Arquiteta de risco

Cristina Engel se especializou em arquitetura expedicionária e toca obras na Antártida

Meados de 1984, São Leopoldo (RS), uma conversa animada de estudantes de arquitetura da Unisinos levava os mais visionários a sonhar com um intercâmbio em Moçambique ou a criação de um novo mundo. Foram horas de conjectura até que algum engraçadinho da turma chamou todo mundo de louco e sugeriu que fossem fazer Ki-Suco e ir pra Antártida construir iglus coloridos. E não é que um dos presentes levou isso a sério?

Cristina Engel de Alvarez, paulista de nascimento e arquiteta expedicionária em tempo integral, assumiu esse conselho como plano de vida e especializou-se em erguer e reformar construções em áreas de preservação ambiental e de difícil acesso. Em 1986, terminou de escrever seu primeiro grande projeto, submeteu-o a um concurso nacional e ganhou seu grande prêmio: conhecer o continente antártico a bordo do navio brasileiro Barão de Tefé.

Tamanha foi a paixão que voltou novamente de navio, única mulher em meio a 98 marinheiros e pesquisadores, coordenando uma missão de extrema importância: construir em 1988 o refúgio Emílio Goeldi, primeira base de apoio e pesquisa da ilha Elefante, pertencente ao arquipélago das ilhas Shetland do Sul, no oceano Antártico.

Na época, não se falava muito em preocupações ambientais, mas a idéia já existia no grupo. Construíram o primeiro módulo brasileiro na Antártida todo de madeira, utilizando recursos renováveis e com soluções arquitetônicas que já buscavam minimizar impactos sonoros, geológicos e térmicos, tudo isso em meio a uma imensidão de pingüins, que olhavam atônitos aquela edificação.

Ambientalmente correto
Depois dessa aventura, muitas outras vieram, tanto na Antártida quanto nas mais paradisíacas ilhas de nosso país. Em 93, cursando mestrado na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) e trabalhando no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), foi convidada pelo Ibama a montar outra base de pesquisa, agora na recém-estabelecida Reserva Biológica do Atol das Rocas. Em sua primeira visita ao Atol, acampada com a equipe durante três dias, descobriu que a missão não seria nada fácil, pois, além das 170 mil aves que moram no local, existiam também baratas, ratos e escorpiões – e todo o material deveria ser desembarcado de bote inflável.

Segundo Cristina, o projeto deveria ser simples devido à escassez de verbas, seguindo regras da arquitetura bioclimática e de grande ecoeficiência. Construída sobre palafitas de madeira, o que impede a entrada de ratos e escorpiões, a base tem aproveitamento máximo de iluminação e ventilação natural, promovendo conforto aos quatro pesquisadores que permanecem na ilha em expedições de 20 dias em média. Uma coisa que Cristina logo percebeu é que no Atol as areias “andam”; dessa forma, seria necessário desenvolver uma técnica para que a casa pudesse ser desmontada e remontada em outro local, fato que ocorreu três anos após inaugurada, tendo sido realocada com sucesso em outra área mais segura.

 

Após esse projeto, Cristina virou professora da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), de onde surgiram inúmeros convites e convênios para construções ambientalmente corretas em parques nacionais brasileiros, desde a Amazônia até Fernando de Noronha.

Dinheiro? Sempre pouco, às vezes nada, mas Cristina não reclama. “Faço o que gosto. Posso fotografar, mergulhar, caminhar, fazer trilhas, andar a cavalo, de helicóptero, de hidroavião, de lancha, de navio...” E completa: “Considero meu trabalho uma troca justa. Não existe aquela relação clara de empregado e empregador. Somos sempre parceiros. Somos ouvidos em nossos interesses e executamos da melhor forma possível nosso trabalho, mesmo que seja ganhando pouco. Mas sei que faço coisas que pouca gente tem a possibilidade de fazer e isso me deixa feliz”.

Essa felicidade veio ainda mais à tona quando foi convidada a executar seu mais adorado projeto, no arquipélago de São Pedro e São Paulo, última fronteira brasileira, considerado por Charles Darwin um dos pontos mais inóspitos do planeta. Cristina e sua equipe tiveram de ficar quase dois anos estudando estruturas capazes de resistir a terremotos e ondas, fatos constantes nesse arquipélago a mil quilômetros de Natal, ou dois quintos do caminho pra África. Nesse “conjunto de pedras no meio do oceano” foi construída em 1998, durante a Copa do Mundo, a base de pesquisas brasileira com os melhores critérios de sustentabilidade do país.

A casa do São Pedro e São Paulo foi construída sobre palafitas e é totalmente auto-sustentável: produz sua energia elétrica por captação solar e água doce por meio de dessalinização da água do mar. Por ser tão distante da costa, todos os problemas têm de ser resolvidos lá mesmo, o que aconteceu já durante a construção da base.

Algum problema grave na montagem? Cris dá uma boa risada e responde: “Imagine estar num lugar desses e ver que estão faltando porcas para apertar os parafusos do telhado, e a loja de ferragens mais próxima está a quatro dias de navio! Ainda bem que estávamos numa equipe bacana, e surgiu a idéia de serrarmos as porcas que já tínhamos. Conseguimos dividir cada uma delas em quatro...”.

Casas ecoeficientes
Em 2001, Cristina retomou suas atividades na Antártida. Ela foi chamada para recuperar a base brasileira na região, a Estação Comandante Ferraz, desenvolver novas tecnologias para buscar eficiência energética, tratamento de resíduos e redução no consumo de água e para minimizar a geração de poluentes. Esse trabalho vem ajudando Cristina e sua equipe na elaboração de um projeto de módulos auto-sustentáveis para o gélido continente.

Hoje, Cristina Engel divide seu tempo entre viagens – a Fernando de Noronha, São Pedro e São Paulo e Antártida – e a diretoria do Centro de Artes da Ufes. Ainda toca um laboratório de arquitetura com 28 pessoas (e outras 25 ligadas a ele indiretamente), todas voltadas para o tema da construção em locais com interesse ambiental e minimização de impactos locais e globais. Seu mais novo projeto é tentar viabilizar a construção de casas populares ecoeficientes para famílias de baixa renda, conquistando mais adeptos para o conceito de sustentabilidade e buscando soluções para as apropriações indevidas de beiras de rios e morros.

Do que Cristina mais se orgulha? “De estar na universidade, servindo de agente multiplicador, formando profissionais que atuam com afinco e construindo um futuro ambientalmente correto.”

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