lo. Que ele fosse livre, mas com limitações. Não vou pegar a sua mina, sacou?!”.

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