Copacabana é o Brasil do futuro

por Lia Hama

Mais importante especialista em envelhecimento no Brasil, Alexandre Kalache fala sobre os desafios do crescimento da população idosa e o surgimento dos “adolescentes da terceira idade”

Considerado o mais importante especialista em envelhecimento no Brasil e um dos principais no mundo, o médico Alexandre Kalache cresceu num apartamento na avenida Atlântica, com vista para a Praia de Copacabana. Após morar 34 anos fora do país, onde deu aulas nas universidades de Oxford e Londres e dirigiu por 14 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), na Suíça, Kalache voltou ao Posto 5 para cuidar da mãe, Lourdes, 99 anos.

O médico hoje preside o Centro Internacional de Longevidade Brasil, um think tank baseado no Rio de Janeiro, e faz parte do conselho consultivo da OMS. Para saber como será o Brasil no futuro, aponta ele, basta olhar para Copacabana, com seu calçadão repleto de velhinhos. “Hoje 12,5% da população brasileira tem mais de 60 anos. Em 2050 esse índice vai ultrapassar os 30% – o que já acontece em Copacabana e é semelhante ao Japão, país mais envelhecido do mundo”, explica o médico de 71 anos, que alerta para a falta de políticas públicas para lidar com os desafios relacionados à população idosa. De Berlim, ele conversou com a Trip.

Trip.O Brasil apresenta um rápido envelhecimento populacional, decorrente da queda da taxa de fecundidade e do aumento da expectativa de vida. O país está preparado para lidar com essa questão?

Alexandre Kalache. Não. Primeiro por causa da velocidade das mudanças e, segundo, pelo contexto. Eu sempre digo que os países mais bem preparados são os desenvolvidos, que primeiro enriqueceram para depois envelhecerem. No Brasil ainda não resolvemos os problemas sociais do passado e, de repente, temos problemas associados a uma população que envelhece e envelhece mal porque teve um curso de vida de pobreza, não pôde evitar doenças que poderiam ter sido prevenidas e, quando elas ocorrem, não recebem resposta adequada dos serviços de saúde.

“12,5% da população brasileira tem mais de 60 anos. Em 2050 esse índice vai ultrapassar os 30% – o que já acontece em Copacabana e no Japão”
Alexandre Kalache

Qual a importância de uma reforma da previdência? Nossa idade média de aposentadoria é de 54 anos, o que é totalmente insustentável para o sistema previdenciário garantir os pagamentos no futuro. Chegamos a uma expectativa de vida de 76 anos e mantivemos as mesmas regras para aposentadoria dos anos 40, 50, quando a seguridade social foi implantada no Brasil. Em resumo, estamos mal: faltam políticas públicas e condições para que as pessoas possam envelhecer melhor.  

Você criou o termo gerontolescente, o adolescente na terceira idade. Quais são as características dele? O que chamo de gerontolescência começa por volta dos 55 anos e termina aos 75, 80. São mais de 20 anos em que vamos ter a oportunidade de redefinir o que é ser uma pessoa que não é mais jovem, mas ainda não está fragilizada e se recusa a aceitar o estereótipo do vovô velhinho. Esses idosos fazem parte da minha geração de baby boomers, nascida de 1945 a 1965. Temos um passado de ativismo, dos movimentos estudantis nos anos 60 e da revolução sexual. Estamos chegando à velhice de uma forma diferente dos nossos pais, mas é algo que ainda está sendo construído.

Existe uma vontade do gerontolescente de aproveitar “tudo ao mesmo tempo agora”? Sim, cada vez mais vemos pessoas que ultrapassam os 60 anos cheias de projetos, ainda com pique e saúde. Hoje temos respostas bastante eficazes para problemas comuns do envelhecimento, como hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares. Isso faz com que seja liberada uma energia para que a pessoa, mesmo tendo a enfermidade, consiga conviver com ela sem impedi-la de realizar seus projetos. Claro que estou falando daqueles que têm acesso a esses serviços, mas outros milhões de brasileiros estão longe dessa realidade.

“A genética é responsável por 20% da chance de ser longevo e ter boa saúde. Os outros 80% dependem do estilo de vida ”
Alexandre Kalache

Qual a importância dos fatores genéticos, do estilo de vida e da personalidade para viver mais e melhor? A genética é responsável por 20% da chance de ser longevo e ter boa saúde. Os outros 80% dependem do estilo de vida e do comportamento. É ter opções mais saudáveis na hora de comer, evitar o sedentarismo, estar de olho para diagnosticar cedo doenças que podem ser controladas. Além disso, é importante ser resiliente. Todo mundo leva pancada na vida: perdemos amigos e parentes, perdemos o emprego e passamos a ter um status econômico mais baixo do que gostaríamos. Agora, quem tem uma atitude positiva envelhece mais resiliente. Dá a volta por cima e cultiva uma leveza e um senso de humor que são fundamentais. Porque, se você for um adulto ranzinza, já é chato. Agora, se for um velho ranzinza, ninguém te atura.

A mulher lida melhor com a velhice? Em geral, sim. Porque o homem investe tudo no trabalho e quando se aposenta não sabe o que fazer com o tempo livre. Ele normalmente não tem muitas habilidades domésticas nem sociais e não está acostumado a falar de si. Desde pequeno, quando cai no chão e rala o joelho, ele ouve: “Não foi nada, pode voltar a brincar”. Se for menina, o adulto bota no colo, faz carinho. Isso faz com que mais tarde esse homem, quando sente dor, não procure ajuda. É a mulher dele, se ele tiver a sorte de tê-la, que vai agarrá-lo e dizer: “Você está com essa tosse há dois meses, vou te levar ao médico agora”. As mulheres são mais sociáveis. Nos programas do Sesc, por exemplo, só tem senhoras fazendo aulas de ioga e tai chi. Os homens ficam em casa, lendo jornal e reclamando da vida.

Como ocorre o preconceito contra o idoso no Brasil? Somos um país que idealiza a juventude, o que se valoriza é a beleza estética associada ao jovem. Há preconceito contra empregar um idoso. Ele é visto como ultrapassado, não apto a usar tecnologia. Acontece que não são dadas oportunidades de aprendizagem às pessoas, na medida em que envelhecem, para poderem se atualizar. Aí fica difícil. 

“O homem investe tudo no trabalho e quando se aposenta não sabe o que fazer com o tempo livre. A mulher é mais sociável”
Alexandre Kalache

As famílias estão cada vez menos disponíveis para cuidar dos mais velhos. Quais são as alternativas aos asilos? Essa é uma questão importante. Aquela sociedade de famílias com muitos filhos, em que as mulheres não trabalhavam e estavam “disponíveis” para cuidar dos idosos, já não existe mais. Antigamente esses velhos morriam rápido porque a medicina não lhes dava grande sobrevida. Hoje o idoso pode desenvolver doenças crônicas, como alzheimer, e continuar vivo por mais dez, 15 anos precisando de cuidado. E sempre que falamos de cuidador na família temos que reconhecer que quem cuida é a mulher – em geral, a filha ou a nora. Só que essa mulher hoje trabalha fora e não está mais disponível. Além disso, muitas vezes as famílias estão fragmentadas, espalhadas geograficamente (com filhos morando em outras cidades ou países) e sem condições financeiras para pagar um cuidador profissional.

Que modelos existem para dar conta dessa nova realidade? Os países mais desenvolvidos tiveram muito mais tempo e recursos para se adaptar ao envelhecimento. Mas não adianta olhar para Dinamarca, Canadá e Japão e falar: “Vou fazer igual”. Vamos ter que fazer uma política nossa, tupiniquim. No Japão eles estão apostando na tecnologia, substituir o que antes era feito por pessoas por robôs que possam dar banho e preparar a comida. Na Europa e nos EUA, quem está cuidando dos idosos são os imigrantes do Terceiro Mundo.

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Como funciona o movimento das Cidades Amigas dos Idosos, que você lançou quando era diretor da OMS e hoje está presente em mais de 80 países? A base fundamental é ouvir os idosos: o que eles gostam, não gostam e sugerem. Copacabana foi onde comecei o projeto. A primeira coisa que surgiu nos grupos focais foi a figura dos porteiros dos edifícios. Os idosos disseram: “Nossos melhores amigos são os porteiros”. Então treinamos os porteiros para ter habilidades e conhecimentos para ajudar melhor esses velhinhos. Em Nova York, eles reclamavam que os semáforos não davam tempo de eles atravessarem as ruas. Então foi feito um programa para o farol ficar mais tempo aberto aos pedestres. Em cada cidade são tomadas medidas específicas de acordo com o que é relatado pelos idosos.

Como surgiu a vontade de dedicar sua vida aos mais velhos? Tive a sorte de conviver com velhinhos fantásticos na infância. Meu pai é sírio e minha mãe tem origem italiana e portuguesa, tínhamos uma família numerosa de imigrantes. Antigamente não havia videogames, muito menos smartphones. Eu preferia ouvir as histórias incríveis dos mais velhos a brincar de bolinha de gude com alguém da minha idade. Hoje sou eu a fazer parte do time dos mais velhos. Até brinco: nasci numa maternidade em Copacabana que hoje é um hospital geriátrico e tenho grandes chances de terminar onde comecei.

 

Créditos

Imagem principal: Pedro Garcia (Cartiê Bressão)

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