Qual a sua causa?

por Redação

Continuando as comemorações de três décadas de Trip, lembramos de alguns desses momentos para inspirar caminhos. De que lado você samba?

Nesses 30 anos de existência, a Trip esteve engajada em todo tipo de diálogo, seja lutando por causas específicas, como a proibição da publicidade de cigarros, ou abrindo espaço para discussões amplas e embasadas sobre temas de grande impacto como o racismo, o futuro do trabalho ou a educação no Brasil. Continuando as comemorações de aniversário da revista, lembramos de alguns desses momentos para inspirar caminhos e conversas futuras.

O fogo pode queimar
Em 1998, a Trip avisou que não iria mais aceitar anúncios de cigarro em suas páginas, uma decisão pioneira tomada quando essas campanhas publicitárias estavam por todos os lados, inclusive patrocinando projetos esportivos e culturais importantes como o Free Jazz Festival. Uma lei que as proibisse parecia distante e um aparente tiro no pé de empresas de mídia como a própria Trip. Naquele ano, publicamos uma edição especial sobre tabagismo, e especialmente sobre as estratégias de comunicação a serviço da dependência química, fruto de uma longa e rigorosa pesquisa. “A estratégia da indústria do fumo é viciar as pessoas. É a mesma de qualquer droga: vender para quem tem mais chance de se viciar. Os publicitários sabem disso, e dirigem a mensagem para as crianças e os adolescentes”, disse Drauzio Varella na época. Hoje, no Brasil, os fabricantes são obrigados a publicar fotos e avisos que mostram a devastação física que o tabaco promove e a publicidade é proibida por lei (na foto, a comemoração da Trip na data da proibição).

A luta da Trip nunca foi contra quem fuma, mas contra a imagem que os fabricantes de cigarro querem passar de um produto que gera dependência. Uma das críticas principais da revista era o uso pela indústria tabagista do imaginário do esporte, principalmente de esportes radicais, em suas campanhas. Outra edição especial foi publicada em 2012, num momento em que a indústria tentava recuperar o fôlego se aproveitando das leis brandas de países mais pobres na África e na Ásia e tentava se vender dessa vez como "defensora da liberdade".

País do futuro(?)
Racismo, homofobia, sexismo, xenofobia: tudo isso está longe de acabar (a xenofobia anda até, tristemente, aumentando em alguns lugares do planeta), mas é certo que as intolerâncias do mundo nunca estiveram tão escancaradas e discutidas. Um beijo entre dois homens, corajoso na capa da Trip especial sobre diversidade há cinco anos (foto), agora já está em espaços bem maiores, como novelas. Ainda há muito a ser conversado, porém.

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Se há dois anos, na edição #231 com Anderson Silva na capa, destacávamos que o Brasil é um país racista, a frase em destaque na capa continua ainda atualíssima – tanto que voltou para a revista pela boca da Trip Girl deste mês, Ilka Cyana. “É foda ser preta no Brasil”, ela afirma no perfil que acompanha seu ensaio, na página 50. Mais do que apenas o surgimento de novas lideranças isoladas nas lutas das mulheres, dos homossexuais, dos negros e de outros tantos grupos marginalizados, o que chama a atenção nos últimos anos é o crescimento de um movimento interdependente e interconectado.

Não fale em crise, trabalhe?
A ideia que temos do trabalho está mudando em todo o mundo – embora não seja novidade que o trabalho só enobrece o homem se ele tiver sentido para quem trabalha. “Trabalho sem prazer é um fardo muito pesado para ser carregado”, comentou o sociólogo José Pastore, estudioso da labuta, na edição #154, de abril de 2007. A mudança mais radical, porém, não é só no significado de trabalho (castigo ou prazer?, fonte de brigas ou conquistas?), mas também no significado de riqueza: paixão e tempo livre levados mais em conta do que o capital. "Ganhar dinheiro, alcançar uma posição de destaque, ter prazer sensorial. Isso faz parte da vida. O problema é ser escravo disso", afirmou o lama Michel Rinpoche em 2012, durante um encontro com Abílio Diniz promovido pela Trip. "Uma parte dessa busca tem a ver com inquietações de quem é jovem, uma parte tem a ver com uma busca que é tão antiga quanto o homem, mas também tem a ver com novas possibilidades de trabalho", disse o executivo Marcelo Cardoso na edição de outubro de 2012. A ideia de amar o que faz, porém, não deixa de ter suas pegadinhas: é importante não se deixar confundir por um amor idealizado, pensando apenas em momentos felizes. O assunto não sai da nossa pauta.

Quebrando o tabu
O problema do Brasil é a educação. Isso é dito pelos cantos do país há anos, décadas. Mas, se a frase em si já perdeu impacto, a discussão sobre o ensino é tão urgente hoje quanto era há dez anos, quando a Trip fez a primeira edição especial sobre o tema, em março de 2006. Embora a necessidade de uma mudança seja óbvia, o tamanho da mudança não é consenso, como fica claro em uma conversa entre o empresário Ricardo Semler e o economista Gustavo Ioschpe promovida pela Trip na edição #203, de setembro de 2011.

Enquanto Ioschpe defende melhorar o sistema atual de ensino, sem mudanças drásticas na filosofia educacional, Semler quer revolucionar tudo. “Uma melhora do modelo educacional seria um avanço muito marginal. É como colocar um motor zero-quilômetro na carroceria de um Opala 67”, disse ele na época. “É importante a gente falar de escola? É claro que sim! Mas é muita inocência a gente falar de escola num país onde até a saúde é comércio”, disse o rapper Criolo, que é filho de professora e trabalhou 12 anos como educador, nas Páginas Negras em 2013. Algo é certo: na escola e em projetos de educação não formal (tão importantes no século 21 quanto os currículos formais), é preciso formar pessoas que entendam o poder do conhecimento.

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Balas perdidas
Uma forte bancada pró-armas no Congresso tenta com certo sucesso, desde meados do ano passado, a revogação do Estatuto do Desarmamento. Não seria a primeira derrota da lei: em 2005, dois anos depois da sua aprovação, o resultado de um referendo nacional foi contrário à proibição da comercialização de armas de fogo e munições.

Na época, Trip publicou uma edição especial (foto) em que, depois de ouvir estudiosos, ativistas, policiais e mergulhar em estatísticas, colocava o desarmamento como a melhor opção para o país. Mesmo sem a proibição da venda, segundo o Mapa da Violência 2016, o estatuto evitou 133 mil mortes entre 2004 e 2014. “Sou a favor do controle de armas não por ter a ilusão de que isso vá pôr fim imediato à criminalidade, mas porque a proibição pode ajudar a construir uma cultura de paz”, disse no especial o jornalista e escritor Zuenir Ventura. Infelizmente, o Brasil segue como um dos países com o maior número de homicídios com armas de fogo. O debate continua urgente.

Massa crítica

A bicicleta pode ser uma arma para reinventar o mundo? Na fase de transição em que vivemos, o que significa andar por aí em duas rodas? “O pessoal da bicicleta está criando uma sociedade com outro tipo de status. Algo mais sutil, mais musical”, disse nas Páginas Negras na edição #201, de julho de 2011, David Byrne, cicloativista e ex-líder do Talking Heads. Na mesma revista, discutimos se as bikes poderiam ser uma opção para o trânsito de São Paulo. “A bicicleta supre uma necessidade urbana, além de humanizar a cidade”, afirmou o urbanista Ricardo Correa na reportagem, ilustrada com imagens quase proféticas das avenidas da capital paulista adornadas com ciclovias vermelhas, o que só aconteceu de fato a partir de 2014, três anos depois da publicação da reportagem (na foto). Se parece ingênuo acreditar que a bicicleta pode mudar tudo, ao menos é claro que essa invenção tão simples quanto brilhante funciona como totem e símbolo de um futuro em que sustentabilidade, leveza, eficiência, saúde e interdependência serão regra e não ideias isoladas.

Fome de quê

Alimentação, a Trip entende, é uma das atividades humanas mais importantes: essencial, principalmente pensando que ainda há uma parte grande do planeta que sofre com a fome, mas também vista por um ângulo de pureza e qualidade — o que é que estamos comendo? De um lado ou de outro, e nas tantas nuances entre eles, o tema esteve diversas vezes na revista e também no prêmio Trip Transformadores, no qual anualmente premiamos algum projeto ligado à comida. (Este ano o homenageado é Hans Dieter Temp, responsável por projetos de agricultura sustentável e hortas urbanas com a ONG Cidades Sem Fome, apresentado na página 67.) "Crianças não estão aprendendo sobre comidas nas escolas. E as famílias modernas não costumam gastar tempo na cozinha ou em volta da mesa, juntas — o que é uma pena", disse Jamie Oliver à Trip em 2006, em uma edição sobre comer bem.

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"O cozinheiro tem a obrigação não só de servir comida boa, mas também de ser um porta-voz da sustentabilidade e do bom aproveitamento do produto regional", escreveu na revista em 2013 o chef André Mifano. No especial mais recente sobre comida, em fevereiro deste ano, investigamos os efeitos do excesso de açúcar no corpo, os truques da indústria e as saídas para a pandemia mundial de obesidade e diabetes. E alertamos: estamos nos entupindo sem saber.

Descriminalize já

No começo dos anos 2000, o Brasil precisava com urgência ainda iniciar uma conversa sobre a política nacional de drogas e a descriminação da maconha. Foi assim que, em outubro de 2001, a Trip publicou um caderno especial de 16 páginas sobre o assunto. O espaço aberto trazia pontos de vista muito diferentes, mas a conclusão era uma: não fazia sentido tratar quem fumava maconha, cerca de 5 milhões de brasileiros na época, como criminoso. A distinção entre traficante e usuário na legislação brasileira veio em 2006 e trouxe junto conversas sobre os próximos passos. Em 2011, quando a repressão ao assunto estava em ponto crítico, Trip discutiu a regulamentação da maconha, em edição especial com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na capa. Agora inserida em um contexto global, a discussão sobre drogas evoluiu bastante ao longo das duas primeiras décadas deste século. Enquanto lugares como o Colorado e o Uruguai experimentam com a legalização da maconha, o Brasil dá um passo importante, mesmo que tímido, para o uso medicinal da substância. Graças em grande parte a Katiele Fischer, uma mãe que lutou para conseguir liberar o uso de canabidiol (CBD), substância derivada de maconha, no tratamento da doença de sua filha, Anny. Homenageada pelo Trip Transformadores no ano passado, Katiele serviu de exemplo para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) liberasse o CBD sob recomendação médica. O assunto ainda vai render.

E não ter a vergonha
Pode parecer um pouco abstrato discutir sobre felicidade, mas esta é a ideia que amarra os 12 temas prioritários que inspiram a Trip e do prêmio Trip Transformadores — corpo, alimentação, trabalho, sono, teto, saber, liberdade, biosfera, conexão, diversidade, acolhimento e desprendimento. Esses princípios, e a ideia de que seremos mais felizes se conseguirmos harmonizá-los, foram apresentados na edição #136, de agosto de 2005, e desde então a revista tem se dedicado a esmiuçá-los em reportagens, perfis, entrevistas e imagens. (Os temas são publicados sempre ao lado do índice; lá indicamos também quais conteúdos da edição estão ligados a algum deles.)

Não se trata de perseguir uma noção ingênua e irreal de um estado de plena satisfação permanente. “Nossa tese é de que talvez valha a pena colocar em discussão o que talvez seja uma espécie de Mínimo Denominador Comum da saúde física e mental e do bom senso nas relações humanas e na vida”, escreveu na época Paulo Lima, editor da Trip. “Ou, se preferir, uma simplificação da noção de felicidade.” Nosso sentimento foi perfeitamente exemplificado no retrato deste senhor (na foto, à dir.), clicado por Rui Mendes, usado pela primeira vez naquele especial e que acompanha a história da revista até hoje.

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 De quanto você precisa?

Poucos temas são realmente tão importantes (no caso, para o futuro do planeta e de toda a humanidade) quanto a desaceleração do consumo. É preciso insistir e insistir. Já em 2007, um especial sobre sustentabilidade alertava: se você não aguenta mais ouvir falar disso, o mundo não aguenta mais você. Já em 2013, Trip investigou o choque entre a onda do consumo consciente e o tsunami da ostentação que influencia fortemente um personagem frágil da sociedade, o jovem da periferia. Estampamos na capa o ícone deste movimento, MC Guimê.

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Hoje, a ideia de alguns dos principais pensadores é que o ponto de inflexão já passou. “Em tempos de crise econômica e austeridade, a maior parte das pessoas nem sequer vai ter essa escolha de consumir menos ou não”, disse o economista inglês Jonathan Dawson na reportagem mais recente da Trip sobre o assunto, em novembro de 2015. Para Dawson, o crash vai ser também uma oportunidade para voltarmos ao caminho da cooperação e da colaboração no futuro próximo. Voltar, sim: embora de ar moderno, esses movimentos de desaceleração são também um resgate do tempo em que trabalhar, produzir e consumir eram meio para uma vida com mais sentido.

 

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