por Luiz Alberto Mendes

”O difícil é pensar que alguém tem que se dar mal para que eu me dê bem e possa continuar minha existência”

Ah! Que dor... Sentia os olhos virando, a boca colando já sem poder expressar; eu estava morrendo, novamente. De repente, a vida estava ali, inteira, a cobrar atitudes; exigindo de mim coragens que não possuo. Sobrava um gosto de azedo na boca; o nariz ameaçando escorrer, os olhos ardendo e uma calda grossa de angústia bloqueava a garganta. E foi apagando, apagando...

Estou com o vírus da hepatite C e um segundo nódulo cancerígeno no fígado. O primeiro já foi retirado. O médico, após ler os meus últimos exames, sentenciou: para sobreviver ao vírus, vou ter que me submeter ao transplante do fígado. O meu nome já foi colocado na lista de pessoas que precisam de um fígado compatível, em caráter de urgência. O “caráter de urgência” demora cerca de 8 meses: muita burocracia, autorizações e exames físicos completos. O difícil é pensar que alguém tem que se dar mal (morrer de repente, sem afetar o fígado) para que eu me dê bem e possa continuar minha existência.

Fui recebendo aquelas graves informações qual fossem golpes em um octogonal do MMA: tomando porrada até na sombra que eu fazia. Era como se estivesse acontecendo a outra pessoa e não comigo. Mas era eu quem sofria os golpes e tentava, atabalhoadamente, me defender. Já vinha com manifestações há algum tempo. Estou vivendo um tratamento contra o virus da hepatite C com anti-virus de carga pesada. O remédio vem dos Estados Unidos, somente alguns laboratórios fabricam. Metade (medicamento para três meses) me foi dado pelo próprio SUS. A outra parte me foi dada pelo publisher desta revista. Ele não gosta que se fale de suas suas ações humanas. Mas peço licença aqui para dizer de sua generosidade tão espontânea.

Mas, como dizia no começo, estava em plena crise causada pela reação do corpo aos anti-virais. Ninguém viu, senti alívio: pelo menos sem vexame. Pensei fosse uma manifestação passageira, como de outras vezes, e me afastei para não chamar a atenção. Quando vi que não dava para aguentar e que era muito mais sério que eu pensara a princípio, quis gritar e ser salvo. E então a língua colava na boca e não saia nada. Quis andar até as pessoas e percebi que apenas me equilibrava, caso me movesse, cairia. Os pés encharcaram de suor em questão de segundos. O corpo inteiro virou uma meleca oleosa. De repente fui sumindo, sumindo...

Não sabia mais quem eu era. O Luiz não existia. Estava inteiramente dominado pela dor abdominal e pelas reações aos remédios (cerca de 9 comprimidos por dia). Esse foi um dos maiores pesadelos que vivi em minha vida. Não sabia de onde, mas sabia que algo ia dar mal. Trazia consciente que isso de viver em paz e saudável não podia dar certo para sempre. Nem a tortura mais acerba, tiros, facadas, choque elétrico e a porra das dores todas, não foi tão violenta. Nunca havia experimentado algo tão agressivo e violador. Fiquei ali, fazendo o maior esforço para não me esparramar no chão e gritar a alma toda. Agora eu já implorava para que alguém prestasse atenção em mim e me socorresse. E não conseguia me mover. Fiquei pensando no que eu estava expressando, porque as pessoas (supermercado lotado) passavam por mim e não percebiam. Sou pessoa bastante comum, estou acostumado e muito contente por não ser notado. Mas aquilo era demais: sentia-me transparente, o olhar das pessoas como que me transpassavam.

Aos poucos, ao perceber que não possuía chances contra aquele estado de coisas, fui serenando. E nessa mesma medida, fui voltando, como quem chega da Ásia; estranhando tudo. As pernas foram fortalecendo, o corpo relaxando e eu, muito assustado, voltando a ser eu mesmo. Que desespero, que loucura! Em poucos segundos já sai andando como se nada tivesse acontecido. Para mim, 65 anos de minha vida havia se passado ali na mente. Mas o relógio estava dizendo que foi perto de uns 10 minutos de perdimento. Vivi isso tantas vezes nesses 4 meses de tratamento que hoje reajo com a maior tranquilidade do mundo. Paro e espero passar a onda, sem lutar: rápido ela se vai. Caso eu coloque força em contrário, tenho crises, passo mal e sinto que posso me perder.

Agora ando com uma correntinha e uma placa de prata pendurada no pescoço, informando quem sou eu, endereço, telefone de casa e o celular da companheira. Dirigir, nem pensar.

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Créditos

Imagem principal: Jon Butterworth

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