Três décadas de Trip Girl, corpo e sensualidade

por Marcos Candido
Trip #257

A Trip retrata a beleza e complexidade do corpo humano desde 1986. E convida você a refletir sobre o que significa expor sua própria nudez ao mundo

O nu é banal hoje em dia? Expor o próprio corpo sem roupas é uma amostra de autonomia? E por que é legal não ter vergonha de tirar tudo na frente das câmeras?

Em 30 anos a Trip já registrou a nudez de homens, mulheres, magros, gordos, negros, amarelos, brancos, héteros, homos, trans, velhos, moços e outros vários rótulos possíveis. Mas o papo aqui não é só "gente pelada". Cada pessoa nua em nossas páginas (impressas e on-line) é carregada de histórias, defeitos e qualidades saborosos que aprendemos a amar, a ouvir e a apreciar.  É por meio do próprio corpo que esses personagens expressam suas múltiplas inquietações da alma, e também de onde extraem beleza,  liberdade, sexualidade e a objetificação

A Trip convidou fotógrafos, psicanalistas, jornalistas, antropólogos, sexólogos e pensadores para trocar uma ideia e ajudar a responder as incontáveis questões que envolvem corpo e sensualidade.

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Trip. Expor o corpo é uma amostra de autonomia/liberdade?
Diana Corso. Sempre que a gente fica dependente dos desejos dos outros – ou seja: sempre [risos] – nós descobrimos que somos nada autônomos. Existem poucas mentiras maiores do que a autoestima. A estima vem de algo que é estimado por outrem. Se há uma coisa que nos faz sentirmos estimados é quando nos sentimos desejados. Se ser estimado pelo nosso corpo, sem que saibam quem há “dentro” deste corpo, é uma forma de alienação, cabe discussão. Por outro lado, nosso corpo diz muito sobre quem há lá dentro, não é? Nosso corpo não é muito diferente de nossa alma.

E por que é legal a mulher não ter vergonha de mostrar o corpo? É legal por mostrar que a mulher deixou de ser prisioneira. Outro ponto é ver que a mulher também aprendeu a apreciar o corpo do homem: para cada Trip, passou a existir uma Tpm. As mulheres têm comentado entre elas quando acham uma bunda bonita e o tipo de cara que dá tesão. Posar também pode ajudar a democratizar o discurso do orgulho do corpo.
**Diana Corso é psicanalista e colunista do jornal Zero Hora

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Trip. Por que o corpo humano é belo?
Fabrício Carpinejar. Porque ele é surpreendente. Por mais que nos acostumemos com ele, a beleza do corpo é o movimento, o gesto. Demora para a própria pessoa desvendar todas as suas nuances.

A nudez da mulher é uma amostra de liberdade? Uma mulher posa nua para conseguir atravessar o espelho. Ela faz isso para si mesma. Quem posa para os outros é o homem e não a mulher. O homem é carente e precisa daquela confirmação.

**Fabrício Carpinejar é escritor, jornalista e autor de Ai meu Deus, ai meu Jesus – Crônicas de amor e sexo (Bertrand Brasil)

Trip. O brasileiro vem mudando o jeito de lidar com a sensualidade e a sexualidade?
Carmita Abdo. A gente pode dizer que a sensualidade do brasileiro é inquestionável. O brasileiro consegue se projetar corporalmente de forma bastante efetiva. Mas nós ainda temos mitos, tabus e conceitos errôneos que carregamos em função de nossa escassa educação sexual. Nossa educação sexual melhorou? Sem dúvida, mas ainda é aquém do que seria desejável.

O brasileiro atrela muito a sexualidade ao corpo? O corpo é o veículo da sensualidade e a máquina da sexualidade. Não há como ser sensual com um corpo que não tenha uma expressão própria. Não precisa ser um modelo escultural, mas que consegue se expressar de forma bastante erótica.

**Carmita Abdo é psiquiatra e sexóloga autora de Estudo da vida sexual do brasileiro (Bregatini)

Trip. O nu mudou em 30 anos?
Christian Gaul. A meu ver, o nu deixou uma conotação ligada diretamente à sexualidade e até mesmo à sensualidade. As pessoas têm entendido que o nu é uma forma de fazer com que quem veja conheça um pouco da pessoa retratada. Uso a nudez para retratar de forma mais completa uma pessoa. A fotografia de alguém nu é uma maneira de expor a alma dela, que na hora da foto surge por meio do corpo.

**Christian Gaul é fotógrafo e fez mais de 30 ensaios de Trip Girl

Trip. O que o nu ainda consegue despertar em quem vê?
Alice Gallefi. O nu não é novo, o que é novo é o corpo que tem se mostrado nu, e as maneiras de mostrá-lo. O corpo real, natural, imperfeito, sem gênero, está finalmente sendo mostrado sem culpa e sem vergonha. Isso graças a formas mais democrática com que ele é produzido e compartilhado.
Há um limiar tênue entre publicar o corpo nu – de homem e mulheres – como algo belo e cair em algo objetificado. A objetificação do corpo pode fazer parte do jogo sexual, desde que não se objetifique um gênero só. Que seja feito através do olhar de todos, que se objetifique tudo que existe, que delicie, que dê tesão, que o nu seja mostrado tão natural, plural e livre como é. O industrializado é que é o problema!

**Alice Gallefi é cocriadora da revista independente de arte erótica Nin

Trip. Você fez parte da equipe que inaugurou a Trip. Como a revista passou a ter ensaios?
Rafic Farah. A figura da Trip Girl surgiu após uma pauta que fizemos em uma praia do Rio de Janeiro: registramos a namorada de um surfista e minha proposta foi dar um caráter voyeur às fotos. Não tínhamos dinheiro, nem vontade, de fazer algo como os nus fisiológicos que saíam em outras revistas. O Paulo [Lima] então pensou em fotografar meninas mais comuns, em poses menos escancaradas, em nus parecidos com a vida normal. Descrevo desta forma porque assim isso me parece hoje. Eram garotas amigas, ou como nossas amigas. Eu era contra. À época, acreditava que a Trip não precisava desse tipo de estratégia comercial.

Depois você curtiu a ideia? Curti. A razão de estarem ali era mostrar as coisas de um outro ângulo, o feminino de outra forma, como tudo que fazíamos de inovador na revista inteira. Mesmo explorado comercialmente, o nu é uma das faces da conquista sobre o pudor e poder moralista. O nu pode ser banal, mas o corpo não. Se pensarmos profundamente, o corpo é sempre maravilhoso e deslumbrante.

**Rafic Farah é designer, fotógrafo e arquiteto e autor do projeto gráfico inicial da Trip

Trip. Por que é legal não ter vergonha de mostrar o corpo?
Mirian Goldenberg. Na nossa cultura o corpo é um verdadeiro capital. Existe um modelo que aprisiona mais as mulheres do que os homens – mas também os homens. Quem não tem esse “corpo capital” (e a maioria dos brasileiros não tem) acaba sofrendo. Quando você gosta, exibe e não tem vergonha do seu corpo, você liberta outros a também gostarem do seu próprio corpo. É uma pequena revolução cotidiana feita por não ter vergonha de si mesmo.

**Mirian Goldenberg é antropóloga e autora de O corpo como capital (Estação das Letras e Cores) e colunista da Folha de S.Paulo

Trip. O que há na beleza da “mulher comum” que só é encontrado ali?
Autumn Sonnichsen. Não existe mulher comum. Toda mulher é única. Ter uma mulher nua na tua frente, se for para tirar foto ou não, é sempre uma situação única.

O que há no contato fotógrafo-fotografado que só acontece em um ensaio sensual? Tem uma cumplicidade. Tem segredos. Alguém tirar a roupa para você é algo muito único. Você tem que prezar isso. Isso pode acontecer fazendo imagens das pessoas vestidas também. Quando você quer a intimidade da pessoa você tem que ter um certo cuidado, um carinho, um toque leve.

**Autumn Sonnichsen é fotógrafa e colunista da Trip

Trip. O que há no contato fotógrafo--fotografado que só acontece em um ensaio sensual? Acho que é a energia gerada por saber que aquele personagem se dispõe a mostrar seu aspecto físico mais íntimo pra você.

O nu pode ser banal? Eu acho todo nu belo. Um corpo nu nunca é banal.

Como não objetificar um corpo sem roupa? A questão da objetificação tem muito a ver com deixar a personagem decidir por ela o que e como mostrar. Isso é liberdade. E tudo é permitido.

**Jorge Bispo é fotógrafo e responsável pelo projeto Apartamento 302

Trip. Qual a diferença entre objetificação e sensualidade?
Juca Kfouri. Inegável que ambos se misturam. O bom ensaio tem de ser sedutor, sem ser ginecológico. Mas o voyeurismo é o voyeurismo.

Como fazer um bom ensaio sem vender um “modelo padrão” a ser seguido? Com o respeito possível, elegância e delicadeza.

**Juca Kfouri é jornalista e ex-diretor de redação da Playboy

Trip. Ficar nu é amostra de autonomia?
Maria Lúcia Homem. Sem dúvida, acho que expor o corpo nu é uma das maneiras para se alcançar liberdades. Ao avesso dessa questão, há um ponto que também paira: o corpo é só um corpo. O ideal de uma cultura é quando você pudesse escolher entre o nu e o vestido. Talvez estejamos caminhando para isso. Talvez possamos ir ‘dessexualizando’ o corpo feminino como foco principal, e sexualizar todos os corpos. É válido dizer, o reconhecimento da mulher como um ser com desejos individuais é completamente recente. Na cultura e na história, é como se fizesse três dias de liberdade.

Como uma imagem produz desejo? É o seguinte: há uma cultura muito arraigada de que o corpo da mulher desperta desejo. Pode parecer simples dizer isso, mas é o corpo do homem que busca desejo. Por outro lado, a libido feminina está ligada a uma narrativa; é um olhar ligado a uma materialidade do corpo que dialoga com um contexto.

**Maria Lúcia Homem, psicanalista e pesquisadora do Núcleo Diversitas, da USP

Créditos

Imagem principal: Christian Gaul

Christian Gaul

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