Alguma coisa acontece

por Teté Martinho
Trip #217

Tudo muda no corpo e na mente quando estamos na praia

Enquanto estudos ainda tentam comprovar cientificamente, as mais diversas experiências pessoais não deixam dúvida: tudo muda no corpo (e na mente) quando estamos na praia

Há alguns meses, cruzando os dados do último Censo inglês, pesquisadores do European Centre for Environment & Human Health, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, fizeram uma descoberta curiosa, ainda que não exatamente surpreendente: quanto mais perto do mar as pessoas vivem, melhor é a avaliação que fazem da própria saúde. Isso significa que as populações litorâneas sejam, de fato e sempre, mais saudáveis que as do interior? Não. Mas significa que elas se sentem muito melhor na própria pele.

Se as praias inglesas são capazes de proporcionar sensação tão nítida de bem-estar, imagine na Jamaica – ou aqui. Mas ainda resta entender o que o estudo não explica. Quais são os estímulos e mecanismos específicos que fazem da praia um ambiente particularmente eficiente para descomprimir e recarregar baterias? O que ela tem que revigora, acelera convalescenças, acalma, esquenta a alma, contenta?

Como observou o principal autor do estudo, Ben Wheeler, são surpreendentemente poucas as evidências científicas que atestem quais aspectos fisiológicos são afetados quando estamos na praia. Ao divulgar sua pesquisa, em abril de 2012, o Wheeler teve o cuidado de declarar: “O estudo sugere que há um efeito positivo na saúde, mas não pode comprovar causa e efeito”. Para ele, é preciso realizar estudos mais sofisticados para desvendar razões que expliquem o que está sugerido. Mas a conclusão já abre espaço para tentarmos descobrir como cada ambiente natural atua sobre o organismo humano. As sugestões do estudo ganharam na mídia europeia diversas interpretações. Surgiram desde explicações mais óbvias – do convite ao exercício físico prazeroso que a praia proporciona à carga de iodo do ar marinho, que estimula o intelecto e reduz a fadiga – a tentativas de aprofundamento: boiar no mar, por exemplo, faria o sangue refluir dos membros para o abdôme, aumentando a oxigenação do cérebro; os íons negativos do ar marinho equilibrariam nossa serotonina, melhorando humor e sono; e o som das ondas alteraria o padrão da atividade cerebral, levando a um relaxamento profundo e, no fim das contas, revigorante.

O neurocientista brasiliense Sidarta Ribeiro, 41 anos, não tem notícia de estudos conclusivos a respeito do tema, mas põe sua mão no fogo por essa última hipótese: “Tenho certeza de que, se colocássemos uma pessoa para dormir na praia e fizéssemos uma polissonografia [o registro detalhado da atividade elétrica cerebral], veríamos uma sincronização entre as ondas cerebrais e as ondas do mar”. Homenageado pelo Prêmio Trip Transformadores de 2007 e diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, em Natal, ele aposta que esse efeito terapêutico, que organiza a atividade cerebral e induz ao sono, é só um dos benefícios de viver com o “marzão na janela”, como ele. “Tem um custo morar na praia, levo tempo pra chegar no trabalho, mas acordar e olhar um horizonte aberto não tem preço, porque equilibra. Já sabemos que a mente é porosa. O ambiente ajuda a pensar e a sentir.”

Observar ventos e marés foi outro hábito que o cientista adquiriu, e que o ajuda a “conectar-se com o ritmo do planeta”. “É um ambiente cheio de informação. Aos poucos, você percebe que há uma ordem nas coisas naturais. E isso mexe com estruturas profundas da gente”, explica. “Evoluímos na natureza. Há 20 mil anos conhecemos o mar, a chuva, o sol. Viver em apartamentos de 30 metros quadrados é algo que começamos a fazer há relativamente pouco tempo. Por isso estressa: não estamos adaptados ainda”.

“A praia, sozinha, não faz a mágica”, diz o mestre de ioga uruguaio Pedro Kupfer, 46 anos. “Tem gente que consegue ficar estressada nos lugares mais paradisíacos, que vai em busca de tranquilidade e fica enfurecida por só encontrar trânsito e barulho. Mas se a pessoa tem um mínimo de sensibilidade, vai vivenciar os benefícios da proximidade com o mar.”

Surfista com um gosto muito particular para praias – prefere as “desertas, rochosas, frias e de paisagem cinza “ –, ele mesmo não fica mais que alguns dias longe do mar, e chega a recusar trabalho para não ter que fazê-lo. “Preciso de um horizonte para olhar e tenho uma relação muito física com o mar”, explica. “A praia ‘reseta’ a mente. Ela recarrega as baterias porque é um lugar cheio de elementos da natureza e de energias em movimento: o vento que desloca as massas de ar, marés que sobem e descem, ondas que passam e arrebentam. Tudo isso ativa nosso dínamo”. A exposição do corpo aos agentes naturais é um dos pontos para a pesquisadora carioca Lygia da Veiga Pereira, que tornam a praia uma experiência mais completa de prazer do que, por exemplo, o campo. “Na praia a gente fica pelado, praticamente. É muito raro que nosso corpo fique tão exposto e seja tão tocado. As ondas são um carinho no corpo”, diz.

“quem tem um mínimo de sensibilidade, vai se beneficiar de viver próximo ao mar”

Adepta da prancha de standup, ela gosta de se afastar da praia para sentir, só e no silêncio, a “enormidade” do mar. “Amo praia. Vivi até os 22 anos no Rio. Nos fins-de-semana descia para tomar café já de biquíni”. Morando em São Paulo, onde dirige o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da USP, às vezes embatuca diante da decisão de alugar uma casa no Litoral Norte – e enfrentar o trânsito. “Mas quando a gente se vê lá, sempre conclui que vale a pena.”

“Fico emocionada na praia. Na medida do digno, volto à infância. Além de linda, a praia é lúdica. É uma situação que mexe com todos os sentidos de uma forma deliciosa: o calor do sol, a textura da areia, o contato com a água, a beleza do mar, o movimento e o barulho das ondas, o cheiro de maresia, o gosto de sal”, reflete. “Talvez isso se traduza, de alguma forma, em estímulos positivos para nosso cérebro”.

Sócio e VP de Criação da agência Loducca, em São Paulo, o publicitário Guga Ketzer, de 37 anos, redescobriu a conexão com o mar que tinha na infância – e da qual se esqueceu ao mudar-se para São Paulo. Dez anos depois da mudança, ao passar uma temporada de férias no Havaí, Guga teve praticamente uma epifania: percebeu o quanto aquilo era vital e transformador. Faz três anos que isso aconteceu e, desde então, ele aluga a mesma casa de frente para o mar em Sunset, no litoral norte do Havaí, para passar um mês de férias com a mulher, a designer de joias Fabiana Malavazi. E assim pretende fazer todos os anos.

No mar, Guga vive uma experiência física que considera única e intransferível. “Não sinto a mesma coisa em um lago, uma represa ou debaixo de uma cachoeira. Brisa, cheiro do sal, caminhada na areia: é esse conjunto que me atrai”, conta. Mais do que a experiência física, a conexão havaiana representou uma jornada espiritual: ao reconectar-se com o mar, entendeu a sensação de não estar no comando, que lhe trouxe um novo olhar sobre a vida e a carreira. Andando descalço e vivendo com pouco, entendeu o tédio consumista. E, finalmente, religou-se ao ritmo natural da vida. “Praia pra mim é voltar ao mínimo. Meu quarto no Havaí não tem nem cortina: você dorme com a lua e acorda quando a luz chega. Você entra no ciclo do lugar, e não o contrário”, observa ele, que abomina a ideia, tão em voga, de fazer da praia uma extensão do que já se vive na cidade – cheia de serviços, trânsito de carros e prédios em frente ao mar.

“Morar na praia traz uma alienação do bem”, diz o escritor Mario Prata, que trocou São Paulo por Florianópolis há 12 anos. “Não leio notícia de Israel há muitos anos, por exemplo. Esse assunto me dá urticária. Tenho pouco tempo de vida, não posso desperdiçar com Gaza.” Na ilha, com o mar na janela da frente a Mata Atlântica na janela de trás, parou de fumar depois de 50 anos e aprendeu a respirar de novo, ajudado pelo ar puro e as caminhadas na praia. “Aqui faz um puta sol. A temperatura é sempre 2 graus abaixo do Rio e 2 graus acima de São Paulo. Em setembro, tirei a meia. Meia agora, só em maio”, ri. “Além disso, levo 35 minutos para chegar ao aeroporto, a 35 quilômetros. Se você der 5 paus para o manobrista, o cara fica feliz. E neguinho não buzina no trânsito, você não quer dar porrada nele, não fica com medo que ele te dê uma porrada. Tudo isso faz bem para a saúde”.

Mineiro de Uberaba, Prata não tem grande fetiche pelo mar, que viu pela primeira vez aos 16 anos. Mais do que o banho eventual, diz que o que faz diferença na vida é ter saído de São Paulo. Mas admite que contemplar o mar da sua varanda virou hábito diário. “Quando entrei em meu primeiro apartamento aqui, que era baratíssimo e tinha essa vista, pensei: Deus acredita em mim”.

Banho de mar: doce remédio

O banho de mar como o conhece-mos – modalidade de lazer coletiva, praticada sem restrições e quase sem roupa – ainda não tem cem anos. Mas há pelo menos dois milênios especula-se sobre o poder curativo da água marinha. No século 1 a.C., Hipócrates já a indicava no tratamento de afecções pruriginosas.

É o que lembra Leopoldino de Vasconcellos na dissertação que apresentou à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1907. À época, o banho de mar terapêutico estava em voga na Europa. Médicos franceses e alemães o indicavam para tratar escorbuto, icterícia, problemas gastrointestinais, até tuberculose.

Coube à família real portuguesa lançar a moda aqui. Dom João VI beneficiou-se da ação antibiótica da água do mar para curar uma mordida de carrapato inflamada. O rei banhava a perna (parece que nunca tomou banho de corpo inteiro) na então cristalina (e hoje aterrada) praia do Caju.

A “praiaterapia” chegaria ao século 20. “Os anêmicos, os escrofulosos, os convalescentes em geral melhoram muito com os banhos de mar”, escreve o doutor Plínio Olinto na Revista da semana, em 1915. Ele atribui o sucesso do tratamento ao “movimento das ondas” e adverte: “Não há necessidade de mergulhos, nem pulos, nem gritos, nem prolongados esforços de natação”.

Ilhas para não morrer tão cedo

O arquipélago de Okinawa, no Japão, abriga a população feminina mais longeva do mundo. Em Ikaria, ilha grega, os homens têm quatro vezes mais chances de chegar aos 90 anos do que nos Estados Unidos, além de sofrer menos de depressão e demência. Na península de Nicoya, Costa Rica, vive-se mais do que a média porque morre-se menos na meia-idade. A Sardenha, ilha italiana, tem a maior concentração de homens centenários da Terra. E em Loma Linda, Califórnia, uma comunidade de adventistas do sétimo dia vive, em média, dez anos mais que os demais americanos.

Descobertos em uma pesquisa da National Geographic Society, coordenada pelo educador e documentarista americano Dan Buettner, esses “bolsões de longevidade” não foram apelidados de Zonas Azuis à toa. De todos, só Loma Linda não fica no mar.

Curiosamente, a praia tem pouco peso entre os fatores que Buttner arrola no livro The Blue Zones: Lessons for Living Longer from the People Who’ve Lived the Longest. Se o ambiente natural estimula a atividade física, o que faz com que essas comunidades vivam mais é uma combinação de fatores que inclui dieta fresca, laços sociais e familiares sólidos, mecanismos antiestresse (sestas, meditação) e um senso de propósito, religioso ou não, afirma.

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