“Estamos mais pra Anitta do que BaianaSystem"

por Kamille Viola

Entre o independente e o mainstream, Àttøøxxá lança terceiro disco, exportando a atual e rica cena de Salvador

No carnaval de Salvador de 2018, uma pesquisa realizada pela TV Bahia elegeu como melhor música do período “Elas gostam (popa da bunda)”, com Marcio Victor (Psirico) e Àttøøxxá. Pudera: nomes como Ivete Sangalo, Léo Santana, Wesley Safadão e Xanddy foram alguns dos que cantaram o hit. O sucesso impulsionou a carreira do Àttøøxxá (pronuncia-se “atocha”), um dos destaques da cena independente nacional e que lança seu terceiro disco, Luvbox. 

“Estava com minha filha dando um rolé num shopping e minha música tava de pano de fundo. Realmente, foi uma reviravolta, era a primeira vez que via uma música produzida pela gente chegar em todos os lugares”, conta o DJ e produtor Rafa Dias, fundador do grupo. “Essa parceria foi muito importante para a gente obter um outro público. No Nordeste, existem pessoas que escutam muito rádio, e essa galera desse mercado pop, principalmente que veio da indústria do axé, absorve isso muito”, comenta o guitarrista Wallace Chibatinha, o Chiba.

Luvbox traz 13 canções do vocalista Raoni Knalha, que, como o nome do trabalho dá a atender, giram em torno do amor. Rincon Sapiência participa em “Só vem”, e os baianos Supremo MC e Nessa estão em “Desapega” e “Eu juro”, respectivamente. “É sim verdade” foi a primeira a ganhar clipe, em setembro. “Nesse disco, especificamente, compus a maioria das letras, para mostrar essa parte mais melódica, que não tem ainda nos outros trabalhos”, comenta Knalha. “Acho realmente que vai ser aquele disco que as pessoas vão cantar de olhinho fechado, sabe?”, diverte-se Dias.

A banda foi criada em 2015 por Rafa Dias, 28 anos, um baiano da cidade de Paulo Afonso, a 434 quilômetros de Salvador. “Fazia arrocha com dubstep, influência do Skrillex, que é uma das referências para mim”, explica ele. “O nome Àttøøxxá é uma expressão lá de Paulo Afonso, que vem de aumentar. Como a gente trabalha com subgrave e tudo mais, o som tem que ter volume, então 'atocha'. As letras dobradas vêm da dualidade, que é algo que me rege muito, fazer o equilíbrio entre os opostos. A cidade faz divisa com três estados (Alagoas, Sergipe e Pernambuco) e é circundada por tribos indígenas. Até outro dia os Pankararus estavam reivindicando terra, os posseiros querendo tomar. E, na minha cabeça, esses acentos eram uma coisa indígena”, lembra.

Osmar Oz, 33, Raoni Knalha, 30, e Chiba, 22, juntaram-se a ele no ano seguinte. Foi na festa Bota Pagodão, com Rafa Dias e mais dois produtores de música eletrônica, que o Àttøøxxá começou a se formar como é hoje. “Desde a primeira edição, me propus e propus à galera fazer a parte orgânica ali, para ter uma interação, algo diferente com a música eletrônica. E quem eu convidei, logo na primeira? Os três. Aí a química, na hora, bateu. E as coisas foram acontecendo muito naturalmente”, recorda Dias.

O primeiro disco, Àttøøxxá é f*da p*rra (2016), foi lançado quando a banda ainda era um projeto só de Rafa Dias. O som do grupo foi mudando espontaneamente para uma mistura de pagode baiano — Oz e Chiba, por sinal, eram da banda Pagodart, expoente do gênero — com eletrônico. Blvck Bvng (2017) veio com canções de Oz, inclusive o futuro hit, “Elas gostam (popa da bunda)”, em versão mais eletrônica que a regravação com Márcio Victor. O próximo trará músicas de Chiba.

“Eu já tinha mostrado a minha coisa. Blvckbvng é um disco que é Oz, ele tem um clima de Oz, um clima de Salvador, um clima de onde ele vive. Esse disco de Raoni também é outro clima, de sambão — o que para a gente é sambão, aqui no Rio é pagode —, R'n'B, soul, é um disco muito mais melódico. Talvez até dê um choque, porque a galera que tem uma imagem [pré-formada] do Àttøøxxá. Tem muitas faixas para você ficar em casa, tomando um cafezinho, ficar suave, outra linguagem”, analisa. “Claro que você vai ter o DNA do Àttøøxxá, que, na minha visão, é essa busca por algo que talvez não tenha sido feito ainda. Hoje talvez, nada se cria, tudo se recria, tudo se copia. E a gente tem esse desejo de se flertar, de fazer algo novo, que nunca se fez, por isso a gente busca outras estéticas. A música eletrônica também dá muito desse aval, de ter um som que você identifica como Bahia, mas que, se você colocar numa boate lá na Austrália, as pessoas vão dançar, porque tem o grave”, acredita ele.

O grupo já vinha sendo escalado para festivais de música independente pelo país, mas em 2018 foi bem requisitado por curadores, passando por Bananada (Goiânia), FIG (Festival de Inverno de Garanhuns, em Pernambuco), Coala (São Paulo) e Sai da Rede (Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte), entre outros. Chamados por alguns de “o novo BaianaSystem”, eles rejeitam a comparação. “Estamos muito mais para Anitta, Iza e Pabllo Vittar do que Baiana, sabe? Os caras do Baiana são nossos amigos, a gente admira eles, mas acho que nosso desejo de música e de alcance é um pouco diferente. A gente não quer realmente ter fronteiras de comunicar”, explica Rafa Dias. “Fora da Bahia a gente circula pelo público alternativo, mas lá já conseguimos dividir o palco com É o Tchan, Harmonia do Samba”, diz.

Aliás, este é um momento de holofotes voltados para a cena musical de Salvador, que inclui nomes como o Baiana, Luedji Luna, Baco Exu do Blues, Xênia França e Larissa Luz (que terá seu próximo disco produzido por Rafa Dias). “Costumo pensar que a Bahia nunca parou. O samba tem a origem lá na Bahia, no Recôncavo. Aí vêm a tropicália, a bossa nova, todas coisas que têm baianos envolvidos, né? Todas dessa Bahia que deseja se comunicar com o mundo, ser multi, plural, com um alcance enorme. Acho que a Timbalada, ali nos anos 90, também tinha essa vontade, rodaram o mundo, fizeram tudo. E eu acho que a gente está meio que resgatando isso agora, esse desejo de sair daquele olhar da indústria e a música voltar a ser arte”, acredita o DJ e produtor. “O último som que eu lembro de ser uma parada original no Brasil foi no começo dos 90, aquela galera do Raimundos, Planet Hemp. Eles manifestavam a liberdade de expressão, de comunicar a sua opinião. E acho que agora, depois desse período em que todo mundo ficou meio que numa caixinha, a galera tá trazendo isso de novo à tona”, arrisca Raoni Knalha.

Vivendo na cidade mais negra do Brasil (82% declaram-se negros), eles contam que não sentem necessidade de falar sobre negritude em suas letras: acreditam que o caminho já foi desbravado pelos seus antecessores. “Os blocos afro apresentaram para a cidade de Salvador uma perspectiva negra como nunca tinha sido vista. No fim dos anos 70, início dos 80, quando surgem os blocos afro [o mais antigo é o Ilê Ayê, de 1974], nasce todo aquele desejo de mostrar que a Bahia era feita por negros. E acho que a gente é uma geração pós, que já é empoderada, não baixa mais a cabeça. Já é inerente a gente estar com essa autoestima, que todos os caras gritaram lá atrás [para conquistar]”, acredita Rafa Dias.

O objetivo, eles contam, é reafirmar seu espaço. Cantar o baile de preto pelos pretos. “Até hoje a rainha do axé é Daniela Mercury, e não Margareth Menezes. Ela canta 'a cor dessa cidade sou eu' e é branca, cantando como se fosse uma negra”, exemplifica Dias. “Então é como a gente se vê agora cantando: é um espaço que a gente não vai mais devolver. A questão de não baixar a cabeça não é desprezar ninguém. É saber que nós somos iguais mesmo.” 

 

fechar