Angélica: depois daquele acidente

por Milly Lacombe
Trip #260

O pânico passou a visitar a apresentadora depois que ela sobreviveu à queda de um avião. Em franco desequilíbrio, ela foi buscar na meditação a saída para o turbilhão

Ao realinhar sua respiração, Angélica tomou contato com questões íntimas e incômodas que haviam sido deixadas de lado por décadas de encenação de uma vida perfeita para as câmeras. Agora, ela quer ir mais fundo – para dentro.

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Talvez tudo tenha começado a mudar quando Angélica ouviu o marido dizer, com uma estranha calma na voz, quatro palavras que ela teria preferido nunca escutar: "O avião vai cair". Nessa hora, vendo a seu lado as três crianças que trouxe ao mundo e percebendo que morreriam todos (porque, afinal, quem sobrevive a um acidente de avião?), um enorme desespero bateu. Angélica não queria morrer, não naquela hora, não daquele jeito. Diante do inevitável, ela gritou. E depois gritou ainda mais alto. E então, enquanto o solo se aproximava cada vez mais rapidamente, o impossível aconteceu: ela aceitou a morte e foi inundada por uma paz que jamais havia sentido. De repente tudo a sua volta era silêncio, um silêncio brutal, até porque quando os dois motores de um avião param de funcionar o que se escuta é o mais profundo silêncio. Estranhamente Angélica parou de gritar, os filhos pararam de chorar, as babás pararam de rezar. E o avião caiu. Foram muitas batidas no solo até que ele parasse totalmente. Assim que a aeronave parou de quicar, a gritaria voltou. Estavam todos vivos, mas para sempre alterados.

Era dia 24 de maio de 2015. Angélica, Luciano Huck, os três filhos e as duas babás estavam saindo de uma fazenda no Pantanal a caminho do aeroporto de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, de onde pegariam o avião da família para voltar ao Rio, onde moram. Os dias que se seguiram ao acidente foram de euforia, mas em seguida todos começaram a exibir as cicatrizes: algumas aparentes, outras nem tanto. As de Angélica demoraram a aparecer, e quando apareceram a sufocaram: por duas vezes, andando pela rua, ela achou que não era mais capaz de respirar e passou a ser sucumbida por crises de pânico que a aterrorizaram. Alguma coisa tinha saído do lugar e ela não conseguia saber o que era.

Vida loka

No documentário neozelandês Choice (Escolha) – que trata de um tipo de meditação chamada “ascenção dos Ishayas” e que deve estrear no Brasil em novembro – vemos um homem com o macacão laranja de presidiário, detido em uma cadeia de segurança máxima no México há dez anos, e custamos a acreditar no que ele diz, que é uma coisa mais ou menos assim: “Aqui dentro eu aprendi a meditar, e então entendi o que era liberdade, porque pela primeira vez na vida me senti livre”. Angélica mora em uma casa que mais parece um resort de tão grande e elegante. Dentro da propriedade trabalham muitos empregados, há luxo e espaço. Tem uma raia olímpica, e também seis cachorros, dois pavões e sabe-se lá quantas cobras – os pavões estão ali para dar cabo delas. A casa tem vista para o oceano Atlântico de um lado e para a Mata Atlântica do outro, dentro da qual podemos ver uma pedra de proporções bíblicas, dessas expressões da natureza que nos colocam em perspectiva. É, em contraste, o avesso da cela do presidiário mexicano. Ele se sente livre, Angélica se sente presa. A constatação, trazida à tona pela experiência-limite que ela passou no avião, a apavorou. E ela foi buscar a mesma ajuda do presidiário mexicano: a meditação.

Quando tinha 5 anos Angélica viu o pai levar tiros durante um assalto a sua casa, e se fechou em si mesma. A mãe, a fim de fazer com que a menina reagisse de alguma forma, a levou ao Programa do Chacrinha para que participasse de um concurso de beleza, e o resto da história todos sabem: a Angélica da TV, uma mulher que não tem memória do que significa não ser famosa, nasceu ali, e hoje comanda o programa de variedades Estrelas, exibido aos sábados na Globo.

Casada há 12 anos com o apresentador Luciano Huck, com quem tem três filhos (Joaquim, 11; Benício, 9; e Eva, 4), e aos 43 uma mulher muito bonita, Angélica poderia apenas flanar pela vida. Mas, como diz o ditado, “os fados guiam aqueles que assim o desejem; aquele que não o deseja eles arrastam”. Arrastada pelo turbilhão, ela iniciou a viagem mais longa de sua vida, uma que a levou para dentro e para o silêncio, a fez rever valores e relações. Agora ela está pronta para renascer.

Trip. Não é a primeira vez que uma situação trágica transforma a sua vida. Quando você tinha 5 anos passou por uma que trouxe você até aqui. Agora, você acha que essa segunda pode levar a um lugar de mais significado?

Angélica. A gente não sabe explicar, né? E a gente quer explicar tudo, só que muita coisa não tem explicação.

Em certa escala, todos nós passamos por situações-limite que nos transformam. Pode ser uma doença, a perda de uma pessoa que a gente ama, um acidente de avião. Só que acidente de avião é uma coisa bizarra, porque um avião cair e você sobreviver é bizarro. É bizarro! Se você não tira alguma coisa disso, você é quase um analfabeto da vida.

Hoje, ao olhar pra trás, pra esse dia que foi tão traumático, você entende como ele te transformou? Foi uma coisa muito ruim que se transformou numa coisa muito boa. Ainda não consigo explicar direito, mas me trouxe para um lugar de onde eu estava me distanciando; me trouxe para dentro.

Quanto tempo se passou entre o momento em que você soube que o avião iria cair e ele tocar o chão? Uns 3 ou 4 minutos.

Você teve certeza de que ia cair? Tive. Quando o avião perdeu o motor eu já comecei a rezar, a Lea e a Didi, as babás, também começaram, e aí eu comecei a gritar. Meu filho mais velho foi a primeira pessoa a perceber que o avião tinha um problema. Ele olhou para mim e falou: "O avião vai cair e eu não quero morrer". Comecei a rezar a Ave Maria, ou a gritar, sei lá, e o Luciano estava de costas pra gente falando com o piloto, tentando entender o que estava acontecendo. Mas quando gritei para o Luciano dizendo "coloca esse avião no chão! Pousa esse avião!", ele virou para mim e disse: "A gente não vai pousar, a gente vai cair". Tive certeza de que a gente ia cair porque ele é o mais otimista, desses que quando tem uma turbulência horrível fala sempre na maior calma: "Vai dar tudo certo". E, quando vi na cara dele que a gente ia cair e que ele não tinha nenhuma calma, apesar de estar falando isso calmamente, entendi que íamos morrer. Um dos meus filhos chorava muito, o outro estava paralisado, a Eva era muito pequena e estava no colo da babá. Por algum motivo, o Luciano tirou ela do meu colo e deu para a babá que estava no banco atrás do meu, e tinha um apoio, que era o meu banco, então quando o avião caiu ela fez um casulo para Eva.

O que mais você lembra? Lembro que, quando faltava tipo 1 minuto para o impacto, aquela gritaria toda lá dentro, e o Luciano falou "a gente vai cair", o avião perdeu o outro motor e aí foi um silêncio absurdo. Sem nenhum motor fica mesmo um silêncio profundo, claro, mas ao mesmo tempo de repente todo mundo ficou quieto, quem estava chorando, quem estava rezando, o Joaquim, que estava aos prantos, todo mundo silenciou. E foi um silêncio muito bom, sabe? Depois a gente falou sobre isso e o Luciano sentiu a mesma coisa, um sentimento de coisa boa, uma paz enorme, tipo "vamos deixar rolar", tipo "seja feita a tua vontade". Quando o avião bateu no chão pela primeira vez, porque ele bateu algumas vezes no chão, meu cinto arrebentou e eu bati a cabeça numa janela e depois na outra, rodei de um lado para o outro. Se minha filha estivesse no meu colo ela ia voar lá pra frente, que foi o lugar mais destruído do avião, o piloto se machucou justamente porque o avião bateu de frente. E aí quando o avião finalmente parou a gente saiu do silêncio e eu comecei a gritar tudo de novo, meu filho começou a chorar de novo, tinha gente com sangue...

Mas quando você aceitou que ia morrer sentiu apenas uma coisa boa. A gente tem medo da hora da morte, pensa como é que vai ser a nossa e essas coisas, mas hoje acho que quando você vai morrer de alguma forma vem essa paz, e tá tudo bem. Agora a Ave Maria, coitada, tá surda porque eu gritei para ela de um jeito maluco. 

O que aconteceu depois que o avião caiu? A gente caiu num lugar que não tinha comunicação, mas um carro estava passando lá longe e o motorista viu um avião caindo, e ele entrou no meio daquele descampado que era longe da estrada. Eu estava com muita dor, distendi um músculo da perna, mas na hora não sabia o que era e parecia uma dor grave. O Luciano com muita dor nas costas e as crianças com nada, mas a babá tinha um machucado na boca. Na hora que parou saiu todo mundo correndo do avião, mas eu voltei para pegar a bolsa e as coisas da Eva, um absurdo porque o avião podia explodir, mas foi quando eu voltei e olhei o avião cheio de sangue, de terra, uma imagem meio de guerra, que caiu a ficha do que realmente tinha acontecido. A gente foi para um hospital em Campo Grande. Me transferiram numa maca de avião para o Einstein, em São Paulo, e o Luciano foi numa UTI móvel.

Quando você entendeu que alguma coisa tinha sido chacoalhada em você para sempre? Muito tempo depois. Na verdade, primeiro veio a euforia de estarmos vivos, muitas mensagens de amor, muita coisa boa das pessoas. Mas o Luciano ficou três meses fazendo fisioterapia todos os dias para evitar uma cirurgia na coluna, foram meses tensos, ele e eu preocupados com as crianças, com a reação delas, indo a psicólogos. Então teve um acomodar. Foi uma época em que eu estava mais sensível, chorando por bobagem, mas para eu entender que tinha me atingido mais profundamente demorou uns meses.

E atingiu como? Comecei a ter sintomas de medo. Teve uma viagem que a gente fez para Nova York e eu estava aparentemente bem; sempre gostei muito de viajar para fora do Brasil porque a gente vai ao mercado, a gente almoça e janta junto, é uma vidinha muito normal. Deixei o Luciano com as crianças e fui fazer supermercado porque a gente tinha alugado um apartamentozinho com cozinha. Fui andando sozinha, sem segurança, sem motorista, sem ninguém. Quando cheguei perto do Central Park comecei a sentir uma coisa estranha, uma batedeira esquisita no peito, uma coisa incômoda, paniquei. Não conseguia andar nem pra frente, nem pra trás, nem falar, nem pegar o telefone, nem nada. Uma hora consegui ligar para o Luciano e ele foi me pegar. Voltei para o apartamento e comecei a sentir uma coisa muito estranha. A partir desse dia eu não conseguia ir sozinha para lugar nenhum, tinha sempre que ter alguém.

Você tinha medo de ter medo? Sim, e a pior coisa é você ter medo de ter medo, é o pior medo.

Era a primeira vez que você sentia essas coisas? Sempre fui uma pessoa com medo das coisas, mas depois [do acidente] fiquei um pouco mais sensível. Dizem que depois de um episódio muito traumático você demora um tempo e aí vêm alguns sintomas psicológicos. Falei com o médico e ele: "Vamos tomar um remédio, vamos não sei o quê...". Não sou muito fã desse negócio de remédio, nunca tomei, então falei: "Não quero".

Que tipo de ajuda você buscou? Voltei a fazer minha análise. Comecei a fazer muito pequena, sempre fui uma pessoa muito pé no chão, depois dos filhos fiquei mais ainda, então não fazia sentido pra mim aquela sensação. Pouco depois do episódio de Nova York a gente viajou para esquiar e eu estava num museu com as crianças e tive de novo uma crise que não me deixava respirar. Eu pensei: "Tá errado isso". Não consegui esquiar, fiquei dez dias dentro da casa. Aí comecei a receber uns sinais: um amigo me deu um DVD de meditação – se chama Connection, é sobre meditação transcendental [a técnica criada pelo guru indiano Maharishi Mahesh em 1958], outro falou que fazia meditação... Eu só fui acreditar na tal da meditação quando vi em um documentário alguns médicos falando que resolvia mesmo. Depois fui fazer um curso de três dias na Arte de Viver, e adorei. Comecei a fazer a meditação, mas ela não me pegou, fui largando de algum jeito. E alguém, assim do nada, porque nem sabia que eu fazia, falou: "Você conhece o Kléber [Tani], professor de meditação no Rio há muitos anos?". Pesquisei na internet a linha dele, criada pelo Maharishi, e aquilo me pegou de vez.

“Comecei a ter sintomas de medo, a a sentir uma coisa estranha, uma batedeira esquisita no peito, paniquei”
Angélica

Então a meditação curou o pânico? O pânico nada mais é do que você perder o controle da respiração, e a meditação encaixou novamente a minha respiração. Eu estava numa ansiedade, numa coisa esquisita, e por isso comecei a respirar errado. Mas percebi o quanto tudo isso nascia na minha cabeça, e o quanto eu consigo dominar a minha cabeça, e não deixar ela me dominar. Nós somos uma coisa só, não existe isso de a cabeça estar maluca e o corpo estar são.

Faz quanto tempo que você engrenou na prática? Uns seis meses, a meditação. A ioga faz dois meses, ashtanga e a hatha. Medito no meu quarto, medito nesta sala onde estamos agora e na academia. Outro dia meditei no meu quarto e tinha uma luz linda entrando, então fiz uma foto e botei no Instagram. Quase não teve likes, ao contrário de quando coloco foto malhando. Eu não sei por quê. As pessoas não falam muito sobre meditação. Queria entender que medo é esse, o que é que é. Medo do desconhecido? É medo de entender a cabeça? É medo de afundar nessa história?

Se você falar "eu faço meditação" o interesse é pequeno. Já se falar "coloquei silicone"... É superlouco. E meditação muda a vida da pessoa…

E muda a realidade ao nosso redor. Muda tudo. Muda a família. Quando comecei a fazer o curso, o Kléber falou: "Você vai ver que muda a sua casa porque vai mudar você, e você é a sua casa". E mudou. Mudou o meu humor, óbvio, porque você fica mais calma em todos os sentidos, com as crianças e tals. Não fico falando para eles meditarem, mas eles sabem o horário que eu medito, e fazem silêncio. Outro dia eu cheguei em casa e a Eva estava assim [faz um lótus]. Perguntei: o que você está fazendo? E ela: "Meditando. Ommmm". Os meninos não meditam ainda, mas sei que estou plantando uma sementinha na cabeça deles. O Luciano fez o curso há um mês. Meditar junto é outra história, outra energia. A gente consegue meditar junto de vez em quando e é um barato, ainda mais quando você tem muita intimidade com a pessoa, parece que a meditação é mais profunda, a gente sem pensar abre o olho junto, a gente sente as coisas juntos, tem muita ligação.

Meditar junto é se encontrar no silêncio, e a gente aqui fora se encontra no barulho. Exatamente, meditando a gente se encontra na essência. Acho até que mudou a minha relação com ele. A gente é só energia, né? E quando a gente gosta de alguma coisa a gente fica apaixonada por aquilo e vira o chato que só fala disso e quer doutrinar todo mundo, então comecei a me policiar porque senão as pessoas não levam o assunto a sério. Mas chegar a esse ponto em que a mente se cala, em que você transcende por instantes que seja, é muito bom.

Outro dia alguém me disse que se tivesse um amigo que falasse para ele as coisas que a mente dele fala, ele romperia para sempre. Isso! A mente é cruel. O Kléber me disse: "Quando você começar a meditar regularmente, durante o dia de repente vai vir aquela sensação da meditação do nada, e você vai ficar meio em êxtase". E aí começou a acontecer! É muito louco, é químico mesmo, você sente o mesmo barato.

É como se você finalmente se sentisse conectado a tudo... Esta entrevista vai ficar tipo uma seita em nome da meditação. É! Duas insuportáveis falando o tempo todo de meditação, e o leitor: "A gente não quer meditar! A gente quer ir pra balada, a gente quer tomar MD, a gente quer ficar louco" [risos]. Mas sabe o que acontece? O mundo de hoje é muito difícil porque a internet que a gente ama é justamente o oposto da meditação, ela te afasta muito de você se você não souber usar com moderação. A gente vai botando informação para dentro e se você não limpar a cabeça uma hora vai explodir.

Você é uma mulher linda, tem um casamento que é idealizado, é famosa, milionária, mora nesta casa que mais parece um resort, e o drama da experiência humana pegou você mesmo assim. Mas é assim porque a gente é humano. Somos todos essencialmente iguais. A coisa mais absurda que existe é a busca do poder e é o que todo mundo quer hoje, no celular, na internet, em todo lugar. Você faz uma selfie, você trabalha a foto inteira, coloca filtro e posta, e alguém vai te ver como aquilo que você resolveu ser naquele momento. Na internet é isso, você pode ser amigo de todo mundo, você pode ser linda, você pode tudo de uma forma totalmente rasa, superficial e irreal. Lidar com essa sede de poder, com o ego, é um negócio muito difícil; é um trabalho pra mim, pra você, pra qualquer um. Quem não gosta de ser elogiada? Quem não gosta de se ver linda numa foto? É humano, é normal, mas você tem que ter a consciência de que isso é só isso e de que não é real. A real é outra coisa.

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Qual é a real? A real pra mim é minha família, são os bichos aqui em casa, meus amigos, é deitar a cabeça no travesseiro feliz porque consegui meditar, buscar meus filhos na escola, trabalhei um pouquinho, falei com um amigo ou outro, isso é bom pra mim. Pode ser aqui no que você chamou de resort ou pode ser numa viagem, num hotel, num quartinho, em qualquer canto. A vida vai levando a gente para uma coisa grande até que você percebe que é só uma coisa grande, e que o que te faz feliz não é isso. É o que estou vivendo hoje. Tem gente que busca a bolsa Chanel, ou casar com homem rico para ter bolsa Chanel. Isso, para ela, parece a felicidade. Mas a gente sabe que é mentira.

“A internet que a gente ama é justamente o oposto da meditação, ela te afasta muito de você”
Angélica

Mas somos encorajados a pensar assim. Sim. Vivemos numa sociedade que impõe isso: o belo, o dinheiro, o poder. Claro que a gente escorrega e acaba achando que é isso mesmo. Por isso repito: é um trabalho diário, um exercício cotidiano. A pressão é muito forte. Mas acho que dá para encontrar o equilíbrio, e é isso que eu busco hoje. Trabalho com televisão, com beleza, com ego 24 horas por dia, tenho filhos que convivem com isso. Vou falar para o meu filho: "Sai do Minecraft e vamos ali meditar com a mamãe"? Não rola. O que posso fazer é plantar algumas sementinhas. Em Angra a gente fica num barco só a gente, sem internet, a gente joga uns jogos com as crianças, eles me veem meditando ali no canto e a gente consegue de alguma forma ter eles perto de novo, mostrar alguns valores. Se a gente deixar a pressão entrar acaba engolido por ela. O pânico é a doença do século, as doenças da cabeça são as doenças que estão aí. Por quê? Porque o HD tá cheio, porque a gente tá com muita informação nele. Como a gente vive aqui nessa loucura, temos que nos adaptar; essa é a minha realidade, a dos meus filhos hoje. Um dia pode até ser que um deles fale: "Fui!"; um dia pode ser até que eu fale isso [risos].

São três crianças que carregam uma carguinha própria, filhos de gente muito famosa, em tese podendo ter tudo o que eles acham que precisam… Total.

O sistema econômico cria necessidades ilusórias. E a gente quer sempre mais, né? É isso: você pode ter mais? Então vamos lá. Criança hoje não tem um segundo de ócio porque quando estão sem fazer nada vão para o computador receber informação.
Fico com muito medo de imaginar como vai ser para eles, fico tentando botar os pés deles no chão, mas é difícil demais. Eles têm a carga deles por serem filhos de quem são e têm a carga de viver nesse mundo de hoje. Os meninos estão na análise. O Ben tinha 7 para 8 quando o avião caiu, ele ficou meio assim, tanto que não chorou na hora, foi chorar no hospital quando me viu e eu falei: "Benício, chora, pode chorar".

E a Eva? A Eva faz psicomotricidade com uma pedagoga. Logo depois do acidente ela pegava o aviãozinho de brinquedo, botava um monte de bonequinho nele e fazia o avião caindo. O tempo foi passando e o avião não caía mais, o avião pousava e todo mundo sobrevivia. Agora ela pega o avião e faz assim: "Esses aviões não caem mais, eles não caem!". E toda vez que ela vai entrar num avião pequeno o ritual que ela criou é falar: "Não vai cair, né?", e só então ela entra. Já o Benício entra no avião e fala da decolagem até o pouso sem parar, depois que pousa ele para de falar.

Mudou sua relação com o Luciano depois do acidente? Logo depois do acidente teve o Dia dos Namorados, a gente comemorou, mas foi totalmente diferente. O Luciano é uma pessoa racional e prática, e acho que o acidente tirou ele dessa praticidade toda, trouxe um lado mais sensível. E isso nos aproximou porque ele veio mais para a minha emoção. Mudou muito a nossa rotina. Estamos mais sóbrios, nos valores, no que realmente importa, no que vale a pena fazer, aonde vale a pena ir, quem vale a pena encontrar. Claro que tem coisas que a gente ainda tem que fazer pela profissão, mas a gente evita cada vez mais isso; por exemplo, encontrar pessoas que não vão acrescentar, pelo contrário, que vão tirar energia. Com o que a gente faz da vida a gente tem que engolir alguns sapos, o Luciano ainda tem que engolir alguns porque é o nosso trabalho e radical não dá para ser. Mas acho que a gente tá conseguindo se preservar e ficar mais sóbrio, e eu falo sóbrio não apenas de bebida, mas um pouco isso também. A vida já é um barato, você não precisa de nenhum alterador para viver esse barato.

Me parece que você entendeu que viver cercada de tantas coisas boas não lhe deu liberdade. Não me deu nenhuma liberdade, pelo contrário: me aprisionou. Claro que dou valor porque me transformou na pessoa que sou hoje, conheci um monte de gente bacana, tem um lado que é maravilhoso. Mas aprisionou também. Claro que sim. Nunca tive liberdade para nada, né? Até hoje quando saio de casa sem segurança é estranho porque sempre tive e tenho alguém atrás de mim.

O que é liberdade para você? É poder ver o que você quiser, estar com quem você quiser, ir pra onde você quiser. É isso. O contrário de se aprisionar em um prédio, no play de um condomínio ou em um carro blindado, ou ter que se relacionar com pessoas que você nem gosta tanto, mas com quem precisa fazer um lobby. Quando a meditação te leva a ter um vislumbre dessa liberdade, que é a da mente silenciada, você não quer largar mais. Sou muito grata a tudo que tenho, a tudo que vivi, a todas as concessões que tive que fazer, mas hoje quero viver uma vida mais livre nesse sentido.

Você se sente no meio de uma grande transformação? Acho que o mundo está no meio de uma transformação.

Ainda tem dias que você se vê como o personagem que criou para a TV? Sim, e é uma defesa também; ter um personagem me protege. Você vai dar uma entrevista e você tem uma postura dependendo da entrevista, depende do lugar. Ou você vai numa festa, num lançamento, tem uma barreira ali que te protege.

Você acha que essas transformações te prepararam de alguma maneira para envelhecer? Uma vez eu li que a velhice é a vingança das feias. A beleza é um superpoder mesmo, mas envelhecer nunca me preocupou. Até os 40, me sentia muito nova. Depois dos 40, com filhos, alguma coisa mudou e comecei a ter a real da história: muda o físico, a pele, o pique. Cabelo branco eu não tinha e aí apareceram uns há três meses. E caiu uma ficha assim: "Ah, tô envelhecendo, né?". Uma coisa eu sei: quero envelhecer bem, feliz, saudável. Nunca fiz plástica, prefiro não fazer, mas se precisar vou fazer. Mas acima de tudo quero estar bem espiritualmente. As pessoas que estão bem resolvidas com suas rugas são mais espiritualizadas porque elas estão olhando para dentro.

O que dá prazer pra você hoje? Sinto um enorme prazer em conseguir controlar a minha mente, é um negócio inacreditável.

O escritor americano David Foster Wallace escreveu que a verdadeira liberdade está em educar o pensamento. É isso, e é todo dia. É meditar todos os dias, é um esforço enorme. Ainda mais nós, mulheres, com todos os hormônios, então tem períodos do mês que fico mais louca, mais intensa, mais ansiosa, e aí eu medito mais.

Você chegou a se sentir obrigada a ficar bem diante da "vida perfeita" que parece levar? Isso é insuportável, eu escutei a vida inteira: "Para! Olha só sua família, seu marido, sua casa. Você é famosa. Por que você tá chorando? Não consegue sair na rua, o que é isso?".

Tipo: "Deixa de frescura". Nunca falaram isso, mas você sabe que é o que as pessoas pensam, e aí dá mais angústia ainda. Realmente tenho tudo isso, é verdade. Mas é a condição humana, comum, que leva a gente a parar e pensar o que realmente importa.

Com o perdão do clichê, é como se você estivesse se conhecendo agora? Me reconhecendo. Ter tempo hoje é riqueza. Então me sinto mais rica e essa riqueza está me trazendo oportunidade de ver coisas em mim que são muito legais. Ansiedade eu ainda tenho, na TPM então nem se fala, mas não tenho mais ansiedade para determinadas coisas de trabalho, por exemplo. Não quero mais que esses medos me limitem, quero viver um pouco mais as verdades da vida.

Seria exagero dizer que você iniciou essa viagem, a maior da sua vida, e ela é para dentro? Encontrei uma coisa perfeita que me leva para dentro, para perto de Deus, do Deus em mim, então é uma viagem mesmo. Conseguir transcender essa nossa realidade aqui, ah, não tem nada melhor.

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Créditos

Imagem principal: Jorge Bispo

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