Batalha pela vida

Após 12 anos fora da prisão, descubro-me doente, com a mais agressiva e mortal das enfermidades. Busco um sentido para a existência

Quando somos confrontados por uma situação já sem esperança; quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada; ainda aí existe o potencial especificamente humano. O que há de mais elevado em todos nós e que pode transformar uma tragédia em um triunfo. Quando não somos mais capazes de mudar uma situação – como a morte de um ser muito querido; uma sentença de prisão perpétua; uma doença mortal e incurável –, somos os gurus de nós mesmos, desafiados a mudar a nós próprios.

Estive diante desses três vetores de dores mais que intensas. Perdi minha mãe enquanto estava preso e foi terrível: eu era seu filho único, ela vivia para e por mim, eu era o centro de sua vida e sentia seu amor me envolvendo todo pelo doce de seus olhos. Para ela pouco importava se o mundo me tratava como assassino, bandido, ladrão e presidiário. Eu era o filho querido dela, o seu menino. Era a única pessoa que realmente acreditava em mim e me amava de verdade. A tristeza não me derrotou e segui minha destinação firme e forte; ela merecia que eu salvasse o filho que ela amava.

Fui condenado a mais de cem anos de prisão na época da ditadura militar, não havia direitos humanos e muito menos solidariedade entre presos. Prisão era onde “o filho chora e a mãe não vê”, um salve-se quem puder, os assassinatos e estupros entre nós presos eram o cotidiano da prisão. O bicho pegava e não havia para onde correr. A polícia militar entrava na cadeia dando tiros para todo lado e quebrando um por um de cela em cela, sadicamente. Comi o pão que o diabo amassou por décadas. Sobrevivi até o fim, aproveitando as contrariedades como mola de impulsão. Havia um significado: o orgulho era maior que a dor. Li e estudei desesperadamente. Acabei me desenvolvendo e, quando percebi que era capaz de ensinar e que as pessoas aprendiam de fato o que eu ensinava, a dor deixou de apertar meu coração. Cumpri a pena máxima do país, saí inteiro e íntegro.

GURUS DE NÓS MESMOS
Agora, depois de quase 12 anos aqui fora na continuidade de minha luta pessoal por crescer e ser, descubro-me doente. E com a mais agressiva das enfermidades. Vou operar e fazer todo o possível para extirpar o mal que me aflige. Estou cheio de disposição para lutar, pretendo vencer e provar que é possível, com coragem e esforço, sobreviver a mais esse desafio. Não tenho medo. Estou plenamente maduro e pronto para bater de frente com essa doença como se fosse mais uma batalha que a vida me coloca.

A minha experiência me leva a acreditar que, quando encontramos sentido para os males que nos afligem, eles deixam de nos fazer sofrer. Na morte de minha mãe, encontrei motivo para enfrentar a sua falta pensando em me tornar o filho que ela gostaria que eu fosse. Na prisão, que parecia eterna, encontrei significado em ler, aprender, ensinar e crescer como pessoa. Estou encontrando sentido em lutar para superar a pior e mais mortal das doenças, em sobreviver a ela. Na verdade, percebo que, mais do que qualquer coisa na vida, o que buscamos é encontrar sentido para nossa existência. Somos os gurus de nós mesmos. Estamos prontos a sofrer, a chorar e a viver as piores dores, desde que haja algum sentido para isso.

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