por Letícia González
Trip #264

O modelo de masculinidade ainda é baseado em expressar potências e esconder imperfeições e angústias. Isso não faz mais sentido

A cena é comum nos grupos de reflexão coordenados pelo psicólogo Carlos Zuma, no Rio de Janeiro. Numa sala cheia de homens reunidos por 1 hora e meia, tem alguém que chora primeiro. Aí, conta Zuma, o desconforto é palpável. "Um levanta para pegar um café, outro se mexe na cadeira, outro puxa conversa com o cara ao lado." Especialmente nos primeiros encontros, a pauta geral é incômoda — o que é, afinal, ser homem hoje? A portas fechadas, ideias de macheza e pressão social vêm à tona. Lembranças de infância se misturam a memórias recentes, como as das agressões que eles próprios cometeram. É que a maioria chega ali via juizado de violência doméstica; outros poucos por exigência da mulher e uma minoria por vontade própria. Mas o que os faz participar é outra coisa. A saudade dos filhos, a perda da mulher que amam e a noção da dor causada levam a uma só conclusão. É preciso ser macho de outro jeito.

A metodologia usada nos encontros semanais é a criada pelo pioneiro Instituto Noos, fundado por Zuma com colegas em 1994, hoje replicada em mais de 20 programas no Brasil. Fazer falar os homens é a proposta do grupo para abrir suas cabeças e encontrar soluções pacíficas para a vida. A maioria tem mais de 40 anos e é de um tempo em que força era sinônimo de masculinidade. Cresceram em famílias com um líder inconteste que, não raro, "corrigia" mulher e filhos fisicamente. São um retrato ultrapassado, mas ambulante. Apesar do crime que cometeram, têm ideias que circulam livremente por aí.

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"Quer ver meninos brigando? Chegue num jardim de infância e pergunte quem é o marica. Eles vão prontamente apontar o dedo uns aos outros, ou escolher um só, que terá de brigar com todos para provar o contrário", diz o sociólogo americano Michael Kimmel no documentário A máscara em que você vive, que investiga a cultura do macho nos Estados Unidos. Fundador do Centro de Estudos do Homem e das Masculinidades na Stony Brook University, em Nova York, e autor de Guyland: The perilous world where boys become men (algo como "‘Caralândia’: o mundo perigoso onde os meninos se tornam homens"), Kimmel faz coro com colegas brasileiros quando decreta: brincadeiras que humilham a sensibilidade de meninos os destroem por dentro. Não é a capacidade de se defender que está em jogo (argumento de muitos pais para apoiar o lado briguento dos filhos), mas o castigo a toda e qualquer vulnerabilidade. "Expressar sentimentos é ser menos homem. Assim os gêneros vão se moldando", diz Zuma. De um leque de emoções potencialmente amplo, sobra uma única legítima – a raiva – e um único modo de expressá-la – a agressão física. "Isso não é genético, como muitas mães acreditam. É apenas incentivado desde muito cedo."

Um exemplo da natureza emotiva dos meninos? Uma pesquisa realizada pela Escola de Medicina de Harvard em 1999 analisou 81 bebês de 6 meses acerca de sua regulagem de emoções — o mecanismo que garante nossa vida em sociedade e nos faz, por exemplo, sorrir amarelo quando o chefe estraga nosso fim de semana. As crianças de ambos os sexos foram expostas a diferentes estímulos de suas mães: falas sorridentes, brincadeiras e a expressão facial neutra, uma reconhecida fonte de estresse. Em todas as situações, os meninos demonstraram mais emoções (positivas e negativas, pedindo colo, chorando ou sorrindo) e sociabilidade (fixando o olhar no rosto da mãe) do que as meninas, que choraram um pouco menos e se interessaram mais por objetos presentes na sala. Fica a pergunta: como, antes mesmo da adolescência, esse perfil muda tão intensamente?

CAMINHOS CRUZADOS

"Quando a criança começa a socializar no jardim de infância, observa as primeiras divisões de papéis. Depois, por volta dos 6 anos de idade, os valores da sociedade começam a se cristalizar", explica o psicólogo Leandro Feitosa Andrade, professor da PUC e da FMU, em São Paulo, e coordenador do grupo reflexi­vo de homens do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, na mesma cidade. A crise atual, acredita o estudioso, é que, enquanto as mulheres reivindicam novos papéis e já levam vidas mais autônomas, os meninos crescem com as mesmas ideias de sempre. "Os garotos ainda são educados por uma lógica de controle e hierarquia com valores de potência, virilidade, luta e desempenho no trabalho e no esporte."

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As relações pessoais, no entanto, não assinam embaixo desses valores como antes. "O homem perde poder e, ao contrário das mulheres, que sabem o que querem, não têm outro modelo a seguir. Aquele do cara que banca tudo, até por causa da precarização das relações de trabalho, está fracassado", afirma Andrade. A releitura do mundo que esse descompasso exige começou na contracultura e teve um momento importante com O crepúsculo do macho, livro de Fernando Gabeira de 1980, mas parece ainda tensa hoje, entre diálogos extremados e a reivindicação dos espaços de fala. "Os homens não estão preparados para a discussão e uma das estratégias de imposição acaba sendo a violência. É do tipo ‘converso até certo ponto; daqui pra frente, mando eu’."

Mas viver em pé de guerra tem consequências reais. Em todo o mundo, os homens encabeçam os números de suicídios e mortes por arma de fogo. No Brasil, os números do SUS mostram que, a cada 100 mil pessoas, oito homens tiram a própria vida por ano. Entre as mulheres, o número cai para cinco. A diferença de gênero se mantém nos dados globais da Organização Mundial da Saúde: 15 e oito, respectivamente. Os dados brasileiros atestam ainda que homens se envolvem em acidentes e situações de violência (levando à morte prematura antes dos 60 anos) três vezes mais
que as mulheres. Também morrem mais por transtornos de comportamento (2,6 vezes mais) e doenças do aparelho digestivo (1,5 vez mais), causas relacionadas a estresse e abuso de drogas como o álcool.

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Em resumo, estamos falando de metade da população que não sabe ou recusa se cuidar. O cenário em que meninos crescem não sugere uma mudança, ainda. "Nas escolas quase não há figuras masculinas. No pré e no fundamental, onde começa a socialização, só tem mulheres. Os próprios pais dos alunos se opõem à ideia de homens dando comida e trocando a fralda de crianças pequenas, pois têm medo de abuso sexual. Assim, as crianças não têm referência de cuidadores masculinos e se reproduz a lógica de que essa tarefa é feminina", diz Andrade.

PAI DE INSTAGRAM

No show de stand-up que gravou com sete meses de gravidez em 2016 para a Netflix, a comediante americana Ali Wong faz uma piada com o papel do marido na gestação. Quando ficavam sabendo que ele acompanhava todo pré-natal, conta ela, as pessoas em volta o elogiavam efusivamente. "Sabe quem mais vai a todas as consultas?", provoca Ali com o dedo em riste para a plateia, a barriga pontuda marcada por um vestido tubinho. "Eu! Se eu não for, não tem bebê para ver!"

Aqui no Brasil, pesquisas independentes e do Ministério da Saúde apontam que cerca de 80% dos pais acompanham pelo menos uma consulta de pré-natal. A ONG brasileira Promundo usou o gancho e treinou funcionários do SUS no Rio de Janeiro, em Recife e Porto Alegre em 2015 para fazê-­los incluir os pais nas informações sobre o bebê, além de cobrar sua presença nas próximas etapas e reforçar a importância do seu papel. É mais uma maneira, analisa a socióloga Milena do Carmo, coordenadora de projetos da entidade, de promover uma paternidade não violenta (sem falar nos benefícios para a família). "A nossa meta é, apenas, mudar o mundo. Mais de 80% dos homens se tornarão pais. Por que não engajá-los no cuidado?", diz.

Atuando em frentes da vida masculina, a ONG promove também rodas de conversa em busca de desabafos e exemplos positivos, seja num bairro ou numa escola. Já conduziu torneio de truco ligado a exames periódicos e campeonato de futebol com oficina sobre gênero. De uma campanha de 2009 na comunidade Santa Marta, coletou histórias de homens adultos que cresceram com pais ausentes, alguns marcados pela violência dentro de casa. Márcio, um desses moradores, hoje figura nos vídeos positivos da Promundo. "Meu pai tinha de mostrar que era homem, ter várias mulheres, ter dinheiro. O que a comunidade pregava era isso", conta ele, que participou da roda de debate sobre paternidade. "Ouvir a história de cada um serviu para que eu pudesse ser curado, colocar coisas ruins para fora e deixar novos conceitos entrarem." Quando a mulher engravidou do filho deles, Márcio estava em todas as consultas.

Se diversificar exemplos faz parte da saída, a ficção está aí para isso. O filme vencedor do Oscar, Moonlight, é um retrato dolorido de um menino gay sufocado em um gueto repleto de violência e clichês de virilidade. O espectador sofre a clausura de Chiron e torce por uma via de alívio, além do amor que a mãe, usuária de crack, não consegue dar. "A arte tem esse papel importante de explicitar as afetividades ambíguas. Escritores dos anos 80 e 90, como João Gilberto Noll [que morreu no mês passado] e Caio Fernando Abreu, fizeram isso. Agora, é a vez do cinema", analisa o professor da UFRJ e pesquisador Denilson Lopes, autor do livro Afetos, relações e encontros com filmes brasileiros contemporâneos, a ser lançado em maio. É das novas produções, analisa, que veremos cenas de carinho para além do amor gay, com mais retratos de "amizades masculinas, toque não erótico entre dois homens, relações entre pai e filho e sentimentos", feitos por cineastas como Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, de Beira-mar (2015), e Aly Muritiba, de Para minha amada morta (2016), aponta o pesquisador.

Com estreia prevista para o segundo semestre, o primeiro longa do cineasta Pedro Coutinho se une à lista e promete ser uma comédia sincera. Todas as razões para esquecer, com os atores Johnny Massaro e Bianca Comparato, conta a história de Antônio, um jovem que menospreza o sofrimento do fim de um namoro, até não conseguir mais fingir. Ainda em fase de edição, o longa foi exibido a alguns amigos do diretor. "As amigas se emocionaram. Já um amigo me disse: ‘Me segurei para não chorar’", conta Coutinho.

CONVERSA DIRETA

De volta ao grupo de reflexão, depois dos primeiros choros incômodos, a cena é outra. "Quando os homens aprendem a respeitar o sentimento do outro, a se colocar ali também e sintonizar, a caixinha de lenço vai passando de mão em mão pelo grupo", relata Zuma. "O sentimento sempre esteve lá, só que disfarçado. Sem julgamento, começa a fluir mais facilmente." Além de alívio, relatam uma nova visão. "Quando descobrem como foram reprimidos, alguns se indignam e deixam de enxergar o privilégio de terem nascido homens. Aí, passam a ter mais empatia pela situação da mulher na sociedade. Porque eles também, de certa forma, se sentem massacrados", afirma Zuma.

Para Andrade, os espaços de diálogo entre homens podem beneficiar a todos, não apenas agressores. "Na prática, os espaços de socialização masculina, o trabalho, o esporte, o bar, ainda reforçam a lógica machista, em que a fraqueza é tratada com deboche e ninguém se sente à vontade para expor sua impotência", diz. "É um grande problema. Ainda não temos espaços para que os homens conversem entre si de forma franca." Esse diálogo, defende o professor, é diferente de uma conversa de casal ou uma sessão de terapia. "Acredito que estamos numa fase anterior, em que o homem precisa ouvir de outros homens que eles passam pela mesma situação. O formato é mais acolhedor e tem mais identificação do que o privado. E digo pela experiência: quando alguém se sente na confiança de compartilhar, pode levar isso para outras esferas." 

*Depoimentos coletados por Alexandre Pottaschef

Créditos

Imagem principal: Luiz Maximiano

Vitor Maximiano

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