A batida perfeita

por Mariana Caldas
Trip #195

Rudolf Piper foi idealizador, sócio ou decorador de casas se tornaram templos do hedonismo

 

Era 1991 e o alemão Rudolf Piper havia sido contratado por empresários japoneses para trabalhar no projeto de uma boate em Patpong, a rua da putaria de Bangcoc. O Mars Club estreou com louvor, ocupou uma página inteira do jornal The New York Times e foi cenário de um escândalo abafado na imprensa local, pois uma das filhas do rei Bhumibol Adulyadej fugiu do castelo para badalar no clube. Com a sensação de dever cumprido, Rudolf alugou três esposas locais e passou a frequentar os restaurantes “no hands”, onde lindas tailandesas nuas lhe davam comida na boca. Mas ele sentia que ainda faltava algo: ópio. Como a droga andava sumida do mercado, ele começou uma viagem pelo interior da Tailândia em direção às plantações de papoula. Ao chegar a uma aldeia de palhoças, ele procurou um puteiro. Não se surpreendeu ao ver que a clientela era toda de seu país. “Alemão tem fama de ser um povo frio, mas eu sei que somos o povo mais fodedor do mundo. Tanto os homens quanto as mulheres.” No fim, Rudolf encontrou um velhinho simpático que lhe cedeu um quarto e um pouco do seu ópio.

A viagem tailandesa resume a missão de Piper: oferecer aos outros e a si mesmo o prazer em todas as suas variáveis. De Berlim a Nova York, passando por Rio, São Paulo e Bangcoc, o alemão de 66 anos foi idealizador, sócio e decorador de boa parte das casas noturnas que fizeram a cabeça de gerações de festeiros espalhados pelo planeta. Foi diretor de promoções do Studio 54, em Nova York, em seus tempos áureos. No início dos anos 80, idealizou e fundou a Danceteria, que deu origem à palavra no mundo inteiro. Foi diretor da Palladium, maior boate já construída, com capacidade para 10 mil pessoas. No Brasil, está por trás de alguns dos mais bem-sucedidos locais da cena noturna paulistana, como Buddha Bar, Mokai e Pink Elephant.

 

 

Rudolf ainda estava na faculdade de arquitetura, em Berlim, quando abriu sua primeira boate. Era o fim dos anos 60 e os clubes alternativos começavam a surgir quando transformou um ex-bunker de guerra no Park Nightclub, paraíso da luxúria aberto 24 horas por dia. A iniciativa veio de sua insatisfação com a noite na capital alemã, que para ele era apenas uma cidade esquisita com gente esquisita espalhada por botecos sem graça.

O pai de Rudolf era diplomata e, por isso, ele passou a infância de um país para outro: Chile, Argentina, Brasil, África do Sul e Tchecoslováquia. Seu português impecável vem dos tempos de criança, quando morou no quarto 914 do hotel Glória. “Depois de Praga meu pai se aposentou e morreu. Minha mãe ficou em Berlim, mas eu não me dava muito bem com ela”, relembra.

De volta à capital alemã, Rudolf decidiu criar uma comunidade alternativa. Funcionava em um prédio de quatro andares, no qual 14 moradores dividiam sete quartos. “O lugar chegou a ter até 60 pessoas que depois iam embora e roubavam tudo. Ninguém podia reclamar, não existia um senso de propriedade, se partilhava tudo: a sua namorada, o seu refrigerador, as suas roupas.” A comuna de Rudolf não era muito bem-vista entre as outras mais politizadas. “Éramos comunistas, mas era eu, filhinho de papai, cristão-novo, quem abastecia a geladeira e financiava tudo aquilo”, ironiza. “No fim, fiquei de saco cheio. Não tinha um momento de solidão. Surgiu uma oportunidade de vir trabalhar no Brasil e eu decidi voltar. Isso foi no início dos anos 70.”

Keeper of the Flame
No Brasil, teve um emprego tradicional, de diretor de uma empresa de restaurantes industriais. Mas não demorou muito para voltar à sua especialidade – a noite – e se tornou consultor e promotor de boates: a Papagayo Club, no Rio, e a Victoria Pub Club, em São Paulo. Rudolf estava no Brasil quando ouviu falar no Studio 54. Não pensou duas vezes e se mandou para Nova York. Ao chegar, convenceu os sócios de que precisavam de um “keeper of the flame”, um chefe de decoração que deixasse tudo impecável. “Aquilo era um ninho de víboras, bichas loucas que se apunhalavam pelas costas. Só cheguei a diretor de promoção por causa do meu controle com as drogas. Eu nunca perco a noção.”

Alguém precisava gerenciar a noite, principalmente aos domingos. “A noite gay do Studio bombava, todas as tribos estavam lá. Bicha de bigode, bicha tipo lenhador, bicha tipo ursinho de pelúcia, tinha de tudo. E elas se drogavam muito, era poppers e pó a noite inteira. Um dia eu recebi um telefonema da embaixada dizendo que o rei e a rainha da Espanha estavam em Nova York e gostariam de visitar o famoso Studio 54”, conta ele, que tratou de preparar tudo para receber os monarcas. “De repente, mais de 50 seguranças cobriram a pista. As bichas enlouqueceram e começaram a largar tudo o que tinham no chão achando que era a polícia. Quando se deram conta de que era apenas o rei, se jogaram tentando recuperar a fortuna em drogas que cobria o salão.” Rei e rainha já estavam instalados em um dos camarotes, quando o dono do local, Steve Rubell, chegou. “Ele estava fodido de meleca [rupinol ingerido com álcool], se jogou em cima do sofá e começou a falar para o rei: ‘Tá vendo essas bichas? Eu já comi todas’. Depois da coroação, com certeza, essa foi a noite mais interessante que ele já teve”, conta às gargalhadas.

Templo da New Wave
Embalado pela disco, o Studio marcou o início de uma nova era. As pequenas boates agora davam lugar a enormes antros. E foi movido por esse espírito que, em 1980, Rudolf abriu a Danceteria, grande realização da sua vida, um clube conceitual cujo objetivo era “hedonizar” uma nova geração de pessoas e fazê-las trilhar o caminho do sexo, das drogas e da curtição. E assim o fez. “Eu tinha uma bicha porteira, gorda, que tinha fugido do seminário católico. Bateu na minha porta pedindo emprego e eu disse: ‘É você!’. Ela era a própria inquisição espanhola, não só escolhia a dedo quem ia entrar como achincalhava os barrados, como Donald Trump”, diverte-se.

A Danceteria, templo da new wave, também foi responsável por lançar Boy George, Sade, The Smiths e Madonna, que fez os seus três primeiros shows no pequeno palco da boate. Toda terça-feira um novo talento era apresentado. “Às vezes eram umas coisas muito loucas, tipo mulheres nuas, que vestiam as bocetas com um nariz e uma boca e faziam expressões faciais que passavam nos telões. E, no fim, elas queriam transar comigo. Homem que é homem transa com qualquer mulher pelo menos uma vez”, argumenta. “Só fui bissexual quando estava na moda e todo mundo era, de David Bowie a Mick Jagger.”

Como Rudolf costuma dizer, essa foi uma época em que a cena noturna em Nova York e na Europa ditava as tendências. “Isso foi de 1978 até 1992. A partir de então houve uma caretização progressiva até chegar à estupidificação total, uma homogeneização das mentalidades”, explica. A Aids contribuiu para o fim dessa era. Em poucos anos, só em Nova York morreram 10 mil pessoas; segundo ele, as mais interessantes da cidade – os festeiros.

Clube Aeroporto

De lá pra cá, tudo mudou. Das drogas até as boates. “Há uma diferença de comportamento fundamental. Naquele tempo as drogas eram usadas para expandir a consciência. Era maconha, ópio e LSD, que eu acho que todo mundo deveria experimentar. Hoje é cocaína, crack. Drogas instantâneas, que só embrutecem e não levam a nada”, diz Rudolf. E acrescenta: “Antes o consumo não interessava, agora é o centro da questão. Os clubes mais parecem aeroportos. Não existe o elemento surpresa, o inesperado, que é importante na noite”. Na visão do alemão, o hedonismo da elite brasileira se resume à bala, ao status e a uma transa com uma patricinha. “Eles jamais questionam nada. É preocupante”, afirma Rudolf, que voltou ao Brasil em 2004, quando trouxe a Lotus para São Paulo. Em 2008, ajudou a abrir o Buddha Bar, na Villa Daslu. Desde então esteve envolvido com casas como Mokai, Pink Elephant e Kiss & Fly.

“Antes o consumo não interessava. agora é o centro da questão. os clubes parecem aeroportos”

Rudolf se sente em casa por aqui. Prefere o Rio, mas gosta da variedade de São Paulo. “Eu saio sete noites por semana para clubes, bares, puteiros. Vou do A ao Z em uma noite. Acho muito limitador participar de um só estrato social.” Rudolf sabe da transitoriedade da vida e das relações. Não tem problemas em falar que não tem amigos próximos, nem sequer suas ex-mulheres. Seus dois casamentos duraram quatro anos cada um, tempo necessário para ficarem entediados, mesmo sem nunca terem sido fiéis. Para ele, esse é o caminho natural: as pessoas precisam seguir em frente, buscar novos horizontes. “Sou efêmero, nado na superfície. Pra mim a vida é uma viagem através das pessoas e dos lugares. No fundo, as pessoas e o que elas fazem ainda são a coisa mais interessante que existe.” Ninguém melhor do que Rudolf para provar.

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