O axé que conecta

por Juliana Gonçalves

O terreiro é o quilombo contemporâneo e o candomblé, para seus praticantes, é a força que reconstrói as famílias dissipadas pela escravidão

Na época da escravidão, o litoral do Benin abrigava um grande porto de onde partiam os homens e mulheres africanos que seriam escravizados pela civilização europeia. Antes de serem embarcados no navio negreiro para a viagem transatlântica que demoraria de seis meses a um ano, os africanos encaravam a Árvore do Esquecimento. Conta-se que os homens eram obrigados a dar nove voltas em torno dela e as mulheres, sete — assim, apagariam as lembranças da sua origem, língua, cultura e valores. Cada volta representava a morte das memórias que as pessoas traziam dentro de si.

LEIA TAMBÉM: Aos 63 anos, Mãe Carmen de Oxum comanda um terreiro de candomblé que atrai artistas e políticos 

É retomando essa vergonhosa passagem histórica que Pai Sidnei de Xangô explica o que o candomblé significa para ele. “Em oposição à Árvore do Esquecimento, o candomblé é a árvore da lembrança. Durante nossos ritos, dançamos de maneira circular no sentido anti-horário, voltando às nossas origens, retomando nossas memórias”, conta o sacerdote da Comunidade da Compreensão e da Restauração Ilê Àse Sàngó, localizada em Suzano, interior de São Paulo.

No candomblé, os responsáveis pelo culto aos orixás são chamados de pai e mãe. Por ser um espaço onde as pessoas vão buscar abrigo, compreensão e restauração, o candomblé cria laço identitário, familiar e comunitário. “O candomblé é um quilombo que abriga e acolhe as dores das pessoas e vai gerando laços de família”, define Sidnei, que também é Professor Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo.

As especificidades das línguas utilizadas no culto aos orixás compõem elementos que fortalecem esse espírito de comunidade dentro do candomblé. A língua é um dos elementos que distinguem as diferentes nações entre si, há diferenças ainda no conjunto de divindades veneradas, nos ritos, entre outras características. No candomblé ketu e efon, se fala, se reza, se canta em iorubá; no candomblé angola, a língua é o bantu; e, no jeje, as saudações às divindades, por eles chamadas de vodun, são feitas em ewe fon.

Foto da identidade

Pesquisador, fotógrafo e candomblecista, Roger Cipó acredita que o sentido de comunidade é algo inerente à religiosidade africana. “O candomblé reconstrói as famílias que a escravidão dissipou”, define ao explicar que, ao se iniciar na religião, os praticantes herdam uma família de axé composta por pai, mãe, irmãos e comunidade.

“Durante nossos ritos, dançamos de maneira circular no sentido anti-horário, voltando para as nossas origens, retomando nossas memórias”

Em julho deste ano, Cipó inaugurou a exposição AFÉTO, com curadoria de Marco Antonio Teobaldo, na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro. Em sua primeira mostra individual [reunimos algumas imagens na galeria no final deste texto], dentro da programação do Festival Internacional de Fotografia - FotoRIO, o fotógrafo registrou as relações de afeto constituídas dentro dos terreiros de candomblé, a partir de sua experiência como iniciado na religião. “AFÉTO é um reflexo do que eu tenho experienciado e observado nos terreiros de candomblé de mais de 30 cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro”, conta Cipó, que tem como sua casa o Asè Iya G'unté, onde é Alagbé — homem responsável por conduzir a orquestra de atabaques que invoca os orixás.

Busca por ancestralidade

Quando visitou o terreiro de candomblé Ilê Asé Osun Obá Oshe Boiadeiro Sete Montanhas e Bara Toco Preto, foi o afeto encontrado lá que levou Priscila Novaes a se iniciar na religião. “Lá, recuperei minha ancestralidade, porque o candomblé é um grande espaço de convivência, uma comunidade onde eu consigo me perceber como parte de um grupo”, observa a produtora cultural, integrante do coletivo Mulheres de Ori e autora do livro Ajeum, o sabor das deusas.

Ao nascer no candomblé você renasce e passa a ter inclusive outro nome. “Hoje sou Dofona de Oxum, sou Iaô iniciada numa casa de nação efon”, se apresenta Priscila com palavras pouco comuns para os não iniciados nos cultos afro. Dofona é a pessoa que foi iniciada primeiro ou sozinha no dia de seu nascimento. Iaô é nome que se leva assim que se inicia e nasce para os orixás. Iyawo é um termo iorubá e quer dizer esposa, uma referência a aliança eterna que o iniciado estabelece com a divindade protetora.

Estudante de pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Raíssa Teixeira é para sua comunidade Kota N'tangu Maza. Sua casa, o Kupapa Unsaba - Bate Folha Rio), há mais de 70 anos preserva a cultura bantu por meio dos seus cultos de nação angola. “Eu não me vejo fora do candomblé, sabe? É muito fácil e agradável viver dentro da nzo (terreiro)... Temos na cabeça que somos irmãos e vivemos em prol de uma comunidade’’, conta a jovem que é a terceira geração de sua família dentro de um terreiro.

“O candomblé é um grande espaço de convivência, uma comunidade onde eu consigo me perceber como parte de um grupo”

Raíssa explica que, embora existam inúmeras diferenças entre as nações, os costumes herdados das comunidades africanas e mantidos pelos candomblés resistem. Assim, os diferentes povos de terreiros se relacionam e dialogam por um fortalecimento mútuo e cooperação, seja para as cerimônias religiosas ou para as lutas por direitos. “Percebo isso na articulação do Coletivo Malungos - Juventude de Terreiro. Reunimos jovens de todas as nações do candomblé, umbanda e ifá para discutirmos pautas inerentes à preservação e valorização dessas tradições, criando um espaço de educação e construção de identidade coletiva a partir dos costumes civilizatórios de matriz africana”, ressalta.

A natureza do divino

Do ponto de vista pessoal, a empatia e identificação com outra pessoa “do santo” é imediata. “Quem é do candomblé, passa por uma planta e a olha de um modo respeitoso, vê a lua e reverencia sua força. Somente nós encontramos uma pessoa toda de branco na sexta-feira, sorrimos e tomamos a bênção”, detalha Raíssa.

Filha de Oxum, a divindade ligada às águas doces — que na tradição bantu corresponde a Ndandalunda —, Priscila, assim como Raíssa, também considera que a forma como os candomblecistas dialogam com a natureza é única. “Aqui nos relacionamos de forma diferente com a natureza, nada é desperdiçado”, reitera a produtora cultural.

A conexão com a natureza é a mesma conexão com o divino. A palavra religião vem do latim religare, no sentido de reconexão. Pai Sidnei explica que, diferentemente das manifestações religiosas cristãs, a filosofia do candomblé não prega religação. “Nós nunca nos desconectamos. No candomblé, não há rupturas temporais em presente, passado, futuro... Tudo é continuidade”, explica. “Estamos conectados com o sagrado, a nossa ancestralidade, com os deuses que nos habitam, com a filosofia ubuntu: ‘eu sou porque somos’. Somos uma grande comunidade”, finaliza.

fechar