Sobre rap, corte e costura

por Bruna Bittencourt

Emicida leva o rap e a periferia para a passarela do SPFW e faz história na moda nacional

"Hoje é o dia da favela invadir o São Paulo Fashion Week", esse foi recado de Emicida no impactante desfile de estreia de sua LAB, na última segunda-feira (24). O rapper abriu a apresentação rimando na sala de desfile ainda escura, sentou-se ao lado de Costanza Pascolato na primeira fila, onde também estava Criolo, e seguiu dali comandando a trilha. Na passarela, os modelos quase todos negros – invertendo o padrão da semana de moda paulista – e de corpos diversos, – invertendo outro padrão – eram recebidos pela plateia com sonoros aplausos, mostrando a coleção inspirada em um samurai africano.

LAB é apelido para Laboratório Fantasma, selo criado pelo músico e seu irmão Evandro Fióti (que lançou o disco Gente Bonita este ano) e que tem ainda o rapper Rael no casting. A produtora, que já contava com uma bem-sucedida linha de camisetas, moletons e bonés vendidas nos shows dos irmãos, ganhou o reforço de João Pimenta, referência da moda nacional masculina e que também desfila sua marca homônima no SPFW.

A parceria entre o rapper e o estilista nasceu há três anos, às vésperas de Emicida lançar seu primeiro disco de estúdio, O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui. João assinou não só a capa, como o figurino da turnê do álbum. "Não dá para ter uma imagem tão impactante no disco e deixar aquilo para trás. Foi a primeira vez que a gente montou um espetáculo mesmo", lembra o músico à Trip.

“Cheguei no ateliê do João e vi aquele monte de máquinas, uma pá de malandro desenhando e costurando, pensei: É aqui que vou me esbaldar!”
Emicida

Curioso, Emicida andava lendo um livro de corte e costura que havia comprado em um sebo e já estava se arriscando nos moldes. "Havia coisas que fazia na lábia como camiseta e moletom, mas era o lugar comum. Quando cheguei no ateliê do João e vi aquele monte de máquinas, uma pá de malandro desenhando e costurando, pensei: 'É aqui que vou me esbaldar'." Assim, ele foi participando do processo do figurino.

Já João, que é diretor criativo da West Coast, convidou o rapper para criar uma coleção para a marca. "Pude escolher cor, tecido, tipo de costura", lembra Emicida. Batizada de Corre Sempre, a linha foi desfilada na Casa dos Criadores, no ano passado.

A parceria foi além e o estilista entrou para o time da Laboratório Fantasma. Surgiu a ideia de apresentar um coleção completa da LAB no SPFW, que Emicida sempre frequentou. "O 'não' a gente já tinha. Marcamos uma reunião com o Paulo [Borges, criador do evento] e jogamos a ideia na mesa." Deu certo.

Inspirada no mito de um escravo negro que foi levado ao Japão por um padre e ali transformado em um samurai, a coleção traz moletons de capuz extra-large e camisetas onde se lê "I love que-brada" usados sob quimonos com estampas de inspiração africana. "A gente queria brincar com a tradição, mas dentro do nosso universo." Emicida viajou para a África por conta do seu mais recente disco (Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, 2015) e ficou fã dos tecidos locais. "Compro até pelo correio." A maioria das peças da coleção são genderless (Seu Jorge desfilou uma saia longa usada com moletom), além de ter uma grade extensa de tamanhos – porque Emicida não gosta de usar “plus size”. "Não uso muito esse termo porque não gosto de colocar as pessoas em caixinhas".

Uma das referências do rapper para a apresentação é The Battle of Versailles: The Night American Fashion Stumbled into the Spotlight and Made History, de Robin Givhan. O livro relembra o desfile realizado em 1973 no castelo homônimo que confrontou cinco estilistas francesas e cinco americanos, com um casting (na época inovador) de modelos negras. "Esse livro me impactou de uma maneira foda”, ele diz.

O resultado de Emicida não foi menos impressionante. E ele não parou na passarela: terminou a noite com um show em uma tenda armada no evento. "A rua é nóis”.

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