Encontros 2011: Maurizélia de Brito Silva e Leonardo Sakamoto

por Redação

Jornalista e chefe de reserva querem denunciar quem ganha com crimes na indústria pesqueira

Uma parceria que nasceu de um encontro informal pode ajudar a desbaratar uma das atividades mais agressivas ao trabalhador e ao ambiente: a pesca da lagosta no Rio Grande do Norte. Feita em geral de forma ilegal, com equipamentos de mergulho improvisados e muita pressão financeira, a pesca da lagosta mata cerca de 13 trabalhadores por ano e deixa um rastro de destruição ambiental por onde passa. Mas isso pode estar prestes a mudar. A chefe da reserva marinha do Atol das Rocas, Maurizélia de Brito Silva, e o jornalista Leonardo Sakamoto, lider da ONG Repórter Brasil, pretendem quebrar essa cadeia nefasta pelo seu ponto mais fraco: o bolso. Unindo suas experiências, que lhes valeram o Prêmio Trip Transformadores deste ano, os dois preparam uma investigação que vai revelar o destino das lagostas pescadas ilegalmente. Como a maioria dos animais vai parar em restaurantes finos que detestariam ter seu nome associado a criminosos, é possível que os delinquentes fiquem sem clientes. 
Leonardo sabe que a estratégia dá certo. Seu trabalho como jornalista é conhecido no mundo todo justamente por sua preocupação de ir além e revelar os beneficiários finais dos crimes cometidos a trabalhadores e ao ambiente. Não é raro que os crimes sejam cometidos por pequenas empresas a serviço de grandes marcas. Nesses casos, o estrago à imagem é grande, como o que a Repórter Brasil causou à marca de roupas espanhola Zara, ao denunciar a existência de trabalho análogo ao escravo em sua cadeia produtiva. “As costureiras bolivianas ganhavam R$ 2 por vestido costurado. Na loja ele custava R$ 130, ou seja, ela tinha que fazer 70 vestidos para comprar o vestido que ela mesma costurou”, calcula Leonardo. A denúncia virou inquérito, que está sendo investigado.

Zélia, por outro lado, conhece como poucos as mazelas e as pressões econômicas sobre os pescadores do Nordeste. À frente do Atol das Rocas, o único do tipo no Atlântico Sul e um verdadeiro berçário de vida marinha, ela passou os últimos 15 anos brincando de gato e rato com pescadores que achavam que valia a pena correr o risco de ser preso para usufruir da fartura pesqueira da reserva. Essa batalha ela considera ganha, embora a vigilância seja o preço a pagar. Se antes os episódios com barcos pesqueiros na área do atol eram contados às centenas por ano, hoje passam-se meses sem que apareça um aventureiro.

A pesca da lagosta, diz Zélia, é uma daquelas atividades em que ainda ocorrem histórias tenebrosas, daquelas que, se forem tornadas públicas, contaminam qualquer resultado ou produto. Pescar lagostas nas imediações do Atol das Rocas custa vidas humanas e da fauna marinha. Segundo ela, cerca de 13 pescadores morrem, por ano, no Rio Grande do Norte. Eles se arriscam em mergulhos profundos feitos com compressor e gás de cozinha, perdem ou paralisam partes do corpo, usam redes que arrastam toda sorte de animais, trabalham sem carteira assinada nem qualquer segurança.

“Quando chega a fiscalização, o dono do barco corta a mangueira e se livra das provas para não ser pego. O cara que está a 60 metros de profundidade sofre paralisia, fica tetraplégico ou morre, porque não tem tempo suficiente para subir à superfície fazendo descompressão. O dono do barco se safa, fica em casa e alega que não deu mando de saída para o Atol. Diz que não sabia da existência de compressor na sua embarcação. Mas, se tudo dá certo, ele fica com 50% do pescado. O pescador, de outro lado, fica na pior: inválido, desempregado, com fome e sem aposentadoria do governo, porque não é contratado legalmente”, explica Zélia. Vendido a R$ 2, o quilo da lagosta é comercializado pelo próximo atravessador por  R$ 70 para abastecer restaurantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e do exterior. Nesse esquema perverso, as empresas de pesca raramente são punidas. “Você vai a um restaurante e a nota fiscal da lagosta é de alguém legalizado. Mas o trabalho foi quase um homicídio com o pescador”, diz Zélia. “Ninguém pensa o que está por trás de um prato fino”, diz Leonardo.

A ideia da parceria nasceu na casa dela, em Pipa, litoral do Rio Grande do Norte, de um encontro informal dos dois promovido pela Trip para ampliar as redes de apoio entre os homenageados do Prêmio Trip Transformadores. A iniciativa partiu de Leonardo, depois de ouvir as histórias macabras da pesca. “Zélia, você acha que funcionaria trabalhar com o consumidor e com os restaurantes chiques, alertando-os sobre a cadeia da pesca e da venda da lagosta, expondo o desrespeito com o pescador e com o ambiente que está por trás disso? A gente conseguiria fazer essa ponte e pressionar os compradores? Estou pensando agora que a gente podia rastrear a pesca da lagosta em conjunto.”

 

Zélia se interessa de imediato. “Seria muito importante que as pessoas entendessem que é possível cuidar do atol e praticar a pesca sustentável. Então seria muito interessante um trabalho de pressão sobre as empresas.” A parceria deve começar a partir da data da entrega do prêmio, que acontece em 26 de outubro, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.

Leonardo percebe que a vida do pescador vale tão pouco como a do trabalhador escravo que a ONG Repórter Brasil monitora na Amazônia e em outros cantos do país. “O fazendeiro quer derrubar a floresta para ampliar o pasto, então contrata um gato, um contratador de mão- de-obra. O sujeito arrebanha gente que fica no meio da mata comendo mal, pegando malária, perdendo partes do corpo em acidentes de trabalho, sendo explorados, sem poder sair de lá enquanto limpa a área para o fazendeiro. Aí a fiscalização chega, vai cobrar do fazendeiro e ele diz que aquele bando de gente não é seu empregado, afinal ele não contratou ninguém, nem mandou fazer o serviço, tampouco escravizar. Ou seja, ele terceiriza a culpa”, explica Sakamoto.

Assim como todo ativista aguerrido, os dois colecionam inimigos. Os de Zélia são, obviamente, os pescadores, ironicamente, aqueles com quem ela cresceu na beira da praia de Pipa e tornou-se amiga. “Eu os amo, mas fora da reserva”. Sua intolerância com a pesca ilegal no Atol das Rocas surtiu efeito. Hoje ela é reconhecida pela colônia de pescadores local, por ter salvado a vida de alguns deles que, por ironia, naufragaram quando faziam pesca ilegal nas imediações do atol.

Os opositores de Leonardo Sakamoto eram as grandes empresas. “No começo da Repórter Brasil, a gente era visto pelos empresários como inimigos do desenvolvimento, como um bando de hippies que queria vestir roupa de algodão e viver no passado. A gente foi mostrando que atuar de forma legal e sustentável não apenas resolveria os problemas sociais e ambientais, mas iria fazê-los ganhar mais dinheiro. Quem pratica trabalho escravo o faz para obter lucro fácil. Só que é lucro besta, daqui a pouco o comprador no exterior vai recusar, ele vai perder mercado.”

Tanto Zélia quanto Sakamoto devem grande parte do sucesso de suas ações às redes de que fazem parte. Única servidora pública a cuidar do atol no início, Zélia soube criar uma rede de colaboradores dispostos a enfrentar uma série de perigos para ajudar a defender a reserva. Grupos de estudantes que nunca teriam a oportunidade de visitar o arquipélago toparam ser carpinteiros, vigias e piratas do bem, recolhendo redes, denunciando barcos pesqueiros. Aos poucos, os fora-da-lei foram desistindo e passaram também a colaborar na denúncia. Hoje, a “irmandade Atol das Rocas”, como Zélia gosta de chamar, é composta por estudantes, pesquisadors, pescadores, Marinha, FAB, Ministério Público e outros órgãos.

A Repórter Brasil atua menos no corpo a corpo. Estão ligados a redes empresariais, governamentais e da sociedade civil, brasileira e internacional. O programa Escravo, Nem Pensar junta 70 organizações e capacita professores e líderes populares para evitar o tráfico de pessoas e o trabalho escravo de jovens. Não é raro que suas denúncias rapidamente sejam as mais comentadas nas mais populares mídias sociais, fazendo as pessoas discutirem, comentarem e procurarem formas de resolver o problema.

“O futuro nos reserva uma coisa muito legal, Zélia. Tanto a sua como a minha bandeira atraem a atenção de muita gente disposta a ajudar. No Acre, no Rio Grande do Sul, em Cingapura, espalhados fisicamente, mas juntos na internet, esse pessoal faz barulho, briga e pode fazer diferença muito grande”, diz Sakamoto.

E é dessa força de milhões de peixinhos que os dois batalham para frear o transatlântico da injustiça social e da violência ambiental.

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