por Pedro Só

Em paralelo à “Brazilian storm” no circuito mundial, uma turma do Rio de Janeiro vive de viajar por lugares paradisíacos em busca de ondas perfeitas,
em paz com o espírito original do surf

“Eu não tenho religião... Quer dizer, o surf é a minha religião”, corrige Bruno Santos, em ligação de Bali. Nascido em Niterói (é local de Itacoatiara) há 34 anos, ele se mudou para a ilha paradisíaca da Indonésia com a mulher e as duas filhas, de 7 e 11 anos, em março. “A ideia inicial era morar por um ano, mas já pensamos em ficar aqui em 2018 também”, conta o especialista em tubos e surfista dos mais admirados por seu estilo extremamente plástico mesmo em meio a morras perigosas como as de Teahupoo, no Taiti. Bruno encara o futuro – e as ondas que pega – desse jeito sem pressão, que exemplifica a vibe de uma turma de free surfers do Rio de Janeiro que leva uma rotina de sonho, viajando em busca de ondas perfeitas em cenários belíssimos, selvagens e exóticos, sem precisar se estressar com competições.

Patrocinadores (graúdos e miúdos), exposição de conteúdo em redes sociais e programas como os do canal pago Off ajudam Bruninho (como ele assina no Instagram, @bruninhosantos), Pedro Scooby, Marcelo Trekinho, Jerônimo Vargas, Gabriel Pastori, Eric de Souza, Ian Cosenza, Felipe “Gordo” Cesarano e outros surfistas que cresceram experimentando o oceano e a natureza cariocas a desfrutar de um lifestyle que os deixa em paz com o espírito original do surf – e desperta, claro, imensa inveja mesmo em quem nunca tentou ficar em pé em cima de uma prancha.

Não é por acaso que Scooby, 28, tem tatuada no braço a frase “Os escolhidos de Deus incomodam na Terra”. “Costumo dizer uma coisa para quem acha que a gente não tem estresse: poucos fazem ideia do que pode passar na nossa cabeça na noite anterior a encarar um dia em Nazaré [em Portugal, onde estão as maiores ondas surfáveis do mundo]. Coloca essa pessoa debaixo de um mar de 80 pés [24 metros], debaixo da espuma”, provoca ele, pelo telefone, da 
Namíbia, onde passou alguns dias desfrutando das esquerdas de Skeleton Bay, com tubos de mais de 2 quilômetros. Em um deles, ajudou a socorrer e tirar da água um bodyboarder desacordado.

Mesmo movido pelo prazer – “Um dia de altas ondas eleva o espírito e aumenta o astral mais do que qualquer coisa. E hoje, como minhas filhas surfam também, só de vê-las na água a sensação já é tão boa quanto a de pegar um tubo gigante” –, Bruno Santos lembra que até um flow tão livre assim, às vezes, pode beirar o vício. Se a previsão do tempo aponta a formação de ondulação maior em determinadas regiões, o free surfer se vê instado a atender uma quase emergência. “Quando o swell chama, a gente tem que ir, perde casamento do amigo, festa de família”, ele conta.

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Avisado por e-mail pelo big rider Carlos Burle, Scooby pulou repentinamente da lua de mel em Bora Bora para o Taiti, em 2011, para aproveitar dias de mar espetacular em Teahupoo. Sua mulher, Luana Piovani, teve de compreender. “Ela entende o que eu faço, já me conheceu nessa vida”, comenta. 
Patrocinado pela Nike desde 2006, com mais de 620 mil 
seguidores no Instagram e exposição como celebrida­de na condição de marido da atriz, Scooby tem hoje um salário comparável aos surfistas que disputam o WCT, a elite do esporte. “Não é tanto quanto o [Gabriel] Medina ganha, mas, com o apoio de marcas fortes como Nike, Apple, Azzaro e Evoke, chega a um bom patamar.”

Sem pódio, sem troféu 

Competir nunca foi a de Scooby, que desde moleque é dado a atitudes midiáticas, como ser fotografado pelado fazendo uma manobra acrobática. “Meus ídolos sempre foram caras rebeldes do free surf, como Dane Reynolds e Jamie O’Brien”, diz, citando dois norte-americanos que também escolheram um caminho mais próximo da origem não competitiva do surf: 
Dane, 31, um californiano cultuado pelo estilo criativo e pela personalidade forte, e Jamie, 34, um havaiano que fez carreira à margem do circuito mundial, projetando-se a partir de vídeos e filmes.

Não que as competições sejam um lugar em que esses surfistas não pisem. Bruno Santos, por exemplo, tem todo um relacionamento com a etapa de Teahupoo do wct. Em 2008, com 25 anos, ele foi convidado a participar e ganhou a prova, uma das mais tradicionais do circuito. A vitória histórica (Bruno foi o primeiro brasileiro a ganhar lá), porém, não tirou a leveza do surfista, que já tinha decidido que o surf seria sua fonte de renda e de felicidade. Apelidado de Mr. Teahupoo, deu entrevistas afirmando “nem ter dado muito importância” para ter sido campeão. “Eu só queria surfar”, disse na época – o que continua fazendo, nove anos depois. “Não foi planejado, mas fui conquistando devagarinho meu espaço. Hoje as mídias sociais conectam todo mundo, e as melhores ondas que eu pego são logo divulgadas. Isso facilita tanto para o público quanto para o patrocinador”, conta Bruno, a dias de atuar como técnico em um surf camp no arquipélago de Mentawai, na Indonésia.

“Quando o swell chama, a gente tem que ir, perde casamento do amigo, festa de família”

Já Marcelo Trekinho, 30, firmou seu caminho como free surfer a partir do audiovisual, aproveitando um estilo com muitos aéreos e inovações. Depois do filme Surf Adventures 2, em 2009, e do 
reality show Nas ondas de Noronha, da TV Globo, no ano seguinte, ele foi se desinteressando 
do surf competitivo. “O WQS [divisão de acesso ao circuito mundial] é muito cansativo, e eu comecei a não passar nas baterias. Perdia muito e não tinha mais a mesma vontade. Falei com meu patrocinador e me disseram: ‘Relaxa, vai fazer outras paradas’”, conta Trekinho. Ele recuperou o espírito das primeiras surf trips, na adolescência – “Um mês largado na Guarda do Embaú com meu amigo Marcos Sifu” –, emendando projetos televisivos.

O mais emblemático foi A vida que eu queria, exibido pelo canal Off. O programa foi criado por Bruno Pesca, amigo de Trekinho dos tempos de escola que, depois de formado, foi para a faculdade de Economia e trocou a praia por um banco de investimentos. Os dois se reencontraram em 2011, depois que Bruno já havia sido demitido por conta da crise financeira, para uma viagem que os levou ao Havaí, à Micronésia e à Indía, onde Trekinho traçou a cobiçada onda de Satya’s Point. “Meu sonho original era esse mesmo, surfar ondas perfeitas”, define. O programa já vai agora para sua quinta temporada, com entreia prevista para o ano que vem.

É na TV que esses surfistas do Rio aparecem como uma turma para quem está fora das viagens que eles fazem. Trekinho pode ser visto atualmente na nona temporada de Diário das ilhas, também no Off, estrelado ao lado de Felipe “Gordo” Cesarano, 30, e Gabriel Pastori, 28. Em 2018, Pastori, Cesarano, Trekinho e Eric de Souza, 29, devem estar juntos em um projeto, ainda sem nome definido, sobre “vacas” do surf e de outros esportes, como bodyboard e skate. “Infelizmente não dá pra ser soul surfer apenas. Eu dedico boa parte do meu tempo a gerar conteúdo. O canal Off, nesse sentido, foi um marco para viabilizar nossos projetos”, diz Pastori.

Antes, em 2014, Eric e Pastori rodaram outra série que resumia bem o espírito do free surf e a alma do esporte, Fugindo do crowd, do canal Wohoo. A produção foi feita com Pedro Tojal, 34, um fotógrafo e diretor carioca – e surfista, claro – que também faz parte dessa turma. “Ele foi o capitão da nossa loucura. As produções eram mais baratas, e o espírito era de galera mesmo, muita amizade”, conta Eric.

Peixe dentro d'água

Filho do Rico de Souza, lendário surfista dos tempos românticos do esporte no Brasil, Eric se destacou desde os 14 anos, e teve o apoio do pai para sair do tradicional colégio Santo Agostinho, inflexível na conciliação do calendário de provas com os compromissos do garoto com competições. “Eu até gostava de disputar campeonatos, mas o que almejava era fazer o que via caras como Andy Irons fazer nos filmes de surf”, lembra Eric. Andy, um havaiano que morreu em 2010, aos 32 anos, esteve em várias produções que mostravam o lifestyle do surf internacional (uma dessas, Blue horizon, de 2004, dirigida por Jack McCoy, constrastava a sua busca incansável por bater Kelly Slater com a vida de Dave Rastovich, um free surfer neozelandês que cons­truiu uma carreira de 20 anos sem jamais se preo­cupar com troféus). 

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Privilegiado, Eric conheceu o Havaí muito cedo, ciceroneado pelo pai. “Lá eu senti o gap entre o surf das competições no Brasil e o surf que a natureza me exigia”, diz. Aos 19, sofreu um trauma que o afastou do caminho das competições. “Tinha vencido uma etapa do WQS e fui viajar. Me deram um calote na Austrália e tive que largar o campeonato, voltei sem dinheiro. Tive até úlcera de tanta raiva.” Foi então que a precariedade do surf no Rio de Janeiro acabou dando uma forcinha. “Os campeonatos locais meio que acabaram, e na pilha do Tojal e do Gordo, fomos para Teahupoo. Ali, depois de quebrar quatro pranchas, vendo o Laird Hamilton na água, pensei: ‘Eu não surfo nada!’”. Mas o free surf na companhia de amigos, em esquema de absoluta simplicidade, movido pelo prazer informal e com orçamentos precários teve efeitos benéficos no rendimento dentro d’água. “Evoluí muito assim.”

“É muita história pra contar! Mesmo os mais bem-sucedidos em outras profissões não têm tudo isso no currículo”

O gosto por lugares selvagens levou Eric a grandes aventuras – e perrengues – que depois se tornam histórias inesquecíveis. “Acampamos na ilha de Panaitan, ao oeste de Java, para surfar uma onda chamada Apocalypse, e fomos de barco explorar um pico mais adiante. Como o mar estava incrível, surfamos até de noite”, ele conta. “Na volta, quase naufragamos. O barco por muita sorte não bateu nas rochas. Um dos caras que estava conosco explodiu: ‘Vocês são malucos! Isso não vale a pena!’. Mas deu certo”, ele conta. “A gente viaja para esses lugares e não é com um chefe chato ou com colegas de trabalho. É todo mundo sangue no olho, amigos. E assim vamos conhecendo gente e construindo uma teia de amizade em todo o mundo.”

No programa que o Off exibiu no ano passado, Pedro vai pro mar, Eric esteve com Scooby em uma ilha que quase ninguém surfou, Trindade, a 1.200 quilômetros da costa brasileira. “Achamos uma onda alucinante, aprendemos muito com os biólogos e fomos muito bem tratados pelo pessoal da Marinha. É um lugar muito remoto, você fica se sentindo em um cenário pré-­histórico”, lembra. “É muita história pra contar! Mesmo os caras mais bem-sucedidos em outras profissões, muito mais ricos, não têm tudo isso no currículo”, completa.

Gabriel Pastori não compete profissionalmente desde os 18 anos. Depois de fazer um intercâmbio na Austrália, ficou sem patrocínio e, enquanto tentava avançar na faculdade de publicidade, trabalhou como dublê de surfista na Globo, em cenas do personagem de Marcos Palmeira em Três irmãs (2008), antes de enveredar em projetos de surf com audiovisual. Ele produz, faz surf camps e atua junto a agências de viagem. “Os patrocínios são renovados anualmente, então temos que fazer girar a coisa sempre. E traçar um plano B para depois de uma certa idade, também. O Gordo, por exemplo, tem restaurante. Cada um se vira do seu jeito.”

Quando alguém lhe diz, de novo, que ele leva a melhor vida, Gabriel concorda e ri. “É mesmo! Todo dia de manhã eu agradeço por poder sobreviver assim.” Eric de Souza vai além: “Não tenho estabilidade, não tenho seguro-saúde do patrocinador. Mas, se eu morrer amanhã, serei o defunto mais feliz do mundo, acho que vou com um sorriso pro caixão”.

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