Admirável homem das neves

por Felipe Maia
Trip #233

Ele teve sua perna amputada aos 17 anos e, aos 34, foi o primeiro paratleta do Brasil a competir

André Cintra teve sua perna amputada aos 17 anos. Aos 34, ele foi o primeiro paratleta do Brasil a competir nos Jogos Olímpicos de Inverno

Mais que fazer o próprio caminho, André Cintra faz a própria perna. Depois de ser recusado por dois instrutores de kitesurf, ele adaptou uma prótese para praticar o esporte por conta própria. Cair na água era apenas mais um passo para ele que, aos 17 anos, teve a perna amputada acima do joelho. “Dois meses depois do meu acidente eu já estava fazendo rafting no Nepal”, conta.

De prancha em prancha ele chegou ao snowboard. Além de ser o primeiro paratleta brasileiro da neve, alcançando o 28º lugar nos Jogos Olímpicos de Sochi, ele também é um dos poucos a ostentar outro feito: comprar um prótese pelo telefone.

Na entrevista abaixo, André fala à Trip sobre seu acidente, vida com a prótese, rotina de atleta e tesão no esporte.

Trip: Conta como foi seu acidente. André Cintra: Com 17 eu já tinha moto. Eu estava dirigindo, um carro me fechou e eu fui deslizando na calçada. Tinha uma placa de propaganda do hospital e eu bati nela. Eu fui pra um lado e minha perna foi pro outro. Levantei para pegar a moto e eu estava sem perna. Olhei minha perna jorrando sangue a dois metros dali. Um cara pegou minha perna, me entregou, eu segurei ela, eles fizeram um torniquete, me jogaram numa picápe e me levaram pro hospital. Lembro que eu fiquei olhando pra ela, fechava o olho e falava “é um pesadelo, é um pesadelo, vai passar”, eu abria o olho e ela estava ali. Isso foi em Santos. Eu morava lá.

Seus pais ficaram loucos… Meu pai quase enlouqueceu. Meus pais ficaram muito mal, mas meu pai especificamente ficou muito mal. Minha mãe ficou meio que cuidando e meu pai ficou muito mal. É difícil, né. Eu sou o filho mais velho, tenho mais dois irmãos. 

Quanto tempo de recuperação? Dois meses depois do acidente eu estava fazendo rafting no Nepal. Meus pais me incentivaram a fazer essa viagem porque era uma forma de recuperação. Já tinha um projeto que estava sendo formado. Um brasileiro, que mora na Ásia há muitos anos, estava levando dez amputados e dois cadeirantes para fazer rafting no Nepal. Era a primeira expedição adaptada do Brasil. 

Tudo novo, né? Completamente. Eu conheci o organizador. Ele usava uma prótese e deixava ela aparente. Minha tia viu ele na rua e disse “meu sobrinho sofreu um acidente, você pode dar umas dicas de prótese”. Ele foi em casa, me deu umas dicas e falou “estamos montando uma viagem para o Nepal” e eu, aventureiro desde sempre, disse “quero ir!” Meu pai disse “vai que é uma oportunidade única”. E foi mesmo. Meu pai foi muito visionário porque me ajudou muito essa viagem. 

E você praticava esporte desde garoto… Andava de skate, andava de bike, surfava, pegava caiaque. Em São Paulo primeiro e com 13 anos fui pra Santos. Depois do acidente eu fiz tow-in também. Tem uma parte de Santos onde formam ondas de 2m, mas não é um lugar perigoso. 

Bem, e como foi sua viagem? Foi em abril de 97. Eu fui com prótese e voltei sem prótese. Quando a perna é amputada ela fica muito inchada, então depois ela volta ao normal e você tem que mudar o encaixe. Voltei sem prótese, cheguei aqui e tive de fazer outra. A viagem foi espetacular. Foi uma experiência muito importante para minha vida porque foi lá que eu descobri que a mente manda e o corpo obedece. Lá eu entendi que a limitação não está no corpo, ela está na mente. 

 

"Eu achei que minha vida tinha acabado. Tinha 17 anos e fiquei desesperado. A viagem do Nepal me mostrou que a vida continua"

 

Você passou a encarar o esporte de outra maneira? Minha viagem me ajudou a continuar fazendo coisas. Eu acordei sem a perna depois do acidente. Eu perdi minha perna abaixo do joelho e acordei no dia seguinte com a perna amputada acima do joelho. Isso é um problema enorme. Ter uma articulação a mais ou uma a menos faz uma diferença enorme. Principalmente joelho, que é bem importante. Eu achei que minha vida tinha acabado. Tinha 17 anos e fiquei desesperado. A viagem do Nepal me mostrou que a vida continua. Por dois motivos: eu vi outros caras usando prótese, fazendo esporte e levando uma vida normal; e porque eu fiz os níveis 4, 5 e 6 do rafting, os últimos níveis. O bote caía, dobrava e depois espirrava todo mundo pra fora. Era perigoso de verdade, era coisa grande. Eles tinha de para antes para medir as cachoeiras, onde íamos descer, quantas remadas íamos dar, tudo muito técnico. Eu não tinha noção de nada. Fui o último a chegar na viagem. O mais novo, o mais recente amputado e o último a chegar. Fui. Essa viagem foi muito legal por isso e pela questão cultura. Voltei muito tocado com a cultura oriental. A gente ficou quase um mês lá. Foi um rafting de seis dias. A gente parava nas margens. 

Você volta ao Brasil já ligado no esporte? O esporte sempre foi presente na minha vida, mas de forma paralela. Sempre fui esportista, nunca fui atleta. Recentemente virei atleta. Voltei para o Brasil, comecei a trabalhar. Tenho minha vida profissional e faço esporte por lazer. Comecei a fazer esqui aquático com uma perna só, o slalom. No slalom normal você começa com duas pernas e depois fica com as duas pernas num esqui só. Eu já saía com um esqui só, o que é considerado bem mais difícil.

Você sempre pesquisou as próteses? Eu não tinha prótese. Depois de um tempo comecei a fazer minhas próteses de água. Eu conheci um torneiro mecânico e pedia pra ele “quero mais ou menos assim”. Ele fazia umas peças, eu testava e assim fui fazendo minhas próprias pernas. Depois eu desenvolvi minhas pernas pra fazer kitesurf. 

A essa altura você tinha 20 anos. Sim. Logo depois meu pai faleceu. Eu tinha 21. Isso é mais difícil que perder uma perna. Aí eu assumo uma família: meu irmão tinha 14 anos, minha irmã tinha 11 e minha mãe era dona de casa. Com 21 eu tinha que botar dinheiro em casa. Quando eu tinha 26 anos minha mãe morreu, em 2005. Mais um baque. 

A essa altura você já era chefe de família. Sim. Tinha uma família para criar. Eu morava sozinho, mas meu irmãos vieram morar comigo. O esporte sempre foi uma válvula de escape. Eu recebia muita pressão e eu precisava descarregar a pressão de alguma forma. 

A essa época você praticava o quê? Praticava wakeboard, esqui aquático e o kitesurf. 

Qual era sua rotina? Sempre ia pra praia no final de semana. Trabalhava em SP. Ou ia pra praia na casa da minha mãe ou ia pra Ilha Bela, Maresias. 

Tem algum problema da prótese em contato com a água do mar? Tem. As empresas não constroem próteses para a água. Sempre eu que fiz essas próteses. Eu fazia uma e perdia. Já perdi umas três, quatro próteses velejando. Caíram, foram pro mar. Eu via muita coisa em matéria de próteses. Via o que funcionava, simplificava ao máximo para ir pro mar. Se você vir minhas próteses pra cair na água, todas eu que fiz.

Então você tinha ideias e adaptava suas próteses? Sim. Pegava peça de uma coisa, fazia uma alteração no torneiro mecânico. Falava pra ele “isso está ruim, precisa de uma peça aqui, faz uma trava aqui”. Quando eu comecei a fazer kitesurf teve um fato curioso. Eu vi o kitesurf há uns 12 anos, em 2004. Achei um esporte animal. Procurei uma escola e o professor falou “pô, legal sua força de vontade, mas acho que não vai dar pra você fazer porque é um esporte perigoso”. Ele não quis me ensinar e eu ia fazer de qualquer jeito. Fui em outra escola e o cara falou “bacana, cara, mas você não vai conseguir porque você não tem o tornozelo, você vai conseguir ir pra um lado e não vai conseguir ir pro outro lado”. Era fazer a orça. Bem, eu comprei o equipamento e lá na Ilhabela eu falei pros caras que faziam resgate “me leva lá no meio e depois vocês me pegam”. Eu ficava lá tomando tombo. Tentei muitas vezes. Aí falei pra um amigo meu e ele disse “vamos colocar uma trava aí atrás”. Aí deu certo. 

E isso é parecido com o que você usa no snowboard? Eu já fazia kite havia bastante tempo e eu queria fazer snow. Uns amigos estava indo para o Chile pra praticar, em 2010. Fui com eles e não conseguia nem ficar em pé na prancha porque eu não tinha uma prótese específica. Voltei frustrado pro Brasil e fui de novo. Fui pro Canadá com outros amigos. Melhorei, mas só conseguia descer de lado. Voltei muito frustrado pro Brasil e pensei em fazer uma prótese pro snowboard como eu tinha feito pro kite, mas não tinha tempo. Fui pros EUA fazer outras coisas e minha namorada à época me passou uma mensagem “tem um cara com prótese para snowboard”. Aí eu consegui fazer algo incrível: comprar uma prótese por telefone. Liguei lá e a mulher falou “você não tem as medidas, não tem o tamanho” e eu quis mesmo assim. Ela mandou e a prótese chegou duas horas antes de eu ir para o aeroporto. E isso mudou minha vida. Cheguei no Brasil e falei “agora vou fazer snowboard de verdade!” Comprei passagens para a Áustria e fui pra lá sozinho, em Insbruque. Comecei a fazer snowboard e foi do caralho. Volto para o Brasil e passo a ser um turista do snowboard. Passo a praticar o esporte duas vezes por ano. 

E qual é a reação das pessoas a sua prótese? Na montanha todo mundo fica impressionado. Um dia um professor queria me mostrar para os alunos. “Eles estão com preguiça de fazer o exercício e você é um exemplo!” Tem cara que vem e abraça, aperta a mão. 

 

"Na montanha todo mundo fica impressionado. Um dia um professor queria me mostrar para os alunos. 'Eles estão com preguiça de fazer o exercício e você é um exemplo!'"

 

E como você virou atleta? Eu estava numa ortopedia e estava conversando com um menino. “Dá pra fazer tudo, dá pra velejar, dá pra correr, dá pra esquiar”. E aí aconteceu um negócio que mostra que o universo conspira a meu favor - embora tenha acontecido muita coisa trágica na minha vida, também aconteceu muita coisa boa. Um cara passou atrás de mim e perguntou “você esquia?”, eu respondi que sim e ele disse “tem um cara da seleção brasileira que está procurando um esquiador brasileiro com prótese, liga pra ele”. E não era pra eu estar nesse lugar nesse dia. Bem, liguei pra esse cara. Liguei uma vez, liguei duas e nada. Eu nunca tinha competido. E até hoje não sei de nenhum outro brasileiro que faça snowboard com prótese. Mas, enfim, esse cara tinha outras prioridades e tinha outros caras atrás da vaga. Fiquei uns dois meses esperando e enchi o saco. Bem, fui pro Chile esquiar com minha família. Caí no último dia e quebrei o prazo na quarta-feira. Cheguei no Brasil na sexta, fui pro hospital e coloquei uma tipóia. Aí esse cara me mandou uma mensagem no sábado: “André, olha seu email”. E no email estava o convite para o campeonato brasileiro de snowboard, no Chile, na quarta-feira seguinte. Cheguei em casa, falei pros meus irmãos e disse que tinha essa chance de representar o Brasil. A essa altura eu só sabia que eles estavam procurando um atleta. Sabia que isso podia me trazer um futuro legal dentro do snowboard. Meus irmãos falaram “vai, mas não cai”. Embarquei pro Chile na terça, cheguei em Santiago, subi pro Vale Nevado, aluguei uma tipóia, aluguei uma prancha e fiz a prova. Era uma prova de giant slalom, aquela das bandeirinhas. Fiz a prova e eles gostaram do que viram. Eles não sabiam que eu estava machucado. Duas semanas depois eles me chamaram e pediram para eu ir na CBDN. Chego lá, tem doze pessoas do CPO e da CBDN. Era uma reunião de negócios. Um responsável pelo orçamento, outro pela grana, etc. Eles falaram “queremos que você represente o Brasil”. Eles deixaram muito claro os objetivos: classificar para a Rússia. “O Brasil nunca conseguiu se classificar e essa é sua missão”. Eles contrataram uma escola que treina atletas de parasnowboard, a Adaptive Action Sports, e um técnico americano, o Christopher Koep. Às vezes eu quero matar ele! [risos] 

Por quê? Porque é muito complicada a relação de convivência, com uma pessoa com quem você não está acostumado, 24h por dia. Isso acontece com qualquer pessoa. Foram duas temporadas assim. Ele é super legal, mas você fica sem sua individualidade. E é porrada todo dia. “Tem que melhorar!” O cara briga com você é o cara com quem você janta, toma café, etc. 

Como foi essa virada de esportista para atleta? Eu não entendi na hora. Eu só entendi isso quando fui para as provas. Fui para o Colorado, nos EUA, e aí começaram as etapas do mundial. Os outros atletas não trabalham. O trabalho deles é ser snowboarder. Eu chegava na montanha e tinha de trabalhar a noite. Ligava para o Brasil, falava pelo Skype. Sou presidente da minha empresa. 

Como foram as etapas do mundial? Entrei no mundial. A CBDN fez minha inscrição e eu comecei a competir nas etapas do mundial. Meu nome entrou no ranking, comecei a pontuar, comecei a subir. Tem uma diferença: AK, acima do joelho, e BK, abaixo do joelho. Competimos todos juntos, então minha colocação nunca é das melhores. Também porque eu sou brasileiro. O que eu tenho de snowboard de vida, esses caras (os russos, os americanos, os canadenses) tem de temporada. Eles treinam seis dias por semana. Os caras que são profissionais treinai de 8 a 9 meses por ano. 

Você é BK, certo? Por isso seu tempo nas Olimpíadas é tão maior que o tempo do primeiro lugar? Sim. Entre os BKs que competiram eu sou o terceiro. Isso é importante para que as pessoas entendam, senão parece que eu sou mais um brasileiro nas neves. 

Mas isso vai mudar? Nesse caso você tem mais chances de subir ao pódio. Sim, vai mudar. Mas o tempo de neve que eu tenho é muito pequeno. Se um moleque treinar quatro temporadas mesmo para isso ele vai ficar muito melhor que eu. Eu não vou morar na neve, tenho minha vida por aqui. Por enquanto eu não saio. 

De onde vem o apoio para você competir? A CBDN (Confederação Brasileira de Desportos na Neve) e o CPO (Comite Paraolímpico Brasileiro) arcam com tudo: técnico, viagem, alimentação, equipamento. É tudo deles. A prótese também é deles. Eles compraram uma prótese para mim de snowboard. Hoje até uso uma minha, mas uso a deles também. Quebra muito. Quebra parafuso, pistão, tudo. O equipamento custa de cinco a dez mil dólares. 

O bordercross é comparável ao motocross? Sim. Tem as rampas, as lombadas e as curvas de um lado e do outro. 

 

"Eu não consigo viver sem esporte. O esporte é parte intrínseca da minha vida. De preferência algum esporte que traga algum tipo de excitação"

 

Você já tentou ou pensa em tentar outras modalidades do seu esporte? Já fiz half pipe, mas nunca tentei praticar a modalidade mesmo. Nos próximos Jogos Olímpicos talvez tenha o giant slalom. Se a CBDN quiser, talvez eu faça duas modalidades.

Qual seu objetivo a longo prazo? Eu quero estar entre os primeiros colocados da modalidade AK. Estar entre o Top 10 do AK. Digamos que eu estou entre os Top 10 BK. Estou muito longe do primeiro, pouco longe do segundo e próximo do terceiro, quarto e quinto. Na Olimpíada eu ganharia o bronze. Isso, para um brasileiro, seria um milagre. Lógico. Em outras categorias é mais difícil, a minha modalidade é nova.

Você sente tesão no esporte? Sinto muito. Às vezes é tão excitante que é paralisante. Eu sofri isso na primeira descida na Rússia. O peso é tão grande que você dá uma travada. Eu não conhecia essa pista, não tinha treinado nenhuma vez lá. Pra quem não tem joelho essa pista é muito mais difícil porque os obstáculos são muito próximos. Tinha pouca neve na Rússia e eles mudaram a locação da pista. Colocaram ela numa região de inclinação maior, então tinha umas curvas mais em cotovelo, a pista era mais apertada. Foi bem diferente. Muita gente caiu também. 

O que seria da sua vida se você não fizesse esporte? Eu não teria vida. Eu não consigo viver sem esporte. O esporte é parte intrínseca da minha vida. De preferência algum esporte que traga algum tipo de excitação. Que traga algo de desafio. O esporte que excita, em que você vai conseguir coisas. 

Você se vê como exemplo para as pessoas que querem praticar snowboard? Eu não sou exemplo pra ninguém. Cada um tem seu caminho. A gente se inspira em muitas trajetórias. Tem muita gente mandando mensagem agora, agradecendo. Uma menina mandou uma mensagem dizendo “obrigado pela alegria que você trouxe pra nossa casa, meu irmão ficou muito feliz em te ver, meu irmão chorou”. Eu perguntei quem era o irmão dela, e ela disse “meu irmão é tetraplégico e ele ficou muito emocionado quando te viu e a melhor coisa que você pode fazer por ele é continuar sendo quem você é”. A outra foi a mãe de uma menina, ela escreveu agradecendo pela emoção que eu tinha causado na família dela, principalmente na filha dela. “A minha filha tem cinco anos e quando ela te viu na TV ela perguntou se você era um super-herói”. Na Olimpíada a gente falou da importância de ter atleta inspirando novas gerações. 

Você não tem medo de se machucar? O medo existe. Um amigo nosso morreu. Um australiano. Ele foi na minha frente, três atletas na minha frente. É um esporte de altíssimo risco. Você está em alta velocidade e a pista é de gelo, não de neve. Você está numa pista de alta velocidade e você tem uma prótese. É difícil frear, é difícil saltar, a gente não consegue movimentar a prancha no ar. Vi muita gente se machucar. Já quebrei prótese várias vezes, vi cara quebrar perna, braço. Vi esse cara morrer. A vida é um risco.

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