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por Camila Eiroa

Quem é o homem por trás do Kilariô e de um dos álbuns mais importante do soul brasileiro?

Era final da tarde de uma quarta-feira quando Roberto de Melo recebeu a Trip em sua casa. Horário do pôr do sol, que se fazia visível do portão e era acompanhado por latidos anunciando a nossa chegada pela rua. A porta estava aberta e, ao nos ver, ele já se aproximou fazendo piada sobre a barulhada canina. Junto com a esposa Jô Abade, fez questão de deixar claro que por ali não havia cerimônia: tinha bolo de milho, bolo salgado, café recém-passado e suco de laranja. Sentamos na cozinha para conhecer um pouco mais sobre a história de Di Melo, um dos maiores nomes do soul brasileiro.

“Sou arteiro nato. Minha mãe tinha uma voz maravilhosa e meu pai tocava violão. Eu me entreguei a isso”, situa o pernambucano. A primeira vez que foi a São Paulo estava com 17 anos e foi levado por um amigo que conheceu no Pátio de São Pedro - lugar frequentado por muitos artistas no Recife, onde passava as tardes fazendo esculturas em madeira. Nessa época, inclusive, que conheceu Simonal. Era começo dos anos 70 e quem queria fazer música sofria com as limitações de Pernambuco.

A primeira experiência na capital paulistana foi breve e o deixou mais enturmado no meio musical. De novo no Recife, estava caminhando com a viola na mão quando se deparou com Jorge Ben. Aproveitou a oportunidade para tocar suas composições ao cantor, que já tinha, pelo menos, sete discos. Recebeu em troca a aprovação e o cartão de um empresário - Roberto Colossi – que mais tarde seria o responsável pela sua volta a São Paulo. Virou morador da rua Augusta e não tardou muito para começar a fazer shows na noite. O Jogral foi uma das casas onde mais se apresentou, fazendo os shows que abriam e fechavam a casa. Foi lá que conheceu o diretor da gravadora EMI-Odeon, Moacir Meneghini Machado, o grande responsável pela gravação de suas músicas, apresentado pela cantora Alaíde Costa.

 

“Eu queria fazer um som mais politizado, mais agressivo... E não era isso que eles queriam que eu fizesse"

 

Finalizado em uma semana, o disco homônimo foi lançado em 1975 com a participação de Hermeto Pascoal e Heraldo do Monte. Esse fato não contribuiu para que Di Melo continuasse se apresentando. Ele desabafa que, mesmo tocando em todas as rádios, não conseguia retorno financeiro com o seu trabalho - na época, ganhava cerca de 11 cruzeiros por um trimestre de direitos autorais. Além disso, estava sendo contrariado pelo produtor. “Eu queria fazer um som mais politizado, mais agressivo... E não era isso que eles queriam que eu fizesse. Passei a não me levar a sério e nem levar meu trabalho a sério, foi quando saí de cena”. E com firmeza, diz que não se arrepende disso. 

Outro não arrependimento do cantor são os episódios de diversão com os músicos e companheiros da época. “Eu fui muito louco, fumava até meu cabelo pra dar barato. Não me chegou a fazer mal porque eu tive e tenho controle sobre tudo. Hoje sou careta; não bebo, não fumo cigarro, não fumo maconha e não cheiro cocaína... Eu não me drogo. O único vício que tenho é mulher bonita”, recorda enquanto bebe um copo de café.

Ele também conta que anos depois, em 97, os boatos de que suas músicas estavam tocando no exterior o trouxeram para o centro das atenções outra vez. Com “A vida em seus métodos diz calma” sendo hit na Holanda e “Kilariô” em coletâneas internacionais de música brasileira, seus discos estavam custando cerca de 700 euros e ele não ganhava nem um tostão sequer. Porém, veio a oportunidade de ir ao Japão tocar e em 1999, estava entre as dez melhores vozes do planeta, com a notícia de que tinha morrido em um acidente de moto depois de lançar um único disco. (Assim surgiu o documentário Di Melo – o imorrível

Kilariô

“Kilariô/Raiou o dia, eu vi chover em minha horta/Ai, ai, meu Deus do céu, quanto eu sofri/Ao ver a natureza morta”. Esse é o verso de sua música mais conhecida, mas engana-se quem acha que Di Melo lançou só aquele trabalho. Ele tem outros nove discos que distribui por conta própria, 100 músicas gravadas e conta cerca de 400 composições. Entre elas, 12 inéditas com o companheiro de tempos Geraldo Vandré, feitas durante os dez anos que ficaram de andança pelo mundo na década de 80 (eles pretendem lançar em 2015). Tem músicas inéditas com Baden Powell, Wando e Jair Rodrigues e um CD gravado com a banda de Belchior. Também fez parcerias com os rappers Emicida e Rashid e voltou a se apresentar ao vivo. O animo – e a necessidade - veio com a notícia de que Jô estava grávida de Gabi, que chegou da escola enquanto ele contava esses episódios e afinava o violão para nos mostrar as composições. Ela entra em casa e começa a cantar “Engano ou castigo” junto com o pai, que, de acordo com ele, Tim Maia gravaria sem dúvidas.

A pequena é afinadíssima e faz aulas de canto. Prestes a completar oito anos, é fruto do casamento com Jô, que o conheceu no Carnaval de 2000, quando Di Melo puxava o Bloco do Vai Quem Quer, da praça Benedito Calixto em São Paulo. Ela morava ali perto e naquele dia tinha lido no horóscopo que o amor de sua vida estava prestes a aparecer – só não imaginava que seria tão rápido. Ao ver o desfile passar, se deparou com a lábia doce do cantor, que a presenteou com um desses discos independentes. Pensou “que homem feio”, mas resolveu ligar para o número de telefone que vinha no encarte e estão juntos desde então.

Hoje com 65 anos, ele vende quadros de vários artistas para ajudar na renda. Sua casa é uma galeria: “eu gosto disso, tudo que é arte me fascina”. Tem dois livros para lançar e depois quer “botar o burro na sombra”. Acredita que os jovens redescobriram a sua música e aderiram ao som. Recentemente se apresentou com BNegão, continua tocando em festivais grandes e não tem uma banda fixa. Em seu último show feito em São Paulo, animou a casa frequentada por jovens alternativos com um repertório cheio e uma energia infindável. “É uma energia foda, não para um segundo”, conta enquanto a esposa diz que ele vara as noites escrevendo.

Depois de mostrar os artistas que ouve hoje – Otto e Bárbara Eugênia estão na lista , ele pega na gaveta um caderno azul cheio de composições. Com o violão no colo e folheando as páginas, canta uma música feita para a Elis Regina, mostra seus poemas e se depara com versos escritos para o sambista João Nogueira. Enquanto lê, se emociona, e a cozinha antes cheia de música, silencia. Mas como Di Melo é imbatível quando o assunto é alegria, faz como deve e vira a página, pousa os olhos nas primeiras palavras que encontra e lê em voz firme: chega de pensar no que te faz sofrer.

Ouça o álbum:

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