Comprou frango e morreu no Natal

por Décio Galina
Trip #197

Hélio Santos, repórter mito da madrugada do Notícias Populares, dormiu para sempre em 2007

Fim do mistério. Hélio Santos está morto – e faz tempo. O repórter policial responsável pela cobertura da madrugada do extinto jornal Notícias Populares – sim, aquele que espreme e sai sangue – morreu só, em pleno Natal, um ataque cardíaco fulminante enquanto dormia, deitado de barriga para baixo, coberto com lençol, no apartamento 32 (quarto, sala, cozinha, banheiro), do número 574 da rua Vitória, cracolândia paulistana. Tinha 68 anos. Baiano de Itabuna, Hélio entrou sozinho no prédio pela última vez dia 23 de dezembro de 2007. Levava uma sacola de supermercado com bananas e frango. Pensava em passar o Natal com a filha, que mora longe. “Depois desse dia, ele não desceu mais”, confirma Jacira Jesus da Silva, baiana de 58 anos, trabalhando na limpeza do edifício há quatro anos. “A gente começou a achar estranho o cheiro que vinha do apartamento.” As moscas varejeiras aos montes também chamaram a atenção. No dia 29, o fedor do corpo em putrefação ficou insuportável. Dava pra sentir do térreo. Chamaram a polícia.

“Quando os bombeiros arrombaram a porta, alguns passaram mal, saíram com a mão no nariz”, recorda Faustino de Oliveira Gama, potiguar de 66 anos, no terceiro mandato de síndico, porteiro das 10h da noite às 6h da manhã e morador do 31, vizinho do Hélio. “Um mês antes de morrer, ele terminou uma reforma no apartamento em que gastou um dinheirão. Nunca recebia visitas. Não falava com ninguém, era fechado. Só abria a boca para reclamar: falava mal da pintura do prédio, queria mais um portão de segurança, sempre brigava comigo, mas, no final, votava em mim nas eleições do condomínio.”

Ao ser localizada pela reportagem da Trip, a filha única de Hélio Santos, a pedagoga Fátima Patrícia Furuyama, de 42 anos, se emocionou com a possibilidade de falar sobre o pai. Ainda hoje é difícil puxar pela memória o Natal de 2007. “Nós esperávamos meu pai para a noite do dia 24, mas ele não apareceu. Depois, não liguei... Pensei que ele estava fazendo algum trabalho. Queria ter comunicado aos colegas dele na época, mas não falei com ninguém. Não pudemos fazer velório. Ele foi enterrado no Cemitério da Paz, em Diadema.” Fátima conta que era próxima ao pai. Falavam-se diariamente pelo telefone. “Ele e minha mãe [Maria Luiza, de 73 anos, paranaense de Irati] moravam separados, mas continuavam casados. A paixão da vida dele era a netinha, Bárbara, minha filha de sete anos. Adorava ler histórias para ela. Só percebi a importância dele na minha vida depois que ele faleceu”, revela Fátima, assistente de diretor de uma escola municipal e estudante do quarto ano de Direito. Outra paixão de Hélio era o Santos Futebol Clube. Gostava também de assistir desenho animado na televisão, ler, fumar de três a quatro maços de cigarro diariamente e tomar banhos de uma hora antes de sair para trabalhar.

O homem que registrou a morte de centenas de pessoas na periferia de São Paulo e detalhou tudo quanto é tipo de crime na página 12 do Notícias Populares deixou como último registro o Boletim de Ocorrência 10.531/2007, no 3º Distrito Policial (Campos Elíseos). O repórter que virou lenda na crônica policial da cidade e que trabalhou nos jornais Última Hora, Gazeta Esportiva e 14 anos no grupo Folha (de 01/11/1987 a 05/02/2001) não recebeu uma linha de obituário.

Ninguém sabia do paradeiro de Hélio Santos. Mesmo três anos após a morte, até a publicação dessa reportagem, nenhum amigo ou colega de trabalho tinha o rastro do jornalista. As últimas informações davam conta de que ele fora visto há uns três anos no Largo do Arouche e redondezas, fazendo compras, tomando sorvete. Uma década após o fechamento do NP – diário de 37 anos, marco na história da imprensa nacional – ninguém sabia do repórter que fazia a ronda de terno, gravata, sapatos limpos, altas doses de perfume e que chamava os travestis de “princesas”. Ninguém tinha o telefone, o endereço, nada. O Hélio estava sumido. Nem o Zé Maria sabia dele.

444 CROMOS

José Maria da Silva, paulista de 58 anos, da cidade de Osvaldo Cruz, é quase sinônimo de Notícias Populares: trabalhou lá por 30 anos, ficou até o fim (edição 13.413, do dia 20 de janeiro de 2001), foi o primeiro fotógrafo a enquadrar a vida como ela é nas bordas da cidade. “A Agência Folha tinha dois repórteres na madrugada e, em 1983, comecei a ir sozinho para alguns locais de homicídios e outras ocorrências. Fui o primeiro a fazer isso”, comenta Zé Maria, no sofá de casa, perto de Parque São Jorge, sede do Corinthians, onde é diretor do departamento de peteca. “Comecei a fotografar com aquela máquina alemã... Como chama, mesmo? É, isso, uma Laica, acho que M8. Fazia preto e branco.”

Hoje, das três décadas de NP, Zé Maria guarda na gaveta 444 cromos. A Trip teve acesso a todos e fez uma seleção para essa reportagem. Ele jamais expôs o seu trabalho – participou apenas de uma coletiva do NP, no MIS, em setembro de 1998. “Também não entrei em concurso. Não tenho vaidade, ser famoso, porra nenhuma, nunca me preocupei com essa coisa de aparecer. Não quero nada. Estou realizado”, continua Zé Maria, com o discurso entrecortado pelos latidos insistentes do pitbull Netuno, deitado na sala, e pelo DVD do The Platters, que toca em alto e bom som. “Depois da Laica, acho que peguei uma Nikon F3, a gente não recebia equipamento novo, a Folha só nos dava sucata.” Ele carregava 10 filmes de 36 poses por noite. Se o caso fosse bom, clicava um filme inteiro. “Nas noites mais comuns, colocava três casos no mesmo rolo.”

A parceria entre Hélio e Zé Maria na madrugada não era um mar de rosas. “Na verdade, o Hélio era um cagão! [risos] Não descia do carro. Às vezes, não queria sujar a roupa na lama. Eu que tinha que tomar a atitude, não é Zé?”. O outro Zé em questão é José Carlos Riccetti, paulistano de 60 anos, motorista da dupla a partir de 1996, na direção de um Gol branco 95. “O Hélio era encardido. A primeira vez que ele entrou no meu carro nem disse boa noite e já falou para tocar para a área do 98º DP [Jardim Miriam]. ‘E eu vou lá saber onde é a área do 98?’, respondi. Aí, o Hélio rebateu dizendo que motorista que não conhece os distritos de São Paulo não pode ser motorista de reportagem – no dia seguinte, estudei a localização de todas as delegacias da cidade...”.

Zé Carlos, por vezes, ficava no meio do tiroteio entre os dois. Nos dias de inverno, quando os crimes diminuem, Zé Maria preferia fazer uma ronda pelos DPs do centro da cidade; Hélio era contra – apostava sempre nos DPs mais clássicos (e distantes) como o 47º DP (Capão Redondo); 92º (Parque Santo Antônio) e o 101º (Jardim das Embuias). “Assistia a briga dos dois de camarote e dava risada”. Claro que também existiam os momentos de descontração. “Quando o homicídio era no boteco, a gente sempre terminava de tomar a cerveja pela metade do morto”, desenterra Zé Maria, que ainda lembra de manchetes como Morreu de metal pesado, em referência à foto que mostra a picareta cravada na cabeça da vítima. “O Sepultura quis fazer uma camiseta, mas acho que não rolou.”

Com tamanha presença na madrugada, Hélio virou referência entre os policiais. “Ele era o único repórter que realmente fazia questão de ir aos locais de homicídio. A imagem dele ao chegar às cenas de crime ainda está na minha memória. Ele colocava o pé na lama para contar uma história”, recorda o delegado Pedro Arnaldo Buk Forli, de 46 anos, 13 vividos no DHPP (Departamento de Homicídios de Proteção à Pessoa). “Teve uma vez, na Copa do Mundo de 94, que encontrei o Hélio em três ocorrências separadas por 400 quilômetros de distância. Era difícil acreditar, mas Hélio estava em todos locais de crime”, detalha o delegado que hoje é chefe do Setor de Homicídios da Delegacia Seccional de Taboão da Serra.

Os responsáveis por antológicas primeiras páginas do NP na década de 90 também recordam de boas histórias de Hélio Santos, mas não sabiam por onde ele andava atualmente. Dias depois da queda do avião dos Mamonas Assassinas (3 de março de 1996, recorde de vendas do jornal: 250 mil exemplares), acharam um braço na Serra da Cantareira. Na dúvida do que fazer, levaram para a redação do Notícias Populares. “Foi de madrugada, Hélio Santos recebeu o pacote, viu o braço e chamou o IML. O braço virou notícia até ser enterrado”, comenta o secretario de redação Paulo Cesar Martin, 47 anos, que ficou no jornal de 92 a 2000. Sobre o estilo de texto de Hélio, Paulão recorda o tom excessivamente policialesco. “Ele deu uma reciclada quando reforçamos a ideia de sempre buscar um detalhe além do boletim de ocorrência, a observação do entorno da vítima, a valorização da presença na cena do crime.”

José Vicente de Almeida Bernardo, de 49 anos, o outro secretario de redação (Paulão ficava com a pauta pela manhã e Zé Vicente fechava a primeira página no fim da tarde), era o responsável pelo NP no dia da última edição. “Entrou um anúncio de meia página na capa e não sabíamos o que era. Depois que fechamos a edição, fui chamado para uma reunião onde fui informado do fim do jornal. Voltei branco para redação. Estava puto. Fui pego de surpresa. Dei a notícia e uns começaram a chorar, outros a fazer perguntas, outros simplesmente foram embora. A impressão que eu tinha é que o Otávio Frias não gostava do jornal, acho que o NP não combinava com a imagem elegante que ele cultivava do Grupo Folha”.

“ELE É UM GÊNIO”

Na última edição do NP, há três matérias assinadas por Hélio Santos. O abre da página 5: Guardas civis comandam a invasão no DP; outra de quatro colunas, na mesma página: Minas da PM executam serralheiro e mais uma na 12: Cadáver aparece no carro de bacana. As três pautas têm fotos de Rogério Lacanna. “O Hélio é um cara durão. Mas comigo era gente fina. A única vez que vi o Hélio com medo foi em uma ocorrência no 47º DP, um dia que acabou a luz e existia a promessa de um bandidão ser resgatado do xadrez. Chegamos perto da delegacia e deu para ouvir os policiais engatilhando as armas. Aí, o Hélio, com aquela voz grossa, gritou: ‘É a reportagem do Notícias Populares!”. Fernando Costa Netto, de 51 anos, editor-chefe do NP de 1997 a 2000, passou uma semana ao lado de Hélio Santos – de Polaroid SX 70 em punho – “para entender como funcionava a madrugada, para poder opinar”. “Eu adoro o Hélio... Fora o que ele é cheiroso! Uma figuraça. É uma peça única de um jornalismo que não existe mais. Tive o privilégio de conviver com ele. O Hélio era um gênio”.

Não são apenas os jornalistas do século passado que acumulam recordações do colega mais folclórico. A nova geração também já sentiu o peso do nome que fez fama no NP. Bruno Lupion, de 28 anos, é profissional há quatro e tem um ano de experiência na madrugada. Escreve o blog Olhos da Noite, no site do jornal O Estado de S. Paulo. “Comentei com o professor Claudio Tognolli (na USP) que fazia a ronda de polícia do Estadão e queria fazer uma reportagem relacionada a essa área. Ele sugeriu na hora: “Por que não vai atrás do Hélio Santos?” Conversei com alguns colegas da madrugada e todo mundo o conhecia, mas ninguém sabia onde ele estava. As histórias cobriam o Hélio com uma áurea de mito. Após algumas semanas procurando, percebi que seria difícil encontrá-lo para uma entrevista, mas decidi escrever o perfil mesmo assim e falar sobre a busca. Esperava que o texto [publicado em dezembro no Olhos da Noite] chegasse até o Hélio e ele aparecesse, mas isso não aconteceu. O que pipocou muito foram pessoas que não conhecia, mas conviveram com ele e também tinham histórias para contar. Semana passada um jornalista me contou o episódio em que Hélio caiu sem querer dentro de uma fossa, no meio de uma reportagem, e chegou à redação fedendo merda...”.

Durante a apuração dessa reportagem, os entrevistados não foram avisados que Hélio está morto desde 2007. Em um sábado de sol forte, no início de fevereiro último, ao sair da casa do Zé Maria, onde também estava o Zé Carlos, o motorista da dupla incentivou a investigação do que havia acontecido com o colega repórter. Já o fotógrafo não demonstrou muita esperança: “Olha, Décio, não é que estou secando, mas acho que não dá pra encontrar o Hélio não... Ele está vivo, mas está em outra, na dele... Pode até estar gagá. Difícil de achar”. O mesmo jornal que pôs na prática o slogan Nada mais que a verdade também ensinou que sempre dá para achar.

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