Anderson Silva no Xingu

por Caio Ferretti
Trip #207

O lutador foi até o Alto Xingu para aprender uma luta indígena, a huka huka

Quem disse que Anderson Silva é imbatível? O campeão do UFC foi até uma aldeia indígena no Alto Xingu para aprender uma nova luta, a huka huka, e teve que rolar na terra para segurar os guerreiros camaiurá

Anderson Silva olha fixamente pela janela do pequeno avião monomotor que acaba de parar na pista de terra. Está pensativo, sorri e sem desviar o olhar por nem um segundo diz: “Cara, que emocionante isso aqui”. Do lado de fora do avião ele vê dezenas de crianças indígenas se aproximarem correndo, com cabelos e corpos pintados de vermelho, aglomerando-se ao lado da aeronave a sua espera. Há dias anuncia-se que um grande guerreiro mundialmente conhecido chegaria à aldeia, onde ninguém sabe quem é Anderson Silva. Em silêncio, ele desembarca, dirige-se ao grande grupo de crianças e, rodeado, pergunta: “E aí, quem aqui é lutador?”. Várias levantam o braço. Ali, na terra dos índios camaiurá, às margens do rio Xingu, no Mato Grosso, luta é coisa séria. E é por isso que o campeão mundial de MMA trocou o octógono pelo chão de terra batida. Foi aprender uma luta local, o huka-huka, para descobrir se pode aplicar seus golpes em combates do UFC.

“É outra arte que vou conhecer, quero saber como eles conduzem a filosofia desse esporte”, disse ele, que aproveitou a experiência para gravar um vídeo comercial para a marca de açaí Amazoo. Logo que chega, além das crianças, Anderson também é recebido por Were. O rapaz jovem e bastante forte é respeitado por todos na aldeia. Carrega amarrado na cintura um cordão que tem pendurado na parte de trás a carcaça de um pássaro xexéu, preto e amarelo, com as asas abertas. É uma espécie de cinturão do huka-huka, só usam os lutadores campeões difíceis de derrubar. “Se eu perco um duelo, meu adversário pode arrancar esse cinturão de mim, jogar no chão e pisar em cima do pássaro. É como se eu não tivesse o direito de usar aquilo”, explica Were.

“Quero saber como eles conduzem a filosofia desse esporte”

Sentado em um tronco de madeira ao lado de Anderson é Were quem explica as tradições do huka-huka ao campeão do UFC. Falando sempre com um tom baixo, quase sussurrando, ele conta que por volta dos 14 anos de idade os meninos passam por um confinamento que pode durar anos. Durante a reclusão, na oca, são preparados para a vida adulta e principalmente para lutar. “Nesse tempo raspamos a pele com a ranhadeira, feita com espinhas de peixe. Passamos nas costas, nas pernas, nos braços... Depois passamos algumas raízes em cima, aí arde muito. Temos que aguentar pela nossa tradição, significa força. Também tomamos algumas raízes que fazem a gente vomitar. Eu tive que provar muitas, umas dez diferentes.” No alto dos braços e nos calcanhares são amarrados barbantes para engrossar o bíceps e a batata da perna. De casa, só saem para lutar com outros índios mais experientes no centro da aldeia. “Depois voltamos ao confinamento pra ficar pensando só sobre o huka-huka.”

E como determinar o fim da reclusão? “Nós sabemos a hora. Quando vamos lutar no centro da aldeia vemos se a pessoa ganha dos mais velhos. Aí está provado que já tem força. Se vier e perder tem que voltar pro confinamento, continuar com a ranhadeira, ficar pensando na luta, tentando conversar com os espíritos.” Were, no caso, precisou “só de um ano e meio” para ser liberado e se tornar um campeão. Agora ele terá a oportunidade de ensinar suas técnicas a outro vencedor dos ringues. E, por que não, poderá aprender algo também, para nunca perder a honraria do pássaro xexéu na cintura. Basta seguir vencendo, principalmente durante o Kuarup, festa de homenagem aos parentes mortos, na qual o huka-huka é uma das grandes atrações.

Preparado pra apanhar

Mas, antes que qualquer combate levante a fina terra que cobre o chão da aldeia, Anderson precisa ser devidamente pintado e preparado. Dois índios estampam bolas pretas e vermelhas em todo seu tórax. “É a pintura da onça, todo lutador tem que ter”, explica um deles. Em seus joelhos são amarrados grossos panos, já que no huka-huka essa parte do corpo quase sempre está em contato com o solo. Na cintura vai uma tira de pele de onça e no pescoço, um colar de placas de caramujos (pedaços lixados do casco), outro adereço exclusivo de guerreiros. Quase pronto, Anderson assume: “Estou um pouco tenso. Tenho certeza de que vou ser jogado pra lá e pra cá”.

Tarde demais para considerar a real possibilidade. Uma roda está formada no centro da aldeia à espera do campeão do UFC. A maioria dos índios nem sequer dormiu a última noite. É tradição para eles: em madrugadas que antecedem dias de luta não se prega o olho. “Ficamos na concentração pensando na luta até amanhecer o dia. Lá pelas quatro da manhã passamos óleo de pequi no corpo pra aquecer e massagear os músculos e pra evitar que o outro consiga te agarrar”, explica Were. Uma rápida demonstração de como funciona o huka-huka é feita para Anderson. Explica-se que a luta começa com os dois ajoelhados, segurando na nuca ou nos braços um do outro. Para vencer é preciso derrubar o adversário de costas, de peito ou agarrar a parte de trás da coxa. Aparentemente simples. Preparado, Anderson? “Sim. Preparado pra apanhar!”

“Estou um pouco tenso. Tenho certeza de que vou ser jogado pra lá e pra cá”

 

 

O desafiante já está no meio da roda à espera. Os dois pegam um punhado de terra no chão e esfregam na palma das mãos. A luta começa – e não dura nem 15 segundos até o campeão de MMA estar caído de costas no solo. Foi só levantar e outro índio já estava pronto para um próximo combate. E pensar que na noite anterior Anderson havia dito que não lutaria, que seria apenas uma troca de experiências. Balela, os índios não iam perder essa oportunidade. A segunda luta também foi rápida, questão de segundos até a nova derrota do discípulo de Steven Seagal. Quando o terceiro indígena pediu a vez Anderson não se conteve: “Espera aí! Já apanhei demais! Agora vamos lutar na minha regra”. “E como é?”, pergunta um deles. “É um pouco mais violenta que a de vocês. Quando o oponente está no chão nós podemos continuar batendo. Ou podemos imobilizar também”, respondeu.

Pronto, não perdeu nenhuma das lutas seguintes – mesmo sem disparar nenhum de seus potentes chutes ou socos contra os índios. Resolveu com chaves de braço, finalizações ou simplesmente cansando o adversário até ele pedir pra parar, como aconteceu no largo combate com Were. Bufando, depois de minutos rolando na terra, o campeão do huka-huka ainda foi pedir pra que Anderson o ensinasse um movimento que havia feito durante a peleja. Calmamente a técnica foi explicada diversas vezes. “É um triângulo de mão. Uma técnica boa, eficaz. Espero que eles consigam usar no tipo de luta que fazem, que é quase semelhante ao estilo de solo do MMA”, disse o professor.

Cabeça paraquedas

Anderson, aliás, está acostumado a ensinar. Em sua casa a luta é passada de pai pra filho (são três meninos e duas meninas), assim como acontece no huka-huka. “É tradição dentro da família. Todos eles têm que treinar, têm que se formar faixa preta, saber arte marcial. Sempre que estamos juntos dou treino, tento passar a filosofia da luta. Valorizo muito isso. Aqui na aldeia, achei muito interessante a forma como eles conduzem o huka-huka, os preparativos e as tradições.” Mais um aprendizado para sua já extensa lista de artes marciais, que inclui jiu-jítsu, tae kwon do, boxe, wing chun e boxe tailandês.

Da rápida passagem pela arena dos camaiurá, Anderson saiu com duas coisas na cabeça: uma leve dor – “Numa luta alguém me jogou de cabeça no chão!” – e a sensação de ter agregado mais do que algumas técnicas – “Toda experiência em que absorvemos algo é boa. A pessoa que tem a mente aberta pra novos conhecimentos sempre consegue aprender novas coisas. Eu tenho a possibilidade de treinar com pessoas de diversos países, de várias modalidades... Tento juntar tudo e criar meu próprio estilo, onde me sinto mais confortável.” –, e finaliza com a frase que repetiu diversas vezes na aldeia: “A mente tem que ser igual a um paraquedas: sempre aberta”.

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