por Lia Hama
Trip #204

A cada 36 horas um homossexual é assassinado em crimes relacionados à homofobia no Brasil

A cada 36 horas um homossexual é assassinado em crimes relacionados à homofobia no Brasil. Foram pelo menos 260 homicídios de gays, travestis e lésbicas no ano passado. Apesar dos inegáveis avanços que ocorreram nas últimas décadas – como a decisão histórica do STF de reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo –, ainda há um longo caminho a percorrer em direção a uma sociedade que, de fato, respeite a diversidade sexual. Trip conversou com líderes do movimento LGBT, terapeutas e políticos. Eles concordam que o próximo passo é a aprovação do projeto de lei que criminaliza os atos de homofobia.

Avenida Paulista, 6h30 da madrugada. Dois pastores evangélicos esperam um táxi quando veem cinco jovens atravessarem a rua na direção deles. Ao se aproximar, um deles dá um soco na cabeça de um dos pastores. As vítimas correm cada uma numa direção. “Apanhei até entrar no metrô. Ainda tropecei e caí na escada”, conta um deles. O outro cai no chão sangrando com os ferimentos e tem que ser levado ao hospital. Durante as agressões, os jovens gritam: “Seus evangélicos!”. Na sequência, o grupo segue armado com lâmpadas fluorescentes nas mãos em direção a outros três pastores que saíam de uma lanchonete. Eles atacam a cabeça e corpo de um deles com as lâmpadas. O segurança de uma loja sai em direção ao grupo de jovens, que foge. Detidos pela polícia mais tarde, eles afirmam que foi uma briga comum e que não têm nenhum tipo de preconceito religioso. * 

Pecado, doença, desvio de conduta. São inúmeras as visões negativas que surgiram a respeito da homossexualidade ao longo da história e que – uma a uma – foram derrubadas pelo avanço do conhecimento. Homossexuais já foram queimados em fogueiras, levados para campos de concentração e internados em clínicas de “correção”. Hoje, quando se poderia imaginar que isso fosse coisa do passado, eles continuam a ser espancados e mortos simplesmente pelo fato de serem... homossexuais. Em 2010, pelo menos 260 gays, travestis e lésbicas foram assassinados no Brasil, vítimas da homofobia. Os números são do Grupo Gay da Bahia, uma das pioneiras e mais ativas associações na defesa dos direitos dos homossexuais no país. Não há dados oficiais sobre o assunto, mas o estudo da ONG já dá uma amostra da intolerância que ainda persiste por aqui. Os recentes ataques na avenida Paulista, em festas de estudantes da USP e em feiras agropecuárias que ganharam as manchetes dos jornais em todo o país são mais uma prova disso.

Após a decisão histórica do Superior Tribunal Federal em maio deste ano, quando autorizou a união estável entre pessoas do mesmo sexo, a principal bandeira do movimento LGBT agora é aprovar o projeto de lei que torna crime a homofobia no Brasil. “O PLC 122 equipara a homofobia ao racismo e à discriminação religiosa”, explica o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Em tramitação no senado, o projeto foi aprovado pela câmara dos deputados em 2006 e sofre forte oposição da bancada evangélica, que argumenta que ele fere a liberdade religiosa e de expressão. De acordo com seus opositores, a lei, se aprovada, impediria padres católicos e pastores evangélicos, por exemplo, de pregar contra a homossexualidade. O deputado Jean Wyllys rebate: “Da mesma maneira que um padre não pode fazer um discurso antissemita ou racista na missa, se esse projeto for aprovado, ele terá que tomar cuidado para não disseminar o ódio aos homossexuais. Não dá para levar ao pé da letra o que diz a Bíblia. Tem que contextualizar. Assim como a ciência já provou que a Terra não é o centro do Universo, ela já demonstrou que a homossexualidade não é uma doença ou um tipo de perversão. O conhecimento avança, não dá para negar essas coisas”.

Na opinião do antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, as atuais políticas LGBT governamentais são ineficazes para reduzir a violência contra os homossexuais. “O número de assassinatos aumenta a cada ano. É assustador. Como não existem dados oficiais sobre o assunto, nosso levantamento é feito com base em notícias que saem em jornais, TVs, internet e mensagens enviadas pelos grupos gays de todo o Brasil. Mas certamente é subnotificado, há muito mais casos não relatados”, afirma. Para Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), “obviamente a aprovação de uma lei como essa não vai resolver todos os problemas, mas certamente vai ajudar a inibir a violência de pessoas homofóbicas”.

"Assim como a ciência já provou que a Terra não é o centro do Universo, ela já demonstrou que a homossexualidade não é uma doença ou um tipo de perversão", Jean Wyllys

Um levantamento do Centro de Combate à Homofobia, órgão da prefeitura de São Paulo que oferece um serviço de denúncias, aponta que a maior parte das pessoas que cometem atos de homofobia tem algum tipo de vínculo com a vítima. “São familiares, vizinhos ou colegas de trabalho. Isso mostra a questão da impunidade. Mesmo sabendo que vai ser reconhecido, o agressor comete a violência porque sabe que não será punido”, afirma Franco Reinaudo, que comanda a Coordenaria de Assuntos de Diversidade Sexual (Cads), da prefeitura. A região central da cidade concentra 50% dos casos de agressão física. É onde estão localizadas a avenida Paulista e a rua Augusta, chamada pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) de “Faixa de Gaza”, por concentrar boa parte dos casos de crimes de ódio, incluindo aqueles voltados contra os gays.

Na avaliação dos especialistas, esses ataques em áreas centrais provavelmente são uma reação à maior visibilidade conquistada pelos homossexuais. Esse público representa 10% da população do país, segundo o IBGE. Nas últimas décadas, uma série de avanços permitiu que cada vez mais gays e lésbicas saíssem do armário e exigissem seus direitos. Houve o crescimento no número de grupos ativistas (em 1995 eram 95 grupos LGBT organizados; hoje são mais de 300), a multiplicação das paradas de orgulho gay (a primeira foi em 1997; hoje são mais de 200 em todo o país) e a formação de um forte mercado voltado para esse público. A discussão sobre a homofobia conquistou espaço até no horário nobre da TV Globo: a novela das nove, o grande formador de opinião das massas brasileiras.

“No momento em que os homossexuais, com a Parada Gay e as demonstrações públicas de afeto, tomam simbolicamente a avenida Paulista, um espaço antes restrito aos heterossexuais, há uma reação de grupos contrários a eles. A Marcha de Jesus, o Dia do Orgulho Hétero são provas disso”, afirma Klecius Borges, terapeuta especializado em atender gays, lésbicas e bissexuais. O problema, diz o psicólogo, é quando a discussão sai do campo das ideias e o homofóbico parte para a violência. “Hoje felizmente os homossexuais denunciam mais as agressões. Mas, até pouco tempo atrás, se o sujeito fosse prestar uma queixa na delegacia ele seria motivo de chacota por parte do policial e ainda corria o risco de apanhar.”

Segundo Klecius, numa sociedade ideal não seria necessário criar leis contra a violência doméstica, o racismo ou a homofobia, mas no atual estágio de desenvolvimento do Brasil ainda é preciso que elas existam. “Por que existe a Lei Maria da Penha? Porque a sociedade como um todo não é capaz neste momento de fornecer instrumentos capazes de proteger uma mulher que é sistematicamente abusada pelo marido. A mesma coisa acontece com os gays. A situação atual é tão perigosa que nesse estágio é preciso uma lei que criminalize os atos de homofobia. É necessário algo que iniba esse tipo de violência”, conclui o psicólogo.

Madrugada de sábado, esquina da alameda Jaú com a rua da Consolação, em São Paulo. Saindo de um bar, um militar volta a pé para casa com três amigos. De repente é surpreendido por uma garrafa lançada do outro lado da rua em sua direção. “Antes de a garrafa cair, outras pessoas me passaram uma rasteira por trás e eu caí. Meus amigos conseguiram correr e entrar em um bar, mas eles [os agressores seguraram minhas pernas e começaram a me chutar.” Por alguns minutos, ele é espancado por uma gangue de homens e mulheres com roupas pretas e coturnos. Como resultado das agressões, o militar tem o maxilar quebrado, perde um dente canino, sofre luxação nas costelas e recebe pontos na boca e no nariz. *]

Confundidos com uma dupla sertaneja, um homem de 42 anos e seu filho de 18 anos foram atacados por um grupo de seis rapazes numa noite de quinta-feira numa feira agropecuária em São João da Boa Vista (SP). “Um deles perguntou: ‘E aí, vocês são sertanejos?’ Eu disse que não. Não queria confusão”, conta o pai. Mesmo assim, ele levou um soco no queixo que o fez desabar no chão e ficar inconsciente. “Quando acordei, só ouvia os gritos: ‘O homem está sem orelha!’”. Na agressão, a orelha esquerda dele foi decepada por um instrumento cortante. “Tive de andar mais de 500 metros, sangrando, meu filho segurando o copo com gelo e minha orelha. E ninguém nos socorreu”, declarou. O pedaço da orelha apodreceu sem que ele conseguisse fazer o reimplante. *

* Estes depoimentos são histórias reais. As vítimas, no entanto, não eram sertanejos, pastores evangélicos ou militares, mas sim homossexuais ou pessoas tidas como homossexuais. Foram espancadas pelo simples fato de serem (ou parecerem ser) gays. As fotos, produzidas especialmente para este ensaio, não retratam as verdadeiras vítimas.

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Onde denunciar:

Centro de Combate à Homofobia
http://tinyurl.com/3v34ogm

(11) 3311-3556
Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância

Disque 100
Serviço telefônico que funciona em todo o Brasil

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