Como o coronavírus infectou o modo como consumimos

por Nathalia Zaccaro

O futuro não demora e já dá sinais de como vai se apresentar. Diferentes olhares sobre o mercado pós-Covid-19 nos ajudam a pensar sobre como vamos consumir em um mundo pandêmico

Encontros pessoais limitados. Exigências de higiene. Restrições de deslocamento. Proteção a grupos vulneráveis. Telemedicina. Ensino a distância. Home office. O panorama do que deve orientar nossa vida em sociedade durante e depois da crise provocada pela Covid-19 começa a se desenhar. Ainda são muitas as dúvidas, mas o futuro não demora e está dando sinais de como deve se apresentar. 

Novos hábitos já estão sendo incorporados em nossas maneiras de viver, morar, se relacionar e, claro, comprar. A pandemia é, em sua essência, uma crise de saúde pública, mas que trouxe um dos maiores caos econômicos da história. Mercados inteiros foram desestruturados. Milhões de pessoas perderam seus empregos. Quase ninguém tem segurança de que não enfrentará algum tipo de desgaste financeiro.  "Segundo o Instituto Locomotiva, 51% dos brasileiros já tiveram perda de renda no Brasil. A tendência é que quanto mais tempo passe mais gente seja impactada. De maneira geral, o consumo deve cair e vamos conhecer um consumidor muito mais crítico", explica Laura Kroeff, VP de Digital e Inovação da Box 1824, agência de pesquisa de tendências em consumo, comportamento e inovação.

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A biossegurança é um dos pontos centrais na avaliação do que será um produto de qualidade no mercado contemporâneo. Mais do que nunca, vamos buscar fornecedores que nos inspirem confiança. Em setores essenciais, como o da alimentação, essa tendência deve vir ainda mais forte. "A única certeza que temos é que vamos passar a comprar de produtores cada vez mais próximos. Isso já está acontecendo na China, na Índia e nos Estados Unidos. As cadeias industriais são muito complexas e o produto passa por muitas mãos até chegar ao consumidor. Isso representa um enorme risco. Comprar localmente será o novo normal", opina Georges Schnyder, presidente da Associação Slow Food Brasil, rede presente em mais de 160 países e que trabalha pelo fortalecimento de agricultores de pequeno porte.

Elo da corrente

A ideia do estreitamento entre os elos da cadeia produtiva deve chegar com força também no mercado da moda. A pressão por melhores condições de trabalho em fábricas têxteis e a demanda por consciência ambiental já vinham ganhando importância nos modelos de negócio fashion, mas devem tomar novas proporções no mundo pandêmico. "Logo na primeira semana do isolamento já surgiram clientes preocupados com as condições de trabalhos dos entregadores das roupas. As pessoas estão se apegando mais às histórias humanas e cobrando posicionamentos", diz Francisco Zobaran, CEO da marca basico.com, que, desde seu surgimento, atua no mercado on-line.

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A pró-reitora de pesquisa e professora de Economia do Consumo da ESPM, Cristina Helena Pinto de Mello, pontua que tamanha preocupação social tem motivações bastante específicas do período de crise. "As pessoas olham para o que constitui o interesse delas. Hoje é o bem-estar do outro porque isso compromete seu bem-estar. Essa consciência social é um instinto de preservação da espécie, um comportamento pró-social voltado para o próprio interesse. É a percepção de que corremos riscos quando não protegemos o outro. Por isso esse critério ganha tanta força neste momento", explica.

O consumo consciente é um dos pilares do que a Box 1824 chama de Economia Regenerativa, uma visão sobre quais devem ser os principais comportamentos dos consumidores na era em que estamos nos preparando para viver. Outro ponto crucial do modelo é o consumo digital. Não há quem ainda não tenha notado que as compras on-line invadiram as rotinas de todos, mesmo de quem não tinha o hábito de adicionar itens em seus carrinhos virtuais.  De acordo com as informações do Compre e Confie, empresa do grupo ClearSale, as vendas on-line no país cresceram 40% só na primeira quinzena de março."O isolamento está destravando as últimas ondas de negócios digitais. Empresas que já atuavam desta maneira viram o valor de suas ações subirem. O processo de digitalização está muito acelerado, está acontecendo em 5 semanas o que era esperado para 5 anos", diz Laura. 

Para André Carvalhal, consultor e especialista em design para sustentabilidade, o momento é propício para o estabelecimento de parcerias entre marcas. "Os sites de marketplace devem misturar marcas grandes e pequenas em seus ambientes, este é um caminho tangível. Outra tendência é a aposta na produção de conteúdo digital, uma possibilidade de conexão entre as marcas e os clientes, que agora não estão dispostos a comprar", diz.

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Conforto é o novo preto

Nativa digital desde seu surgimento, a basico.com já enxerga a possibilidade de agregar outras marcas em seu site. "Agora é hora de atuarmos como ecossistema, é importante que a gente una forças", diz Francisco. A partir da experiência de empresas que já têm quilômetros rodados no e-commerce, é possível sacar algumas das vantagens desse tipo de negócio. Além da personalização das ofertas e da relação com o cliente, o rastreamento do comportamento de compra é um importante aliado. "Como temos uma base de dados robusta sobre nossos consumidores, conseguimos analisar e comparar informações sobre o novo contexto. Isso traz insights de maneira mais rápida e, a partir daí, surgem as oportunidades", diz Francisco. O que já deu para entender avaliando a movimentação dos clientes na plataforma da marca é que os produtos que oferecem mais conforto têm se destacado nas vendas.

Em tempos tão incertos e assustadores, é natural que busquemos conforto. Seja para se vestir – especialmente considerando que pouco saímos de nossas casas –, seja em outros segmentos da vida. Uma das maiores vítimas da crise, a indústria do turismo enxerga nessa demanda uma possibilidade de reestruturação.  "Muita gente cancelou viagens dos sonhos por conta da quarentena. No início da crise, imaginamos que, passado o isolamento, as pessoas voltariam a planejar visitas a esses destinos exuberantes. Mas, na verdade, a tendência indica que os viajantes irão buscar as confort travels", opina Tina Lyra, que já esteve em cargos de liderança em grandes empresas de turismo, como o Four Seasons Hotels, e hoje é dona da agência TL Portfolio, focada no mercado de luxo.  O desejo de viajar para ilhas paradisíacas ou destinos internacionais badalados vai dar lugar à vontade de revisitar espaços nostálgicos, marcados por memórias afetivas. Menos Croácia e mais interior de Minas Gerais, por exemplo.  

Não é exagero dizer que nada será como antes. Mesmo que nossas rotinas voltem aos padrões pré-Covid-19, o processo pelo qual estamos passando deixará descobertas, conclusões, cicatrizes e aprendizados que marcarão de maneira profunda nosso olhar sobre quem somos, do que precisamos e quanto estamos dispostos a pagar por isso.

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Imagem principal: © rawpixel

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