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Califórnia brasileira

O campeão mundial de skate Pedro Barros tem um bowl no quintal de casa, em Florianópolis. Não é o único: o bairro do Rio Tavares tem mais de 25 pistas particulares

Depois que o calor de janeiro diminui, a movimentação começa no quintal da casa do skatista Pedro Barros, em Rio Tavares, Florianópolis. Alguns vizinhos ensaiam manobras no bowl construído ali em 2008, enquanto os skatistas Vi Kakinho e Murilo Peres improvisam uma banda no pequeno estúdio ao lado. Mais cedo, alguns deles já tinham se encontrado no mar. É um fim de tarde “normal” no bairro, que fica entre as praias da Joaquina e do Campeche. “A galera aqui vive em uma espécie de comunidade, respira aquela parada um pouco antiga do skate”, conta Pedro.

Nos últimos anos, essa molecada que cresceu entre o mar e o concreto vem mudando o centro de gravidade da cena do skate brasileiro. No ranking 2015 da Confederação Brasileira de Skate, os três primeiros lugares da categoria bowl profissional foram ocupados por moradores do bairro: Felipe Foguinho, Pedro Barros e Vi Kakinho. Em quarto ficou Caique Silva, que também é de Florianópolis. O carioca Nilo Peçanha, quinto lugar, e o paulista Murilo Peres (que ficou em 13º, mas foi o segundo em 2014) estão sempre por ali.

A pista particular da família Barros não é a única. Segundo as estimativas do pai de Pedro, André Barros, são mais de 25 pistas particulares no Rio Tavares. “Vira e mexe a gente olha um quintal e fala ‘caralho, tem uma ali, nem sabia’”, conta. O crescimento no número é recda construtora RTente – o próprio André é um acelerador do processo, como parte de uma equipe de construção de bowls. Mas a história das pistas de skate do Rio Tavares começa em meados da década de 90.

Um bowl vermelho
A primeira estrutura para skate do bairro foi uma mini-ramp modesta, construída por André no quintal de casa – antes de ter a casa. “Isso acontecia em cada casa que a gente morava...”, ri Pedro. Com quase 2 anos de idade, foi ali que o pentacampeão mundial começou a andar. Era 1996 e por conta de um campeonato no half-pipe da Praia Mole a turma que pegava onda junto se viu unida também em torno do skate. Entre eles estava Léo Kakinho, skatista profissional na década de 80, em Guaratinguetá, o pai do Vi.

No ano seguinte, o Rio Tavares ganhava seu primeiro bowl. Rafael Bandarra, que dividia uma casa com Léo, comprou um terreno perto da restinga e das dunas que separam o bairro do mar. “A ideia era ter um bowlzinho pra quando não estivesse rolando surf”, conta Bandarra. “A gente não tinha a menor ideia das proporções, de construção, nada; no final, o bowl ficou muito maior do que a gente imaginava e custou três vezes o preço da casa!”

Ninguém dava muita bola para o bowl naquela época, o auge do street. “Como quase não existiam mais bowls no Brasil, começou uma migração de gente pra cá, de São Paulo, Curitiba”, conta Bandarra. “A verdade é que o bowl tinha ficado muito bom para os padrões da época, e começou uma cultura forte do estilo, com o lifestyle do bairro.”

Em 2002, por conta dessa movimentação, Rafael transformou sua casa na pousada Hi Adventure, até hoje um dos lugares mais tradicionais para se andar de skate na região. O bowl pintado de vermelho continua ativo. “É um pico único. O Duane Peters [skatista e músico americano] ficou quase dois meses na pousada e disse que a última vez que ele viu esse cotidiano foi na sua época de moleque na Califa. Hoje na gringa não existe mais isso.”

No pé do morro
Enquanto uma cultura do bowl se desenvolvia em torno da Hi Adventure, no começo da década de 2000 os Barros foram passar uma temporada na Austrália. De volta ao Rio Tavares em 2006, André comprou um terreno mais afastado do mar, em uma estrada de chão que leva aos cumes do centro da ilha, a subida dos Morros do Badejo e do Sertão. Ali (antes da casa, claro), construiu um half-pipe para os treinos do filho, então com 11 anos. Anos depois, no mesmo endereço cercado de vegetação exuberante e com o mar visível ao longe, no horizonte, nasceu no fim de 2008 o Rio Tavares Mother Fuckers Bowl (ou RTMF Bowl).

“Minha casa ficou aberta por muito tempo; tem uma placa na entrada com horários [liberados para o público andar] até hoje.”
Pedro Barros, skatista e dono de um bowl em casa, no Rio Tavares

“O primeiro bowl era muito roots, muito precário”, conta André, que junto com Léo Kakinho e o irmão dele, Guilherme, começou depois um empresa especializada na construção desse tipo de pista — e hoje são pareceiros da Spot Skatepark. O metro quadrado de um bowl custa de R$ 600 a R$ 1.000, e a construção leva entre três e seis meses, a depender do tamanho (o RTMF Bowl, que é grande, tem quase 400 m²). A conquista mais recente dos empresários foi a construção de uma nova pista, desta vez pública, na Costeira do Pirajubaé, bairro no sul da ilha, inaugurada no fim do ano passado. “Mudar o cenário público era uma coisa que a gente almejava muito”, afirma ele. “Minha casa ficou aberta por muito tempo; tem uma placa na entrada com horários [liberados para o público andar] até hoje.”

As casas de André e Pedro (no mesmo terreno e próximas ao bowl) seguem como parte importante da comunidade. Além da movimentação diária na pista, eles são como mentores para vários jovens da região. Pouco antes da conversa com a Trip, passou por ali a jovem Yndiara Asp, 18 anos. Yndi começou a andar nas pistas do Rio Tavares há três anos e já é o segundo lugar no ranking brasileiro feminino de bowl. De lá, ela partiu para a Califórnia, onde deve gravar um programa do canal Off. “A cultura do skate em Floripa é muito intensa; tem o Pedro, o Vi, várias referências”, diz André. E completa: “Eu não conheço outro lugar no mundo onde um avô, um filho e um neto frequentam os mesmos picos, praticam os mesmos esportes – e isso é bom demais”.

Padrão internacional
Em 2010, o menino Pedro Barros, criado entre projetos malucos do pai, conquista seu primeiro campeonato mundial e projeta o nome do Rio Tavares para o mundo. Naquele mesmo ano, o RTMF Bowl recebe a edição inaugural do Red Bull Skate Generation, uma competição que reúne skatistas de várias gerações. Eram quase 2 mil pessoas, em um fim de semana, no quintal dos Barros. O evento se repetiu por lá também de 2012 a 2014. Grant Taylor, Christian Hosoi e Omar Hassan passaram por ali. “Nos primeiros anos, foi muita emoção. Quando você constrói uma pista de skate, você sonha com um cara desses andar nela”, lembra André.

Em 2015, o campeonato precisava de uma pista ainda maior. Nascia então o skate park do bairro, desenhado como o RTMF Bowl por Léo Kakinho, dentro do empreendimento imobiliário de luxo Kasting Arruda, criado em um terreno do surfista Guga Arruda com a construtora Ceranium. “Foram dois meses pra convencer os caras da construtora de que era uma boa ideia”, conta André. “O negócio foi um sucesso. Antes de lançar o condomínio, a construtora já vendeu quase todas as casas.”

Esse é o tipo de exemplo que dá uma dimensão do impacto da cultura do skate para o local. “É um condomínio de luxo que, em vez de megapiscina, tem uma pista de skate de padrão internacional”, comenta Pedro Barros. Para o jovem campeão, uma pista de skate tem também dimensão estética que simboliza os valores da cultura que a circundam. “A pista é uma parede de concreto feita à mão por um artesão que fica horas passando a espátula até fazer aquela curvatura perfeita”, diz. “É uma das obras de artes mais lindas.”

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Créditos

Imagem principal: Helge Tscharn

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