Caixa de memórias

por Ana Maria Bahiana
Trip #172

Ana Maria Bahiana revela sete décadas de fotos do Rio de Janeiro registradas por seu pai

Por sete décadas, o fotógrafo amador Alberto Bahiana guardou no papel suas lembranças do Rio de Janeiro. Quando o Alzheimer começou a apagar suas recordações, as fotos se tornaram seu principal vínculo com o passado. Agora sua Filha Ana Maria tira do baú imagens inéditas de seu Alberto e reflete sobre o papel de “guardiã de um portal para uma dimensão onde não há perda, apenas memória”

A contrapartida que as imagens de meu pai não mostram – mas que sua vida testemunha – é uma sociedade fechada em preconceitos e preceitos de um outro século, imune à energia do tempo

Na manhã de 4 de novembro de 2005, depois de longa batalha com o mal de Alzheimer, meu pai, Alberto, deixou nosso convívio neste plano. Apagava-se a principal luz da memória da minha família – mas em minhas mãos ficava um legado mais precioso que todo o ouro do mundo.

Tudo começara num outro século, numa outra cidade, quase: o Rio de Janeiro dos anos 30, de amplas avenidas, brisas oceânicas e luxuosos e eventuais carros. Quando Alberto, o caçula e temporão dos seis filhos do arquiteto Gastão Bahiana e da francesa (provençal, de Perpignan) Jeanne-Rose Boher, pôs as mãos, pela primeira vez, numa câmera fotográfica. Era a novidade do momento: três décadas depois do lançamento, em 1900, da “Brownie” da Kodak, a primeira máquina fotográfica produzida em massa (“você aperta o botão, nós fazemos o resto” era o slogan), os trambolhos quase mágicos do século anterior tinham se transformado em caixas portáteis de fazer memórias.

Que memórias teria o menino Alberto (nome completo: Alberto Luiz Gastão; todos os filhos do casal tinham três prenomes; coisas da época) aos 14 anos, num Rio de Janeiro de tão delicados ares, tão metrópole semi-européia à beira-mar, sonho de uma Paris tropical?

Gadget da hora
Restaram-me pequenas centelhas, as fotos tiradas por meu tio Georges, o então namorado de uma das irmãs de Alberto, Alice. Georges Neu, francês, trouxera o gadget da hora para os trópicos – sua intenção e seu olhar, como os de outros quase fundadores da França antártica, eram quase antropológicos: documentar a burguesia creole do Novo Mundo. Nas dezenas de caixas de papelão e álbuns que seu cunhado Alberto acumularia, muitos anos depois, as fotos de Georges se entrelaçam com as de seu aprendiz adolescente, contrapondo-se mutuamente: as de Georges, posadas e rigorosamente compostas, vestidos brancos e ternos de linho engomados em cadeiras de palhinha com a moldura de jardins tropicais, cachoeiras de texturas em luxuoso preto-e-branco; piqueniques Dejeuneur Sur L’Herbe nas serras fluminenses, em versão extremamente pudica, minhas tias de guarda-sol, fingindo acenar para a câmera; e o menino de pernas finas, meias três-quartos, a abundante cabeleira negra que nunca conheci, costas retas, olhos negros talvez tentando decifrar as sutilezas do novo brinquedo, lá do outro lado.

As de Alberto, querendo alçar vôo, sem paciência para o estritamente documental. Há alguma coisa, já nessas primeiras imagens captadas por Alberto com a Leika de Georges, que fala de uma busca por algo belo e eterno – belo porque está lá, à espera do olhar; eterno pela fotografia. Da janela mais alta do sótão do casarão da família, na rua Paula Freitas, numa Copacabana muito parecida com Deauville, toda de bangalôs e bougainvílleas, o menino Alberto procura a simetria das linhas da praia: o asfalto novinho em folha, a sinuosidade artificial da calçada de pedra portuguesa, o branco sensual da areia, uma linha prateada de mar. Do outro lado da avenida Atlântica ele finge capturar o transatlântico Normandie – estávamos nos últimos anos da era de ouro dos palácios flutuantes – deixando a barra do Rio; mas na verdade faz uma perfeita composição de linhas horizontais, a mesma praia vista de outro ângulo, toda espaços abertos, luz, amplidão. Usando os chumbinhos com os quais datavam-se fotos naquele tempo, ele imprime o ano no canto superior esquerdo: 1939. O mundo à beira do caos. Alberto tinha 17 anos incompletos.

A paixão estava selada. Havia os 78s de chansons françaises e as big bands, as domingueiras no Copacabana Palace, os chás na Colombo, os bangue-bangues na Cinelândia. O Zepelim passando lentamente sobre a praia de Copacabana e, anos mais tarde, o blackout de todas as janelas ao pôr-do-sol, com medo dos submarinos alemães possivelmente ao largo. Mas paixão, paixão mesmo, era a caixa de capturar imagens, a máquina de fazer memórias.

Eis o que ficou desta minha história-antes-da-história, a história de um rapaz da alta classe média franco-carioca que um dia seria meu pai: um Rio de Janeiro extraordinariamente belo, todo de encostas luxuriantes e praias puras, onde Carnaval era corso, bloco e batalha de confete, a grama da Quinta da Boa Vista era aveludada, só se ia ao centro (“descia-se à cidade”) de terno, chapéu e luvas brancas; para ir à praia, maiô inteiro, petecas, taioba (o bonde para banhistas).

Não sei se gostaria de ter vivido nele. A contrapartida que essas imagens não mostram – mas que a vida de meu pai testemunha – é uma sociedade fechada em preconceitos e preceitos de um outro século, imune à energia do tempo, meio esquecida do mundo no balanço desse langor do Atlântico Sul. Uma sociedade de opções reduzidas, caminhos predeterminados e, apesar de tanta luz, horizontes estreitos. Mas eu gostaria de poder respirar esse ar doce que emana das fotos de meu pai, esse possível ar perfumado de flor e maresia que traz ecos de uma cidade humana, refinada, perdida.

Havia as domingueiras no Copacabana Palace, os chás na Colombo, os banguebangues na Cinelândia, mas paixão mesmo era a máquina de fazer memórias

O vôo de Seu Alberto
Seria por isso que meu pai cismou de voar? Porque aí começa outra mania dele, a aviação. Imagino as brigas, furiosas ou talvez caladas, como melhor cabiam numa família bon chic bon genre, entre os pais e o temporão teimoso (e como!). Um Bahiana piloto? Jamais! Ou pior: mecânico ou coisa parecida; meu pai era daltônico em grau muito elevado, praticamente sem noção de verde e vermelho, e desde logo soube que não poderia pilotar aviões. Mas podia fotografá-los – e ganhar uma nova dimensão para seu olhar.

Quando Alberto vai trabalhar no setor administrativo da Panair, nos anos 40, começa uma nova fase para suas fotos. Há caixas e mais caixas de aviões – parados, aterrissando, decolando –, todos os modelos possíveis e imagináveis da Segunda Guerra e do pós, hidroaviões, teco-tecos, Constellations como Cadillacs sobre a baía de Guanabara. E, entre elas, um novo Rio, visto do alto, o horizonte físico expandindo-se aonde o desejo era proibido de ir – os amigos pilotos concordavam em levar o passageiro extra e suas câmeras, talvez divertidos com uso tão peculiar de suas aeronaves.

Gosto de imaginar que, nos lampejos eventuais de recordação que a crueldade do Alzheimer permite a suas vítimas, meu pai estava sempre voando, a luminosidade do Rio de Janeiro de sua juventude invadindo suas lentes, seus olhos. Memórias com enquadramentos perfeitos e infindáveis gradações do mais exato preto-e-branco.

Nas imagens dessa fase começa a aparecer uma nova personagem: uma moça de cabelos castanho-claros e rosto redondo, o sorriso mais bonito que se possa imaginar. A moça tem o uniforme completo do colégio Sion, chapéu de palhinha e tudo. A moça senta-se à beira da lagoa Rodrigo de Freitas, os pés em meias soquetes e sapatilhas tocando uma areia impossivelmente branca.

A moça reclina-se contra a mala de um Hudson escuro, ladeada por um homem moreno e baixo e uma mulher alta e imponente, todos enquadrados pelo morro Dois Irmãos intocado, a paisagem sempre mais importante, em sua beleza absoluta, que seus habitantes temporários. (Será que meu pai intuía, já tão cedo, que tudo o que somos é tão completamente transitório? Será que seu apego à alquimia da foto – luz, lente, sal de prata – tem algo quase misticamente ligado a essa vontade de superar o limite mortal do tempo e criar uma Memória maiúscula, como a das pedras?)

A moça chamava-se Maria Helena Palhares Pereira, e seria minha mãe. O homem moreno é meu avô, o engenheiro Carlos Soares Pereira, e a mulher alta, minha avó, Maria Lúcia Palhares. A lagoa Rodrigo de Freitas virginal era onde eles moravam, desbravadores de uma Ipanema um pequeno passo além de selvagem. Alberto cortejava assim, suponho: fotografando.

Reconciliação com o passado
Quando, alguns anos depois, eu entrei na narrativa – na mesma casa à beira da lagoa que ele tanto fotografou – meu pai começou a desenvolver dois sets de propostas fotográficas: a documentação da família, que ele fazia copiando os preceitos europeus de seu cunhado e mentor (e onde ele se permitia incorporar o filme colorido, uma “novidade” que, por motivos óbvios, nunca o encantou inteiramente), e os ensaios de luz, textura e enquadramento, nos quais o Rio de Janeiro vai, literalmente, se transformando diante de nossos olhos.

É importante dizer que, em nenhum momento de sua longa vida (ele se foi aos 84 anos, o que é pouco para um Bahiana; costumamos chegar aos 100 sem dificuldade; minha tia Alice, viúva de Georges, é a única sobrevivente dos seis irmãos – aos 90 e alguns anos de idade), meu pai foi fotógrafo profissional. Da Panair ele passou à tesouraria do Departamento de Estrada de Rodagens do Rio de Janeiro, por onde se aposentou. Mas não me lembro dele sem uma câmera do lado, no pescoço, na mão, na pasta, na gaveta do gabinete. “Você tem que andar sempre com ela por perto”, ele me instruía quando me iniciou nos mistérios da arte, aos 7 anos. “Porque você nunca sabe quando uma foto vai aparecer.”

Fui uma discípula aplicada – uma das minhas fotos favoritas é uma dele me fotografando, no jardim da casa da lagoa, quando, aos 15 anos, eu ganhei a primeira câmera minha-só-minha. Mas minha irmã Monica e meu irmão Carlos Alberto são fotógrafos infinitamente melhores do que eu. O que aprendi nos anos de convívio com as paixões de meu pai foi o respeito pelo poder do momento, a importância da oportunidade e a possibilidade de uma beleza que se construa, que não se deixe ao acaso.

A outra lição – a reconciliação com o passado, o reconhecimento do seu poder e de sua beleza próprios – ele me deu da maneira mais dolorosa possível ao perder, ele mesmo, a memória que tanto preservara com suas fotos. À medida que o Alzheimer ia avançando em sua destruição implacável, era em suas próprias fotos que meu pai se abrigava, revendo e revendo seus álbuns, contando-me as mesmas histórias sobre cada um desses instantes roubados ao tempo.

Era uma dor e era uma bênção – que ainda houvesse uma ponte, mesmo que frágil, de comunicação entre nós, entre passado e presente, entre a Dança de Shiva, que tudo muda, e a memória das pedras. Vêm nisso dons sem preço: as possibilidades de compreensão, compaixão, perdão, a serenidade de saber que quando perdemos tudo há sempre algo que fica, porque é nossa essência, é quem somos, o ritmo que levamos para incorporar à dança cósmica. (E eu, naquele momento, já havia perdido muito além de meu pai – inclusive minha mãe, que se fora 11 anos antes. E perderia ainda muito mais.)

Numa de nossas últimas conversas meu pai e eu falamos de meus irmãos, do Zepelim que flutuava sobre a praia de Copacabana e das caixas, caixas, caixas de fotos que estavam “em algum lugar” de seu apartamento.

As caixas estão comigo, agora. Sinto-me guardiã de um portal poderoso para uma dimensão onde não há Morte, apenas Transformação, onde não há Perda, apenas Memória. A qualquer momento – como agora, nestas páginas – pode-se soprar Vida sobre esses fragmentos de papel, luz e sal de prata e tudo se torna real, presente, absoluto. E Alberto, Maria Helena e o Rio que eles habitaram vêm, novamente, falar conosco.

*Ana Maria Bahiana é jornalista, produtora eventual de cinema e autora dos livros Almanaque dos anos 70, Nada será como antes e Vida modelo

 

fechar