Nós nos adaptamos muito rapidamente às condições do outro e do mundo em que vivemos. Esse é o nosso maior trunfo

Creio que vivi muitos momentos incríveis em minha vida. Seleciono dois, que parecerão aleatórios, mas que têm estreita relação entre si e que foram extremamente significativos para minha reinserção social.

O pastor Rubens era o pastor oficial para os chamados “crentes” da prisão. Era um homem com quase 80 anos, formado em quatro faculdades, falando vários idiomas e catedrático em uma grande universidade paulista. Era íntegro. Contava que havia casado virgem, aos 34 anos. Tanto ele quanto a companheira haviam se guardado um para o outro, tão somente. Ele nunca havia estado com qualquer outra mulher. Não há méritos, hoje em dia, em algo assim. Mas, à sua época, virgindade possuía um enorme peso moral, por mais que nos pareça absurdo hoje.

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Certas e afortunadas tardes ele convidava, a mim e alguns amigos, para tomar chá em sua sala na capelania. Sabia que éramos avessos às doutrinas e nem tentava nos cooptar. Então conversava sobre filosofia. Na verdade, nos dava grandiosas aulas. Numa dessas tardes memoráveis, ele nos disse algo que ficou gravado. Afirmava que nós éramos mais capazes de “vencer na vida” do que qualquer um dos fiéis de sua igreja do lado de fora, mas, também, que nos faltava o essencial. Argumentava que o nosso pior inimigo éramos nós mesmos. Explicava que um trabalhador demora de dez a 20 anos economizando para comprar sua casa e seu carro. Enfrenta a maior batalha todo fim de mês para esticar o salário ao impossível; pagar todas as contas, a prestação da casa, do carro... Agrega enorme valor aos objetos adquiridos.

ATRAVÉS DA MULTIDÃO

Nós, pelo contrário, saímos hoje da prisão e amanhã já queremos casa, carro e tudo que achamos ter direito. Não esperamos e não sacrificamos – então não agregamos valor ao que conquistamos. Por isso, dinheiro que não seja suado, gastamos facilmente. Ao contrário, cada centavo ganho com trabalho é gasto com dificuldade. Possui muito mais valor, embora o numerário possa ser o mesmo.

Libertado, depois de mais de 31 anos preso, fui morar no Rio de Janeiro. Cinco dias depois, lançava meu segundo livro na Bienal de São Paulo. Viajar pela primeira vez de avião foi maravilhoso! Chegar a São Paulo, sentir aquele cheiro de gasolina queimada e todo aquele povaréu me emocionou demais, a ponto de as lágrimas descerem em meu rosto. De repente, estava chorando feito bobo na janela do carro. Minha amada e odiada cidade, onde nasci, sofri, cresci e onde hoje desenvolvo minha vida.

Quis andar, ver a cidade por dentro, talvez somente para conferir se tudo continuava no lugar. Quando entrei nas ruas centrais, me assustei. Abriu o sinal e lá veio aquela multidão apressada para cima de mim. Eu, em minha ansiedade, fechei a cara e a encarei quase como um cachorro louco. Tentei abrir caminho na marra. Era como uma mata fechada: faziam que eu andasse para trás ou ficasse de lado para abrir caminho para os outros passarem. Não conseguia andar à frente! E lá ia eu cada vez mais para trás. Andei o Viaduto do Chá todinho para trás. Tentei o sorriso, a simpatia e o meio da rua, quando já estava entrando em paranoia de perseguição. E fui passando aos poucos. Demorei mais de uma hora para andar da Praça do Patriarca à avenida Ipiranga. Cerca de 100 metros apenas.

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Eu havia perdido as relações que me conectavam aos outros e ao mundo. Desenvolvemos, sem perceber, um direcionamento automático em ruas intransitáveis. Só assim são possíveis esses congestionamentos gigantescos de carros nas grandes capitais, sem acidentes. Atravessamos multidões quando conectados à cultura geral. Há até programas que nos indicam os caminhos melhores e mais livres, pelo celular. Isso, para mim, é uma clara demonstração de que fomos feitos para conviver em sociedades comunitárias. Nós nos adaptamos muito rapidamente às condições do outro e do mundo em que vivemos. E esse é o nosso maior trunfo.

Um mês depois eu já andava tranquilamente no meio da multidão. Hoje, 13 anos depois, só falto voar de tão adaptado que estou à vida em sociedade.

Créditos

Imagem principal: Creative Commons

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