por Décio Galina
Trip #252

A Trip foi a Santos conhecer os homens que movem o maior complexo portuário exportador de açúcar do mundo

"Ponho açúcar no café. Uma colherzinha. Mas pode variar conforme o tamanho do copo. Na verdade, nem me preocupo com isso. Tenho 62 anos e tô inteiro, desse jeito; pressão normal, tudo certo. Parei de jogar na várzea porque contundia toda hora; e agora tenho mais tempo para ficar na praia, tomando água de coco, ou no shopping, com os amigos, vendo o movimento. Meu único problema são três hérnias de disco e um bico de papagaio, mas tudo bem, isso é comum, 90% dos estivas têm esse tipo de coisa.” Marco Souza, estivador do porto de Santos desde 1984, fala das dores da vida enquanto um jato arenoso é cuspido violentamente por uma dala sobre imensas dunas douradas que crescem a cada segundo no porão 3 do Serendipity – navio grego com 190 metros de comprimento e 21 tripulantes (comandante ucraniano, eletricista búlgaro e o restante, filipinos) que veio com seus cinco porões vazios do Congo para retornar à Nigéria recheado de 44.500 toneladas de açúcar. Encostou no porto de Santos no dia 14 de fevereiro, às 2h10; partiu dia 16 de fevereiro às 19h10. A reportagem da Trip subiu a bordo no dia 15, antes do almoço.

Diretor do Sindicato dos Estivadores do Estado de São Paulo, Marco Souza está à frente de uma equipe de três estivadores que trabalha no navio. “Na época da sacaria, em uma embarcação desse porte trabalhavam 60 estivas”, compara. Ele se refere ao período até o ano de 2010, quando o açúcar chegava ao porto de caminhão, em sacos de 50 quilos, e os estivadores formavam duas linhas paralelas para levá-lo até o porão. Frente a frente, eles arremessavam a carga para a dupla seguinte, compondo uma engrenagem humana vibrante, onde grandes homens precisam vencer a inércia de sacos muito pesados. “É um trabalho que passa de geração para geração. Meu pai foi chefe de encanadores da Petrobras, morto em um incêndio ao tentar salvar um amigo. Meu avô de criação era estivador, então, desde cedo descobri o valor da profissão. Meu filho, hoje com 27 anos, me pediu para ser estiva, mas, como tinha jeito para o futebol, preferi dar apoio para ele seguir no esporte.”

VIDA DE FESTIVA
A aposta de Marco deu certo: Igor jogou no juvenil do Santos, foi campeão da segunda divisão estadual com o União Mogi e engatou uma carreira internacional que o levou para Ucrânia, China, Tailândia e Romênia – agora está no Líbano. As outras duas filhas – a professora Daniela, 38 anos, e a funcionária pública Thais, 28, moram com os pais (a mãe, Ediva, está casada com Marco há 39 anos), no bairro de Aparecida, em apartamento próprio, de 90 metros quadrados, três quartos e duas suítes. “Vendi um Honda Civic e agora vou comprar um novo. Estou namorando um Fusion, mas acho que não vou ter condição para isso.” Marco parece hipnotizado pela ducha de açúcar que dispara pela dala sem descanso. Fala como se estivesse na sala de casa.

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“Construí minha vida na estiva.” Marco começou em 1984; passou a registrado em 1992, após 2.700 horas de trabalho.
Moisés de Souza Brasil, 44 anos, na estiva desde os 21, está na equipe de Marco naquela manhã de segunda. É mais um a falar com paixão sobre a profissão. “Estou trabalhando duro para meu filho [Luiz Paulo, 5 anos] ter um bom estudo e seguir o caminho que desejar. Mas, se quiser ser estiva, terei o maior orgulho.” Moisés monitora a situação das embarcações desde a aproximação até o berço (como é chamada a vaga que o navio estaciona no porto). “Tá vendo aquele ponto vermelho lá longe? É o próximo navio que vai passar por nós e baixar âncora bem aqui ao lado”, explica o estiva.

O ponto vermelho lá longe logo dá as caras, é gigante, e manobra na vaga ao lado com maestria. Em terra firme, outros funcionários pegam os cabos lançados pela tripulação. Mais ao fundo se vê o armazém de onde vem o açúcar: ele sai a bordo de esteiras que começam sua viagem logo abaixo do piso, um compartimento é aberto para o produto escolar e, a partir daí, o açúcar sobe até a dala, de onde continua jorrando sem piedade.

No navio onde estamos, começa a chuviscar e isso causa uma correria da tripulação atrás do funcionário do porto que está em contato por rádio com o operador do shiploader, uma espécie de guindaste que comanda a posição da dala – de tempos em tempos, ela muda de lugar para esparramar o produto de forma homogênea no porão. Eles pedem para (na verdade, mandam) suspender a operação, pois não podem deixar molhar o açúcar. Decidem que vão fechar metade da tampa do porão 3, mas vão deixar a outra metade aberta, engolindo açúcar sem parar da dala. Maurício Andrade, 38 anos, da equipe do shiploader, conseguiu convencer os filipinos a continuar o carregamento. “Expliquei para eles que conheço bem o céu da região. Caíram uns pinguinhos, mas não vai chover.” De fato, não caiu mais nenhuma gota – pelo contrário, abriu um sol forte.

MARTIM, CANAVIEIRO
Um ambiente frenético envolve o porto e seus arredores. Movimentação de guindastes que parecem personagens de Star Wars; trânsito de caminhões enormes sobre velhos paralelepípedos em ruas esburacadas e onduladas; pessoas com a pasta debaixo do braço que usam pequenos barcos apenas para atravessar o canal e seguir a vida do outro lado. O entra e sai de mercadorias e as diversas operações que acontecem simultaneamente exigem um trabalho coletivo contínuo, um mundinho à parte onde nada se faz sem depender do outro. “A melhor coisa de ser estiva é a oportunidade de não ter rotina, de ser avulso, sem a obrigatoriedade de trabalho, mas com todos os direitos garantidos”, continua Moisés.
A efervescência do porto de Santos se entende ao observar os números que comprovam o protagonismo da cidade no cenário nacional. A pedido da reportagem da Trip, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) levantou que em janeiro deste ano Santos exportou 949.111 toneladas de açúcar a US$ 266.115, o equivalente a 61,5% do total exportado. Depois de Santos, aparecem como maiores exportadores de açúcar os portos de Paranaguá (PR) e de Maceió (AL), com 24,3% e 9,5%, respectivamente, de participação das vendas. A relevância de Santos fica ainda maior quando analisamos o balanço de 2015: 71,2% de participação ao exportar 17.447.043 toneladas de açúcar . Segundo a Codesp (Companhia Docas do Estado de São Paulo), Santos é o maior complexo por-tuário exportador de açúcar no mundo.

Na lista dos produtos que o Brasil mais exportou em 2015, o açúcar está na quinta colocação, atrás da soja (vendeu quase US$ 21 bilhões, o que representa 10,98% das exportações do ano), ferro, petróleo e carne de frango congelada. Ano passado, a venda de açúcar para o exterior rendeu US$ 5.9 bilhões (3,9% do total comercializado).
A saída da maior parte do açúcar do Brasil nos tempos atuais acontece a cerca de 10 quilômetros de onde a cana entrou no país em 1532. Foi em janeiro daquele ano que o fidalgo Martim Afonso de Souza fundou São Vicente, a primeira vila do Brasil. Ele comandou a expedição portuguesa que tinha a missão de colonizar a nova terra (os portugueses já estavam preocupados com os franceses, que começaram a explorar o pau-brasil). Martim Afonso saiu de Lisboa em dezembro de 1530 à frente de uma frota de cinco embarcações (duas caravelas, duas naus e um galeão), levando 400 pessoas a bordo. Uma vez nos trópicos, além de introduzir a cana, o fidalgo se associou ao holandês Johann van Hielst para erguer o primeiro engenho do Brasil.

Os portugueses tinham know-how em cana desde o século anterior, quando o infante Dom Henrique importou as primeiras mudas da Sicília para plantar nas ilhas dos Açores e da Madeira. No Brasil, o plantio trouxe “consequências amargas”, como descreve Eduardo Bueno no livro Brasil: uma história: “Como dividendos, veio a devastação das matas, a escravização indígena em larga escala, os desatinos do monopólio e da monocultura, a infâmia inominável do tráfico negreiro, a vertigem do lucro fácil, o latifúndio, a pirâmide social exclusivista, a ganância desenfreada...”.

DE VOLTA AO SAMBA 
Marco Souza trabalhou bastante durante o Carnaval, mas ano que vem vai ser diferente: ele vai voltar para a avenida. “Dei um intervalo de dois anos, e agora vou voltar. Vou sair pela Tom Maior.” Marco é compositor de samba--enredo desde os “20 e poucos anos”. Começou na Camisa Verde e Branco (SP), fundou a União Imperial (em Santos) – “fiz o primeiro enredo e o primeiro samba” – até que veio o convite para integrar a ala dos compositores da Gaviões da Fiel (SP), escola que defendeu por 12 anos. “Na estiva, tem muita gente que é do samba.” A conversa com Marco segue com a movimentação do porto ao fundo. Uma atmosfera realmente envolvente. Ou, como definiu João Carlos de Oliveira Ribeiro, secretário--geral do Sindicato dos Estivadores, “o porto contamina, filhão”. Isso fica ainda mais claro quando pegamos a estrada e subimos a serra de volta para São Paulo. João Carlos tem razão. O porto pega. Além da história dos estivadores apurada, retornamos com outras pautas de reportagem na mente. Na cabeça, não só ideias. Ela também está impregnada de grãos de açúcar que deveriam ser exportados, mas voaram da dala e ficaram por aqui mesmo.

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TRËMA

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