Meio cheio, meio vazio

O otimista dirá que estamos mais modernos e menos desiguais do que nunca. O pessimista, que a política nunca gerou tanta divisão e que o conservadorismo adquiriu força só comparável à da colônia

“Tudo que é sólido desmancha no ar.” A frase, escrita por Marx e Engels no Manifesto comunista, em 1848, era verdadeira há 168 anos, seguia verdadeira há 30, quando a Trip nasceu, e permanece verdadeira hoje. Claro, cada época tem suas inseguranças. Houve tempos e lugares em que o risco era ver sua aldeia invadida por piratas ou traficantes, com as mulheres sendo estupradas, os homens massacrados e as crianças levadas como escravas. Falando assim, nossos problemas hoje parecem bobagem. Mas não são. Alguns exemplos: o meio ambiente tornou-se um desafio dramático, empregos não mais oferecem estabilidade, nenhum lugar parece seguro, o fanatismo religioso voltou com tudo, a desigualdade social persiste. Você olha à sua volta e vê um Brasil dividido como nunca.

Naqueles meados do século 19, Marx e Engels não estavam se lamentando. Eram otimistas, antevendo a chegada, para breve, de uma sociedade mais fraterna e justa (algo que, sabemos, jamais esteve sequer perto de acontecer, muito pelo contrário, mas isso é outra história). E, diante daquele mundo sob o risco de desmoronar frente às revoltas populares, havia, igualmente, os pessimistas. Essa diferença entre opiniões é natural e – exceto por situações extremas, como no caso de sua aldeia ser invadida por traficantes – ser otimista ou pessimista é questão de índole ou de perspectiva, daquela história do copo estar meio cheio ou meio vazio.

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Ao olhar para o Brasil, o otimista dirá que o país está mais moderno e menos desigual, com mais gente estudando, com respeito crescente ao meio ambiente, que está encarando, pela primeira vez a sério, a questão racial. O pessimista lembrará que a questão política nunca gerou tanta divisão, que o conservadorismo religioso adquiriu força política só comparável à que teve na colônia, que nunca antes o racismo esteve tão à flor da pele, inclusive com o crescente assassinato de jovens negros pela polícia, que os indicadores de educação continuam baixíssimos, que o desmatamento da Amazônia segue naquele ritmo de não sei quantos campos de futebol por dia, e assim por diante. Os desafios são reais e tanto otimistas quanto pessimistas, cada um a seu modo, têm razão. Mas o nosso maior problema, hoje, não está nas opiniões divergentes de cada um de nós, mas na nossa falta de capacidade de discutir ideias sem querermos exterminar qualquer um que pense diferente. Não sabemos mais debater, só queremos bater. E é aí que eu acho que a Trip tem um papel pra lá de importante.

Sem perder o humor

Quando esta revista surgiu, há 30 anos, o Brasil da sólida ditadura de 1964 se desmanchava no ar e nossos desafios eram outros. Outros, mas nem tanto: em 1986, ao deixar para trás mais de duas décadas de regime militar, ao mesmo tempo em que enfrentávamos inflação descontrolada e desigualdade gigante, precisávamos reaprender a praticar democracia, que, muito mais do que fazer valer a vontade da maioria, é saber discutir civilizadamente e respeitar as minorias.

De lá para cá, o país inegavelmente mudou bastante, e para melhor, mas, em meio a novas incertezas, nosso aprendizado democrático não só está longe de concluído como passou a enfrentar uma nova crise. Precisamos urgentemente discutir as questões que nos afligem, sem, porém, deixar de lado a tolerância, a civilidade, o bom humor e a irreverência. E é exatamente esse trabalho que, por 30 anos, estas páginas têm feito. É o que a Trip faz de melhor e, tenho certeza, continuará a fazer. Tudo isso sem esquecer, claro, porque ninguém é de ferro, das Trip Girls. Que venham os próximos 30 anos.

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