por Redação

”O ato médico muitas vezes é enxugar gelo: você trata a doença, mas não as principais causas, que são as condições de vida dessas crianças e suas famílias”, diz a médica, criadora da ONG Saúde Criança

 

Atendendo aos pacientes do Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, a Dra. Vera Cordeiro, homenageada no Trip Transformadores deste ano, percebeu que muitas crianças eram internadas com um problema de saúde, mas algum tempo depois de receberem alta retornavam ao hospital - quase sempre com o mesmo problema. Notou, assim, um ciclo vicioso nos hospitais públicos do país: miséria – doença – internação – alta. “Comecei a compreender que a doença era a ponta do iceberg para a miséria aparecer”, explica.

Vera é clínica-geral, com especialização em psicossomática - ramo que integra especialidades da medicina e da psicologia para estudar efeitos de fatores sociais e psicológicos sobre processos orgânicos do corpo -, e quis conceber uma nova organização que não viesse a substituir o Estado, mas que o complementasse para dar significado ao que os médicos fazem dentro dos hospitais públicos. Fundou, em 1991, a Saúde Criança, organização sem fins lucrativos, que identifica crianças em famílias de risco e, por meio de voluntários treinados e de um plano de ação familiar, dá um suporte que abrange cinco áreas: assistência básica, cidadania, moradia, educação e renda familiar; até que as famílias possam se autossustentar.

“A pobreza é tão complexa que se você não tiver uma abordagem multidisciplinar não atinge as raízes. Eu quero, com a Saúde Criança, compartilhar o saber médico, já que o bem-estar psicossocial do ser humano é algo que transcende as paredes do hospital”, conta. Para Vera, a medicina tradicional não prepara os profissionais para a realidade que vão enfrentar porque são treinados para tratar de doenças, não para entender as pessoas por trás delas. Mas defende sua categoria: “Eu só acredito que a saúde vai dar certo no Brasil e no mundo quando tiver um trabalho intersetorial: governo, empresas e sociedade civil, com cada um sabendo com clareza o que deve fazer. O médico não dá conta de tudo sozinho.”

Por sua transparência, impacto e poder de multiplicação, a metodologia utilizada pela Saúde Criança vem se expandindo: já se tornou política pública em Belo Horizonte, inspirou a criação de 23 organizações em hospitais de 6 estados do Brasil, exportou seu modelo para fora do país - começando com Colômbia e Portugal -, e mudou a vida de mais de 43 mil pessoas.

Difícil imaginar que uma menina nascida na classe média-alta carioca, cujo maior problema na adolescência era a vaidade abalada por um nariz grande e que decidiu ser médica por uma competição infantil transformaria a vida de tantas pessoas, e teria a sua transformada. “A minha história é como a de qualquer um. O importante é o sentimento que está por trás das ações”.

 Aos 62 anos, ainda quer mais: “Nosso sonho é que cada hospital público tenha um Saúde Criança. Se os 5 mil municípios brasileiros adotassem a metodologia, nós viraríamos um país de primeiro mundo.

Leia a seguir a conversa que a médica teve com a Trip:

Queria que você contasse um pouco da sua história, falasse um pouco sobre a sua família e o meio em que cresceu e formou sua personalidade.
Tenho muita sorte pelos pais que tive. Eram pessoas muito humanas, criativas e empreendedoras. Meu pai era engenheiro e diretor-geral de uma das maiores fábricas de tecido de algodão do Brasil, que ficava em Bangu, no subúrbio do Rio de Janeiro. Vivia preocupado com os funcionários e gerou muitos empregos. E minha mãe, nos anos 60, época em que não tinham escolas públicas em Bangu, criou uma escola de vanguarda, criativa, que não ensinava só a ler e a escrever, mas também tinha teatro, música, coisas impensáveis para a época. Então, eu sentia que fazia parte de uma classe social alta, mas convivia com os filhos dos operários, estudava com eles nessa escola da minha mãe. Eu não era “a filha do diretor da fábrica”, não gostava de me sentir assim. Costumo brincar que tenho uma vida de princesa e uma de camponesa desde quando nasci. Meus amigos eram pessoas muito pobres da região, e eu dava meus brinquedos para as outras crianças, isso muito pequena, com 4, 5 anos. A minha infância foi muito feliz. Muito diferente da minha adolescência, quando eu fui mandada para o Rio para morar com os meus tios e para estudar muito. E adolescência é aquela época meio estranha, né?

Estranha em que sentido?
Eu não me sentia nada confortável. Era muito magrinha, desengonçada e nariguda, e isso me incomodava. Me sentia o patinho feio [risos]. Um dia cheguei em casa chorando porque alguém tinha falado do meu nariz na rua e meu pai me levou para operar com o Ivo Pitanguy no dia seguinte, com 16 anos. E assim que fiz a cirurgia no nariz outra Vera nasceu. E logo passei na faculdade de medicina, numa federal [UFRJ], que na época era praticamente impossível entrar, e acabei virando a melhor aluna da universidade, mas mais por neurose que por alegria. Como eu me sentia tão desengonçada e deprimida por ser magrinha, eu me dediquei a estudar [risos]. Só que quando comecei o curso foi um choque: no auge dos meus 20 anos eu tinha que dissecar cadáveres. E a medicina tradicional é um choque de realidade: doença, pacientes gravíssimos, sofridíssimos e paupérrimos, vida e morte na sua frente. Então, de novo a história da princesa/camponesa, voltei a ser camponesa, e tive que fazer muita terapia para lidar com a angústia.

O que te fez escolher a medicina como profissão?
Olha, eu vou ser bem franca. Esse tio com que fui morar era médico e, assim como o meu pai, ele também me influenciou muito. Era um humanista, muito solidário. Ele tinha uma filha e havia determinado que ela seria médica. Como eu morava com eles, pensei: “Ah, ela não vai ser médica sozinha, não, eu também vou ser”. Então, não foi bem uma coisa de vocação, era muito baseado na admiração que eu tinha pelo meu tio e por certa competição. Estou te falando do lado ruim, as pessoas sempre falam do lado bom [risos]. No começo eu queria ser psicóloga, mas na época psicanálise e psicologia eram vistas com maus olhos. Só os médicos psicanalistas eram valorizados. Você tinha que ser médico para ter status. E a diretora da escola em que eu estudava falava para eu fazer medicina, que era besteira ser psicóloga. Daí resolvi ser médica e não demorou para eu perceber que o que gostava na medicina era da pessoa por trás da doença. Queria entender o motivo da pessoa ter enfartado, ou o que a levou ao alcoolismo, já que a doença incide num ser que é biopsicossocial e o médico geral trata da parte biológica. E a psicossocial, quem cuida disso? Não sosseguei enquanto não criei o primeiro setor de medicina psicossomática em hospital público no Brasil.

"Resolvi ser médica e não demorou para eu perceber que o que gostava na medicina era da pessoa por trás da doença. Queria entender o motivo da pessoa ter enfartado, ou o que a levou ao alcoolismo"

Você acha que existem algumas virtudes imprescindíveis a quem decide ser médico?
Existe uma virtude que eu acho fundamental: gostar da relação humana, seja lá por qual especialidade você optar. O adoecer envolve aspectos biopsicossociais da condição humana, portanto, se você não gostar de se relacionar com o ser humano, desista.

O que te fez deixar o consultório particular para fundar a Saúde Criança? Em que momento surgiu a ideia?
A maternidade. Se você me perguntar o que mais me transformou de tudo o que aconteceu na minha vida, foi o nascimento das minhas filhas. O fato de ser mãe me fez sentir muito poderosa, é quase um milagre sair de dentro de você um ser humano. E quando elas nasceram eu já estava trabalhando no Hospital da Lagoa, e, de novo, o sentimento de princesa/camponesa: meu marido era diretor da IBM e levávamos nossas filhas para esquiar em Lake Tahoe [nos EUA], e no dia seguinte eu ia trabalhar no hospital e encontrava aquelas mulheres. Apareceu uma mãe chamada Pedrina, e eu tinha que prepará-la para aceitar que o filho de 3 anos ia ter uma mão amputada porque ele tinha uma necrose devido a um erro médico causado numa clínica que a gente chama no jargão médico de “trambi-clínica” de subúrbio, uma clínica mal equipada, com maus profissionais. Era amputar ou ele morria. E essa situação deriva da pobreza, porque ela não teve acesso a um hospital adequado, a um plano de saúde privado. Pedrina disse: “A senhora não tem um emprego para me arrumar? Porque eu vou sair daqui para a rua, para mendigar”. Se o filho dela fosse uma criança de primeiro mundo isso não teria acontecido, ou ela teria uma prótese, poderia fazer fisioterapia. Que mundo é esse em que minhas filhas têm tudo e essas crianças não têm absolutamente nada?

Depois teve um outro caso, o da Priscila. A gente atendia ela com pneumonia num hospital de alto padrão, ela era curada, mas daí voltava para casa dela e chovia dentro da casa, a mãe era deprimida e não tinha emprego, o pai era alcoólatra. Meses depois a Priscila voltava com uma outra internação. Então eu comecei a compreender que a doença era a ponta do iceberg pra miséria aparecer. O ato médico muitas vezes era enxugar gelo, porque você tratava a pneumonia, mas não ia nas principais causas da doença, que eram as condições de vida dessas crianças e de suas famílias. Eu não tinha dado nenhum na época, nem tinham pesquisas. Hoje em dia eu sei, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que um terço das mortes que acontecem diariamente no planeta são relacionadas à pobreza. Então, se eu e você quisermos eliminar, hoje, um terço das mortes no planeta, basta a gente acabar com a pobreza. Malária, diarreia, doenças respiratórias, desnutrição, tuberculose e outras várias doenças são tratadas a baixo custo, e basta você diminuir as diferenças sociais para evitá-las.

É problema de desigualdade social, de péssima distribuição de renda no nosso país e de todos os fatores que recaem sobre a área médica, mas que não tem a ver com a medicina, e, sim, com a economia, com a cultura, com a solidariedade das pessoas. Os profissionais da saúde muitas vezes veem essa situação de mãos e pés atados porque não dá para eles resolverem problema médico, social, psicológico de cada paciente. Então eu percebi que era necessário conceber uma nova organização que não viesse a substituir o Estado, mas que o complementasse e desse significado ao que os médicos fazem dentro dos hospitais públicos.

"O ato médico muitas vezes era enxugar gelo, porque você tratava a pneumonia, mas não ia nas principais causas da doença, que eram as condições de vida dessas crianças e de suas famílias"

Como é a metodologia da Saúde Criança?
Existe um grupo de triagem formado por médicos, enfermeiros, assistentes sociais que escolhem nos hospitais públicos as famílias que vivem abaixo da linha da pobreza. Quando a família chega aqui, nós construímos com eles e com psicólogos, nutricionistas e profissionais de outros meios um plano de ação familiar baseado em cinco áreas, para que eles se autossustentem: apoio jurídico, reforma de moradia, medicamentos, alimentação e cursos profissionalizantes. Eles têm várias ações a cumprir e, se não cumprem, nós também não ajudamos, e a família pode ser desligada do programa. Cada família custa em torno de R$ 800 por mês e o apoio dura dois anos em média. A família tem que atingir várias metas nas cinco áreas. Tem que ter um salário mínimo, tem que ter uma moradia minimamente decente, todos os irmãos da criança doente têm que estar na escola, o responsável pela criança tem que estar profissionalizado. Atingindo isso, a família "tem alta" e vem uma nova. Como a pobreza é multidimensional, tem que haver uma abordagen multidisciplinar. Muita gente fala assim: “Quero fazer uma organização para ajudar com moradia”, “quero ajudar com profissionalização”, “quero tratar a parte dentária”. A pobreza é tão complexa que se você não tiver uma abordagem multidisciplinar você não atinge as raízes e não dá instrumento para a família se autossustentar.

E de onde saem os recursos do projeto?
Embora seja um trabalho que serve ao governo, nós só somos patrocinados por empresas privadas e temos cerca de 130 voluntários da sociedade civil trabalhando no momento, e mais de 700 passaram ao longo dos 21 anos. E nos tornamos política pública em Belo Horizonte quando um dos nossos patrocinadores nos botou em contato com o governo. Hoje em dia eles fazem o plano de ação familiar como um projeto do governo. E a organização está crescendo via multiplicação da franquia social. Nosso sonho é que cada hospital público tenha um Saúde Criança. Se os 5 mil municípios brasileiros adotassem a metodologia, nós viraríamos um país de primeiro mundo.

Comente sobre os desafios iniciais, e as maiores dificudades.
No começo eu não tinha muita ideia do que ia fazer. Eu atendia o paciente de manhã no hospital e o mandava para mim mesma à tarde no Parque Lage, que é perto do hospital, num espaço que a gente improvisou para atender as pessoas. Isso juntando um grupo de voluntários para dar uma ajuda imediata para que todo ato médico feito no hospital não se perdesse. No início teve uma série de problemas. Eu comecei rifando objetos da minha própria casa. Meu marido chegava de viagem e perguntava: “Cadê aquele relógio da parede?”. “Virou quimioterápico”, eu respondia. Eu lembro que eu tinha um motorista para levar as crianças no inglês, então botei as crianças num curso de inglês perto de casa e comecei a usar o motorista para visitar as famílias nas favelas. Meu marido disse: “Eu sustento uma família, que é a nossa, porque você como médica ganha muito pouco. Se você quiser ajudar mil famílias vai ter que arranjar vários empregos”. Então eu descobri que tinha que aprender a captar recurso. Fui falar com Betinho [Herbert de Souza, sociólogo e criador do projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida] e disse que precisava de muito dinheiro, que eu ia assaltar um banco, porque não aguentava mais viver naquela loucura. Meus amigos fugiam de mim porque eles sabiam que eu não ia querer sair para jantar fora ou ir ao cinema, e, sim, que eu iria querer o dinheiro deles. Foi uma época que passei meio no ostracismo, e realmente eu senti que estava num estado alterado de consciência. Até que eu fui atrás da Ashoka [organização mundial sem fins lucrativos que apoia projetos sociais inovadores com amplo impacto] e passei por nove meses de entrevistas. Eles mandavam, no começo, um dinheiro para você sobreviver com o seu sonho. Quando nossa organização foi eleita como célula da Ashoka, eu comecei a chorar e pensei: “Precisou de alguém lá fora para entender que a gente quer promover a inclusão social através da saúde”.

No começo as famílias estranham muito a abordagem?
No começo elas ficam um pouco perdidas, pensando “é bom demais pra ser verdade” [risos]. Elas não entendem muito bem o conceito de organização social e perguntam quem somos nós, por que fazemos isso e ficam impressionadas. Vou te contar um caso que é emblemático. Uma mãe que estava desempregada tinha uma filha adolescente com diagnóstico de linfoma, e ela estava desesperada. Não sabia como comprar os remédios para o tratamento da filha e foi encaminhada para a gente. Durante os dois anos em que essa mãe ficou conosco, além de a filha ter remissão do câncer, ela se profissionalizou na área de beleza, fazendo maquiagem e cabelo na comunidade onde vive. A filha criou um blog para chamar mais clientes e outro dia chega essa mãe, que vivia na base da pobreza, num carro, e a filha ao lado com um laptop, dizendo: “Doutora Vera, minha vida é outra. Vocês me estimularam e agora eu sei que sou capaz, não é mais um sonho, é uma realidade”.

Como é ver essas famílias se transformarem? E até que ponto isso transforma vocês?
Eu costumo dizer que é uma rua de mão dupla. Hoje em dia tenho um salário, mas fui voluntária por 12 anos e sei muito bem como é a sensação. O voluntário não está aqui por ser bonzinho. Ele está aqui porque ele percebe que ganha muito mais do que ele dá para essas famílias. A moeda do voluntariado é a transformação dos valores. Muitos voluntários chegam aqui achando que a vida é péssima e, ouvindo a histórias heróicas dessas mães, eles começam a descobrir que eles têm que agradecer por tudo que têm e devem compartilhar as riquezas internas e externas com essas famílias. A gente acaba economizando em Prozac, em antidepressivo.

"O voluntário está aqui porque ele percebe que ganha muito mais do que ele dá para essas famílias. A moeda do voluntariado é a transformação dos valores. Muitos chegam aqui achando a vida péssima e, ouvindo a histórias heróicas dessas mães, começam a descobrir que têm que agradecer por tudo que têm"

Por que os governos não conseguem implementar as mesmas ações da ONG na saúde pública? 
Porque, na verdade, a medicina tradicional não prepara os profissionais para a realidade que vão enfrentar. Você é treinado para tratar de doenças, não para entender que as doenças incidem sobre um ser que é biopsicossocial. Medicina, direitos humanos e saúde pública se separaram em algum momento. Saneamento básico, por exemplo, é uma coisa que é muito falada, mas não é feita no nosso país. Então, é um contrassenso gastar um dinheirão num hospital público e depois mandar os pacientes para um lugar onde vão beber água de esgoto. A saúde pública e a medicina não têm uma luta conjunta, como deveriam ter, para realmente promover a saúde. 

A senhora já chegou a desanimar, pensando que, por mais que faça, nunca é o bastante?
Teve um momento em que não cheguei a desanimar, mas me desesperei. Porque comecei sonhando alto. Eu não sonhava com uma organização social; sonhava em mudar o paradigma da área da saúde, porque vi que a saúde, de alguma maneira, estava num beco sem saída, e isso não era falado, não por maldade, mas porque a gente se sentia impotente como médico. E a gente não sabe quão poderoso cada um de nós é. Teve um dia em que nós fomos expulsos do Parque Lage, que é do lado do Hospital da Lagoa e era uma sede estrategicamente fundamental se eu quisesse replicar o projeto em outros hospitais públicos, não só para ser uma organização social, mas para ser uma organização que ensinasse e espalhasse a metodologia. Um grupo de moradores moveu uma ação contra o projeto, porque não queriam uma organização de pobre num parque de zona nobre do Rio de Janeiro. E eu tinha conseguido recursos com um banco para fazer a sede dentro do parque, e não podia sair dali. Um dia eu fui para o escritório de arquitetura que o banco ia patrocinar e a arquiteta falou que se ela continuasse com a obra seria presa por embargo judicial. Na época distribuimos uns cem adesivos para botar no carro com o nome da organização para ajudar na divulgação e, voltando do escritório, dirigindo, eu comecei a chorar e a brigar com Deus: “Deus, se o Senhor não ajuda uma obra como a Saúde Criança, o que o Senhor faz? Eu estou perdendo as forças, a paciência, e, sabe, eu quero uma prova de que eu realmente estou no caminho certo!”. Quando eu acabei de falar, um carro com o adesivo da instituição ultrapassou o meu. Eu não sabia que Deus respondia tão rápido [risos]. Eu nunca vou me esquecer disso. Voltei a chorar e disse: “Vamos em frente”. Quatro meses depois a doutora Ruth Cardoso inaugurava a nossa sede no parque Lage, na frente de 400 pessoas, depois de o presidente Fernando Henrique Cardoso ter baixado um decreto a nosso favor.

Sabe-se que hoje existem diversas faculdades de medicina que funcionam como verdadeiros caça-níqueis e formam profissionais despreparados, muitos deles mais interessados no status e no lado financeiro da profissão do que em qualquer outra coisa. O que a senhora acha disso?
Quem não tem vocação e usa a medicina para ser um mercenário, ou quem lida de forma irresponsável com a profissão, vive de uma forma criminosa. Porque, se existe uma profissão que é meio sagrada, é a do médico. Por outro lado, também acho que hoje existe um massacre da minha categoria. É claro, existem muitos médicos picaretas, mal formados, mas também existem muitos médicos missionários que não têm a menor visibilidade, porque ninguém fala do que dá certo. A medicina é uma profissão que exige muito dos profissionais: existe uma alta taxa de suicídio e de drogadição entre os médicos, porque você lida com o sofrimento humano numa sociedade muito pouco solidária. O que eu quis com o Saúde Criança foi compartilhar o saber médico. A saúde é algo tão complexo, o bem-estar do ser humano é algo que transcende as paredes do hospital. É algo tão profundo, que está relacionado à habitação, à cidadania e a tantas outras coisas, que eu quis tirar essa carga dos médicos só e compartilhar com a sociedade civil e com as empresas. Eu só acredito que a saúde vai dar certo no Brasil e no mundo quando tiver um trabalho intersetorial: governo, empresas e sociedade civil, com cada um dos atores sabendo com clareza o que deve fazer. O médico não dá conta de tudo sozinho.

"A saúde é algo tão complexo, o bem-estar psicossocial do ser humano é algo que transcende as paredes do hospital"

O que você acha que impede o primeiro passo de uma pessoa na jornada de ajudar as demais? No documentário Quem se importa você diz que não importa se fazem algo que vai ajudar quatro pessoas, ou mil.
O importante é o sentimento que está por trás das ações. Nós vivemos em uma sociedade de 7 bilhões em que 1 bilhão passa fome. Existe uma aparente imobilidade da sociedade frente ao quadro gravíssimo, e é preferível negar a realidade. A classe média alta está vivendo numa ilha da fantasia. Na verdade, a drástica distribuição de renda vai atingir a nós todos. Mas, quando um grupo muito comprometido de pessoas se une por uma causa justa, de uma forma transparente, uma série de sincronicidades acontecem para que essa missão seja cumprida. Nós fomos considerados pela revista suíça Global Journal, em dezembro de 2011, a melhor organização social da América Latina, e a 38ª do mundo. E não teve repercussão nenhuma no país. Se você perguntar para os seus amigos jornalistas qual é a melhor ONG da América Latina, eles não vão saber nem o nosso nome. Então, as pessoas não têm noção do país que dá certo. Vocês, da Trip, estão fazendo um trabalho incrível, porque estão mostrando esse país. Mas normalmente a imprensa não mostra isso, não dá visibilidade. Daí vai uma pessoa nos EUA e faz a mesma coisa que nós, só que depois, e tem uma repercussão enorme por lá. As pessoas são imobilizadas porque elas desconhecem os trabalhos que são feitos, e porque, também, existe uma sensação psicológica de impotência, as pessoas não sabem o quão forte elas são.

A minha história é como a de qualquer um. Não fui eu quem inventou o plano de ação familiar, foram mais de 700 voluntários junto com empresas nacionais e internacionais que criaram essa metodologia poderosa. Na verdade, cada pessoa é fundamental com os seus saberes para transformar o mundo, e melhor se elas estiverem unidas a um grupo de pessoas ou a uma organização séria. Acontece que as pessoas não se dão conta, elas querem coisas grandes, mas, para começar uma longa jornada, pequenos passos precisam ser dados. Comece com pequenos passos, de forma organizada e com um grupo comprometido, e depois de alguns anos você verá que uma longa jornada foi percorrida. 

"As pessoas são imobilizadas porque elas desconhecem os trabalhos que são feitos, e porque, também, existe uma sensação psicológica de impotência. As pessoas não sabem o quão forte elas são."
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