Para pensar o Brasil

por Ronaldo Lemos
Trip #265

É muito valioso que as elites do país se encontrem: grande parte da crise que vivemos foi gestada por elas

Nos dias 7 e 8 de abril realizou-se em Harvard e no MIT, nos Estados Unidos, uma conferência para pensar o Brasil. Com o nome que vai direto ao ponto – Brazil Conference –, o evento reuniu um improvável conjunto de palestrantes. Na mesma lista havia Dilma Rousseff, Sergio Moro, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Deltan Dallagnol, Fernando Haddad e muito mais. Talvez atraídos pelas fortes marcas das universidades americanas ou pelo momento propício de fazer uma gigantesca “DR” sobre o país, todos compareceram e compartilharam – ainda que sem necessariamente se encontrar – os mesmos salões universitários.

O que mais chamou a atenção na Brazil Conference foi o espírito de discutir o país, abrindo o diálogo que muitas vezes (e infelizmente) tornou-se impossível de ser feito no próprio país. A conferência tentou pôr à prova se vivemos mesmo um différend brasileiro, conceito criado pelo filósofo Jean-François Lyotard, definido como “uma disputa entre duas ou mais partes que acontece por meio de jogos de linguagem tão diferentes entre si que nenhum consenso pode ser alcançado”. Não sei se Harvard e MIT juntos foram suficientes para vencer o différend brasuca, mas a tentativa valeu.

O clima na Brazil Conference (com “z” mesmo) era de cordialidade, inclusive no sentido buarquiano. Com algumas poucas exceções, os excessos ou tentativas de desqualificação simplória do discurso do outro acabavam morrendo na praia. Além disso, a conferência representa uma enorme conquista dos estudantes brasileiros. O evento não é organizado ou concebido por Harvard ou pelo MIT. É criado e gerido pelos próprios estudantes. É assim que vem crescendo a ponto de se tornar incontornável.

Um dos highlights foi a fala do ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso. Ele fez um exame franco, ao mesmo tempo que profundo, do famoso “jeitinho” brasileiro. O argumento era claro: na raiz dos imensos escândalos de corrupção que assolam o país estão as pequenas corrupções do dia a dia, a tolerância com o erro, a prática de comprar com pequenos dinheiros algum tipo de privilégio cotidiano. Dentre os exemplos mencionados por ele estava a “tradição” de discretamente pagar – ou melhor, subornar – o garçom para ser melhor servido nas festas.

Corrupção cotidiana

Pouco antes dessa fala, enormes filas se formaram para entrar no auditório principal, onde seria a palestra de Sergio Moro. Enquanto esperava na fila, observei um pai de cerca de 50 anos com uma filha pré-adolescente vindo em sentido oposto. Assombrados pelo tamanho da fila, logo encontraram um conhecido que tinha chegado com maior antecedência e por essa razão estava mais bem posicionado próximo à entrada do auditório. Ambos não hesitaram em se juntar a esse conhecido. Achei que ali na frente estaria, de novo, mais um exemplo nada teórico do “jeitinho”. Ledo engano. A filha pré-adolescente ficou profundamente incomodada com a situação. Sem pestanejar, ela chamou a atenção do pai dizendo que ambos deveriam ir para o fim da fila. Uma pessoa que estava próxima até tentou remediar, dizendo que o pai “tinha sido patrocinador do evento e por isso tinha o direito de entrar primeiro”.

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Não tenho a menor ideia do que o contrato de patrocínio da Brazil Conference diz a respeito dos patrocinadores. Talvez eles tenham mesmo o direito a entrar antes de todos os demais. Independentemente disso, um forte espírito cívico tomou aquele pai que, destemidamente, abandonou a posição de privilégio conquistada pelo “jeitinho” e caminhou, acompanhado da garota, até o longínquo início da fila.

Em artigo na Folha, Nizan Guanaes exerceu sua genialidade chamando a Brazil Conference de “a Davos brasileira”. Nizan tem razão. Tal como Davos, a Brazil Conference funciona como um recorte das elites do
país. O que é muito valioso. Grande parte da crise que vivemos hoje foi gestada por partes dessa elite. Faz sentido reunir-se para debater como sair dela. Os estudantes brasileiros de Harvard e do MIT são vitoriosos ao terem criado condições ideais para isso. Está também de parabéns a filha pré-adolescente que convenceu o pai a encarar o fim da fila. Estamos precisando mesmo que os pequenos e grandes gestos se tornem hábitos.

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