Os barbeiros de Roterdã

por Alexandra Dinter

Na barbearia Schorem Haarsnijder & Barbier, na Holanda, “gentlemens” tatuados dão novo fôlego a uma clássica tradição do cuidado da barba

“Schorem” em holandês significa “canalha” ou “escória”, mas também pode ser traduzido literalmente como “fui eu que te barbeei” – um ótimo trocadilho, dizem os dois sócios fundadores desta barbearia singular quando,  fundada em 2010. Os donos, Lion Bergman e Robert Rietveld, ou melhor, “Leen, o barbudo bastardo” e “Bertus, o açougueiro sangrento” são amigos e barbeiros à moda antiga há muitos anos – talvez ou justamente por causa de suas diferenças.

Ambos aprenderam minuciosamente o ofício, e a marca deste trabalho conjunto é a barbearia Schorem Haarsnijder & Barbier, no centro da cidade de Roterdã, na Holanda. A presença do negócio contrasta ao ir na contramão de uma inundação de salões unissex que se proliferam pela região. É um salão de renome já quase lendário.

Na Schorem não existem coisas como "mechas no papelote" ou outras bugigangas parecidas. Há apenas cortes para homens. Pois é, sem conversa fiada. Aqui, mulheres não entram, o que absolutamente não significa que estes barbeiros não saibam valorizá-las, como eles mesmos deixam bem claro. “Nós amamos as mulheres e vemos como nossa missão deixar os homens os mais bonitos possíveis para as suas garotas, mas achamos que uma barbearia é um lugar de homem”, eles costumam dizer. Para eles, qualquer presença feminina desviaria o foco dos fregueses. “Quando uma mulher atraente entra, todo homem aqui dentro se transforma em um pavão, querendo mostrar as suas plumas e se tornar o primeiro lobo da matilha.  Isso muda a atmosfera do ambiente”, dizem os sócios.

E eles se importam com a atmosfera. Você consegue isso no dégradé e na mobília original do século passado, que unidos dão a impressão de uma mistura interessante de bar do Velho Oeste com restaurante dos anos 1950 e antigos clubes de cavalheiros.

O equipamento tradicional, como pente, navalha e pincel, é acrescido de equipamentos modernos e até de criações próprias, como borrifadores caseiros com rótulo de um whisky famoso. Ou também pomadas caseiras: com uma marca chamada Reuzel (banha de porco, em holandês) os barbeiros de Rotterdam remontam à tradição histórica de um tempo em que as pomadas ainda eram feitas de banha animal e refinadas com aromas de maçã.

A essência histórica também pode ser vista pelas paredes do estabelecimento, onde estão pendurados os famosos pôsteres da Schorem que exibem os modelos clássicos do mundo dos penteados. “Nós decidimos oferecer somente cortes clássicos que resistiram ao teste do tempo e ainda são muito bem aceitos”, explica um dos sócios. São cortes e estilos que nunca saem de moda. São ícones imortais, como o corte “Elvis Presley” e “James Dean”, que servem como base para qualquer outro tipo de corte possível. Tanto faz se é um ‘Flattop Boogie’ (corte militar, com um leve topetinho na frente) ou o ‘Junior Pomp’ (o clássico topete do Elvis): basta o cliente erguer o braço e apontar para um dos penteados das fotos. “A gente se entende até sem palavras”. Também não existe hora marcada: quem vai ao salão deve esperar a sua vez na fila, se servir de uma cerveja, folhear uma revista ou observar os mestres trabalhando. Afinal, o show dos barbeiros faz parte da experiência de ir ao Schorem.

“Os primeiros desenhos de barbeiros foram achados nas pirâmides. Eles foram os cabeleireiros, os primeiros cirurgiões, os primeiros dentistas”
Bertus, o Açougueiro Sangrento

Juntamente com cortes certeiros e toalhas quentes, os barbeiros se preocupam em proporcionar a atmosfera ideal para o local. A atuação dos 14 “Scumbags” (Ou schorem, em inglês) como eles se autodenominam, não é simplesmente uma encenação, mas uma estratégia pessoal e cuidadosamente planejada. Leen e Bertus têm uma ideia bem definida do perfeito barbeiro: “Nós não temos muitas regras. Sabemos simplesmente quem é o cara certo no momento em que ele entra aqui. Para nós, não interessa como ele se veste ou a música que ele curte. O fundamental é que o barbeiro tenha o perfil da equipe e paixão pelo ofício. Nós nunca contratamos uma pessoa que encare tudo isso como um emprego convencional”, diz Bertus . Até mesmo um passado criminal não é um empecilho para uma contratação. O time, formado por rockabillys, psycobillys, gentlemen, vagabundos, punks, brigões de rua, freaks, artistas, roqueiros e motoqueiros, constitui um clã multicultural. Esta diversidade é comemorada não só por buscarem reviver a moda dos velhos tempos – a gravata, por exemplo, é um item obrigatório –, mas também reviver o comportamento destes mesmos tipos há décadas passadas.

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Uma tatuagem com a marca do salão é quase um elemento da identidade corporativa, mas não é algo que seja obrigatório ou que force um vínculo. “Não é que, se alguém sair do grupo, nós iremos retirar sua tatuagem com um soldador”, diz Bertus, rindo. “Como também não são obrigados a usá-la, mas, se eles quiserem, podem fazer uma de graça. Ela expressa o orgulho de pertencer ao time Schorem”.

Muita coisa também se percebe ao olhar as fotografias dos funcionários do salão: entre boinas, chapéus e jalecos brancos, surgem expressões mal-encaradas, identificadas com nomes que mais parecem tirados de um roteiro de filme gângster norte-americano. “Raunchy Randy, o rebelde retrô”, “Demônio Daan”. O estilo mafioso convence e realmente parece autêntico. Temos a impressão de que, a qualquer momento, o Al Capone pode entrar e se sentar em uma das velhas poltronas de couro. Não que isso crie uma aura tensa do lugar. “Sempre estamos fazendo piada e rindo de alguma coisa”, dizem os funcionários. Em tudo existe uma gracinha e uma boa pitada de ironia – em tudo, menos no serviço que está sendo executado.

 O chefe Bertus define a tarefa do barbeiro como nada menos que a perfeição. “O que conta não é tanto a criatividade, mas sim uma pegada firme e um serviço caprichado de um especialista”, diz. É exatamente esta postura em relação ao ofício que esses barbeiros holandeses transmitem aos seus funcionários e estagiários. Enquanto os novos integrantes do time têm que aguentar algumas coisas antes merecer um lugar no clã – “O grupo todo sacaneia e provoca o dia inteiro” – os aprendizes à distância podem assistir, com todo o conforto, aos vídeos “como fazer” no canal do YouTube da barberia. Ou agendar um curso na “Old School Barber Academy” (Academia de Barbeiros à Moda Antiga), escola fundada pelos próprios barbeiros da Schorem. Ela está situada bem em frente ao salão, nas dependências antigas que há ficaram pequenas para a grande quantidade de clientes que, diariamente, peregrinam até ao local.

Pouco tempo após sua inauguração, a Schorem alcançou um sucesso que nem mesmo os seus fundadores conseguem explicar. Bertus e Leen viajam pelo mundo dando workshops, entrevistas e autógrafos. “É realmente estranho e nós nunca tínhamos imaginado que isso fosse acontecer, afinal, nós apenas cortamos cabelo. Não é nenhuma mágica extraordinária, não é verdade? O que nós queríamos era somente abrir uma barbearia, ter um pouco de diversão e cortar os cabelos dos nossos amigos. Eu acho que tivemos uma sorte muito grande em fazer a coisa certa, na hora certa”.

Quando interpelamos Bertus sobre a moda atual e de uma galera menos interessada em cuidar da barba, ele levanta as mãos, em advertência “Nunca se deve subestimar uma tradição milenar. Os primeiros desenhos de barbeiros foram achados nas pirâmides – eles foram os cabeleireiros, os primeiros cirurgiões, os primeiros dentistas e os primeiros tatuadores. A barbearia é uma espécie de oásis na sociedade, um lugar onde as pessoas se encontram fora do convívio habitual da casa e do trabalho”. Essa função social fica evidente quando se nota que tipo de cliente entra no salão. Os homens esperam mais do que somente lavar, cortar e secar o cabelo. Eles desejam fazer uma espécie de viagem no tempo a um lugar místico e estar à vontade entre si. Tanto faz a idade. Não é à toa que o ato de fazer a barba é como um rito de iniciação – uma transformação.

É estético, mas também emocional. Bertus confirma isto ao se lembrar do dia mais marcante que teve em seu trabalho: “Um pai trouxe o seu filho que estava com câncer. Em sua lista de últimas coisas a fazer antes de morrer, constava também uma visita à Schorem. Leen fez a barba dele e também cortou o seu cabelo. Uma semana mais tarde, o pai veio novamente para contar que o filho dele havia falecido e nos agradeceu pelos ótimos momentos que passou aqui. Este foi um dos momentos mais emocionantes das nossas vidas. Todos tivemos que nos segurar para não chorar”.

Ser um homem de verdade, um gentleman, significa muito mais do que ter uma apresentação com estilo. Disso Bertus também está convencido. “O gentleman de hoje anda do jeito que ele quer. Não é tão importante a sua aparência, mas como você se comporta”.

*Matéria publicada originalmente na edição #21 da Trip Europa.

Tradução de Mathias Rempel.

Créditos

Imagem principal: Jelle Molema

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