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Viciados em crack precisam de quê?

por Nathalia Zaccaro

Conversamos com o psicólogo Bruno Logan, dono de um canal no YouTube sobre redução de danos no contexto das drogas, para tentar entender onde está a saída para a cracolândia

O cachimbo mais usado na cracolândia, em São Paulo, é feito de metal. Quando o fogo queima a pedra de crack, a haste esquenta tanto que machuca os lábios dos usuários. As feridas abertas espalham doenças como herpes e hepatite entre aqueles que dividem o cachimbo. “Se tiver que compartilhar, o que você pode fazer é usar uma piteirinha de silicone para evitar o contato da boca com o metal”, ensina um vídeo do YouTube com mais de 20 mil visualizações chamado Crack e Redução de Danos, do canal RD com Logan. Quem dá as dicas - e tenta transformar o consumo de ilícitos em uma experiência o mais segura possível - é o psicólogo Bruno Logan, especialista em redução de danos no contexto de drogas. A prática consiste em minimizar os prejuízos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas.

Em 1984, na Holanda, o governo disponibilizou o primeiro programa de distribuição e trocas de agulhas e seringas para usuários de drogas injetáveis. A medida controlou os índices de Hepatite B entre os viciados e deu força às políticas de redução de danos pelo mundo. O programa De Braços Abertos, criado em 2014 pela prefeitura de São Paulo, trouxe para a cracolândia iniciativas de resgate social dos usuários de crack por meio de trabalho remunerado, alimentação e moradia.

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A proposta era encarar o dependente como um cidadão com direitos que não precisa necessariamente aderir ao tratamento de saúde para receber ajuda. Segundo os dados oficiais, 88% dos participantes do programa afirmaram ter reduzido o consumo da droga em média em 60% - de 42 pedras por semana para 17. A pesquisa foi feita com 400 pessoas.

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No último dia 21, o atual prefeito da cidade, João Dória, anunciou a suspensão do projeto De Braços Abertos. Três dias depois, a Procuradoria da Prefeitura de São Paulo entrou com pedido para que pessoas em situação de "drogadição" possam ser internadas compulsoriamente sem a necessidade de uma aprovação judicial individual. A avaliação seria feita por uma equipe multidisciplinar do município. O Tribunal de Justiça barrou a aprovação do pedido da prefeitura, que anunciou que vai recorrer da decisão. Pela lei atual, a internação pode ser considerada uma opção desde que todos os recursos extra hospitalares já tenham sido esgotados - e deve ser julgada caso a caso.

O pedido da Procuradoria ocorreu em meio a operações policiais e de demolição na cracolândia, que dispersaram violentamente a população que vivia ali. “Quando cheguei na região, no domingo, dia 22, os usuários já tinham se espalhado pela cidade”, conta a psicóloga Laura Shdaior, ex-funcionária do extinto De Braços Abertos e ativista do movimento A Craco Resiste, que luta pelos direitos dos usuários. "O que aconteceu ali foi uma quebra muito violenta de um vínculo que vínhamos construindo, os dependentes estão com medo, com razão. Não sabemos o que vai acontecer", explica.

Abaixo, nosso papo com Bruno Logan. Na conversa, o psicólogo, dono canal do YouTube que citamos no início do texto, tenta desmistificar essa ideia que muita gente ainda tem, de que a violência é remédio para alguma coisa.

Você já esteve na cracolândia? Sim, trabalhei lá durante três anos na ONG É de Lei, que oferece apoio aos usuários com estratégias de redução de danos.

Que tipo de ações vocês realizavam? O caminho é estabelecer um vínculo. O tratamento tem que fazer sentido para a pessoa. É preciso oferecer cuidado. Distribuímos as piteiras de silicone e protetor labial, por exemplo. Um lugar pra dormir, possibilidade de inserção social. Além de informação, claro. Ter certeza de que eles sabem quais são seus direitos e ajudá-los a minimizar os prejuízos  à saúde do consumo da droga.

O que você achava do programa De Braços Abertos? Foi uma quebra de paradigma. A primeira vez que o Estado ofereceu alguma coisa que não fosse repressão policial. Mas o programa tinha problemas, e o maior deles era falta de verba para ampliar o atendimento. Mas sem ele estamos muito pior.

Internar compulsoriamente pode ser uma opção, como sugere a atual gestão da cidade? Não, não funciona. A ciência já provou que internação compulsória para dependentes químicos não funciona. Você vive em um contexto, tem amigos que se juntam para consumir, frequenta lugares em que consegue comprar as substâncias. De repente, você é tirado dali e vai para uma instituição. Vai parar de usar a droga enquanto estiver lá. Quando voltar para a sua realidade, você volta para a droga. Se a autonomia da pessoa não é respeitada, não vai funcionar. Isso é óbvio. Quem defende internação compulsória não quer resolver o problema, só quer se livrar dessas pessoas. O problema ali é a vulnerabilidade. Não é só a droga. É social. Se você arranca alguém de seu contexto e tranca em uma clínica, é claro que ela não vai se drogar enquanto estiver lá. Mas e depois?

Mas e a percepção de muitos, de que os dependentes não têm condição de decidir o que é melhor pra eles? É uma falácia. Eles querem cuidados e podem decidir parar. Mas para que essa decisão aconteça é preciso respeitar o indivíduo, o cidadão. Trazer a pessoa para perto da ajuda, com cuidado e informação. Se ele não participar da escolha, não adianta internar.

Que tipo de iniciativa internacional pode servir de inspiração para lidarmos com a cracolândia? No Canadá, onde estou agora, existem salas de consumo seguro de crack financiadas pelo governo. O dependente vai quando quer e fuma em ambientes supervisionados por médicos e psicólogos. Se um dia essa pessoa quiser parar, ela sabe onde ir. Ela conhece os médicos, eles estão perto dela. É o oposto de soltar uma bomba e afugentar quem está em situação de vulnerabilidade.

Muita gente pensa que esse tipo de iniciativa estimula o consumo. O que você acha? Não se pode falar em crack sem gerar terror nas pessoas. Não é por aí. O crack está longe de ser a droga mais perigosa que existe. O álcool é a droga mais perigosa que existe. É um tabu. Iniciativas como essa do Canadá, de redução de danos, são tabus. Mas são as soluções mais efetivas e baratas que conhecemos. Não é apologia, é cuidado.

Como foi sua experiência de falar sobre isso na internet? Está sendo muito legal, tenho 100 mil visualizações no canal RD com Logan. Sei que as informações estão sendo úteis por aí. Minha conta do Facebook já foi bloqueada três vezes por apologia ao uso de drogas. Outras vinte vezes já tive problemas em páginas na internet por tratar do assunto. Não estou fazendo apologia, estou falando sobre um assunto que existe e diminuindo os riscos de quem é usuário da droga. É essa ilusão de que, se a gente não falar sobre o assunto, ele não existe. Tipo nos anos 80, quando a ideia de distribuir preservativo para adolescentes apavorava as pessoas. Um professor podia ser preso por dar uma camisinha na escola. Se a gente não toca no assunto, não educa ninguém.

Créditos

Imagem principal: Creative Commons

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