Refletir para mudar

por Redação

Trip bateu um papo com a argentina radicada no Brasil Lia Diskin, da Fundação Palas Athena

 

Criada em 1972, a Fundação Palas Athena promove, agencia e incuba programas e projetos nas áreas de Educação, Saúde, Direitos Humanos, Meio Ambiente e Promoção Social, a fim de aprimorar a convivência humana por meio da aproximação de culturas e articulação dos saberes. Não é subvencionada pelo governo, nem por instituições nacionais ou internacionais de quaisquer naturezas. Desenvolve, desde sua fundação, atividades e projetos diversos, sempre com recursos provindos da autogestão. Suas três unidades físicas contam com mais de cem funcionários e colaboradores voluntários, além de uma rede de parcerias com organizações governamentais, da sociedade civil, movimentos sociais e empresas. Quem procura participar de seus encontros e cursos, muitas vezes encontra uma fila de espera de quase um ano. Nas próximas linhas, saiba porquê as reflexões propostas pela Palas Athena têm potencial tão atraente e tranformador. Quem responde é Lia Diskin, co-fundadora:

A Palas Athena trabalha fundamentalmente com a democratização do acesso ao conhecimento. Isto faz parte do conceito de Cultura de Paz, não é?

Nós trabalhamos, sim, através do que se chama de Cultura de Paz, um dos grandes programas disseminados pela UNESCO, que é justamente democratizar o conhecimento. Ao manter espaços privilegiados de conhecimento, continua-se sustentando uma estrutura na qual o poder só se reproduz a si mesmo. Isto não apenas não é saudável democraticamente, como também termina viciando o próprio poder, por não receber novas variáveis. Tudo o que não se oxigena morre.

Qual é a capacidade de transformação do processo de disseminação do conhecimento?

Assim, democratizar o conhecimento e disponibilizar informações é um dos grandes objetivos da Fundação. Disponibilizar as fontes aonde essas informações acontecem, promover projetos que criam benefícios sociais. Aqui é um espaço de encontro de dezenas e dezenas de instituições não só não-governamentais, mas também instituições que fazem parte do Governo, grupos de secretarias do meio ambiente, educação, saúde, assistência social, do judiciário. E, nesses encontros, essas entidades fecundam-se mutuamente. Isso é que é extraordinário. Aprendemos que a diversidade não só tem que ser tolerada, como promovida. Porque na diversidade é que acontece a vida.

 A que você atribui a grande procura atual pelos cursos e encontros promovidos pela Palas Athena?

Há um anseio hoje muito grande por coisas verdadeiras. Tudo se tornou um show, um espetáculo na sociedade atual. Hoje você está obrigado a ter sucesso, a ser feliz. Conceitos estapafúrdios, totalmente desarrazoados, que não têm lógica. O conceito de felicidade hoje está associado ao reconhecimento social, do maior número de pessoas possíveis, para se obter status. Ser reconhecido hoje é mais valioso do que o sucesso material, do que o poder de consumo. Se o reconhecimento está em primeiro lugar na escala de valores, é preciso ver que estamos numa sociedade de absoluto anonimato pessoal. Lembro-me de que ia à padaria em Buenos Aires, quando jovem, e o padeiro cumprimentava, perguntava pela família, sabia que meu irmão estava com sarampo... Esta relação que se estabelece no bairro onde se mora, dentro de uma comunidade, é absolutamente definidora para o princípio de segurança que não só os humanos precisam, mas que qualquer princípio de vida precisa.

Como assim?

Podemos dizer que temos dois grandes mecanismos: o princípio de segurança, aquele que vai dar conta da sobrevivência; e o princípio de desenvolvimento, aquilo que vai dar conta da transcendência. Se a segurança não está minimamente alicerçada, simplesmente não vai dar conta do desenvolvimento, não há como se desenvolver. Por mais talento e generosidade que tenha uma pessoa, não há energia disponível para o crescimento, porque está sendo tudo consumido pelo mecanismo de segurança. Quer ver isso em macro? Olhe para os recursos financeiros do mundo. Estão destinados prioritariamente para quê? Para o sistema de defesa. Em que investe mais os governos dos EUA e China? Defendemo-nos de quê? Defender-se de quem e de quê? Há um profundo desequilíbrio dos investimentos que se fazem... Quanto estamos pagando para nosso convenio de saúde? Quanto isso representa no orçamento mensal? Se a família tem crianças e pais idosos, como fica? Tudo isso vai criando uma atmosfera, uma temperatura interna na qual os mecanismos de saúde se manifestam como, por exemplo, a depressão, doença tão comum hoje em dia. Eu até considero a depressão um sinal de saúde, pois o organismo está dizendo: isso está errado! Assim não brinco, não me interessa!

 Em que medida essa tendência de se morar hoje em condomínios grandes e auto-suficientes, para que seus moradores não precisem sair deles, reflete no funcionamento da sociedade?

Isolamento, isolamento, isso obviamente vai na contramarcha do princípio da vida. A vida é expansão! Expansão e agregação! Quando você se isola, está corrompendo o princípio vital, que dá sentido à vida, que assinala o futuro. É possível reverter esse processo. Mas para isso é preciso imensos investimentos pessoais e coletivos na reflexão. Não é uma questão de recursos financeiros. É mais exigente do que uma questão econômica. É reposicionar-se em relação ao sentido do que estou fazendo. O que estou fazendo atende às minhas necessidades? Estou atendendo ao meu chamado? Qual a minha vocação para a vida? O que eu espero dos outros é o que estou disposto a fazer pelos outros? E não falo em nenhum sentido astronômico, transcendente, inatingível não! É no sentido da minha cotidianidade.

Então há um paradoxo aí, entre a percepção de que há algo errado e a persistência num modelo que parece falido – quando se comemora, por exemplo, o fim da crise econômica mundial com o aumento da fabricação de veículos nas montadoras...

Entram no fluxo do trânsito paulistano cerca de 600 novos carros por dia. Infelizmente, não se sabe quantos saem, mas certamente o número é bem menor do que isso. Quando você assinala com propriedade que saímos da crise ao custo de inviabilizar a vida, como a do paulistano, por exemplo. Ontem tivemos um exemplo extraordinário. A chuva inviabilizou não só o trânsito mas, em casos concretos, inviabilizou a vida de pessoas. Temos mortes de pessoas provocadas por condições climáticas absolutamente já esperadas. Estamos de fato em contradições de estruturas sociais. Isso transborda em uma violência cada vez maior. Temos que questionar - e aí temos a reflexão outra vez -, se precisamos de tudo o que pensamos que precisamos. E se não estamos confundindo, como de fato fazemos, desejo com necessidade. A necessidade tem limite, como a necessidade fisiológica. Mas o desejo não tem limites. Esse transbordar se torna hediondo, perverso. Quais são nossas verdadeiras necessidades? Precisamos de mais carros nas ruas?

Vivemos então uma cultura do sucesso?

A busca de reconhecimento e notoriedade do outro fecha esse ciclo de afeto. Então cria a necessidade de se mostrar ao outro, que vai dar o reconhecimento. E, nesse reconhecimento, você encontra a satisfação e “o sentido da vida”. Estamos em muito maus lençóis! Temos que refletir juntos sobre isso. E por que juntos? Simplesmente porque temos uma bagagem, uma biografia pessoal, uma percepção pessoal a respeito do que se passa a si mesmo e aos outros, que é absolutamente única.

Como seria uma relação ideal entre os chamados primeiro, segundo e terceiro setores?

O ideal seria dúvida seria os três setores trabalhando juntos, isso seria maravilhoso. Essa mobilização de consciência que começa a acontecer tem só 20 anos. Isso é muito significativo e promissor, sinal de uma maturação por parte da sociedade. As empresas..., algumas ainda não assumiram as responsabilidades, mas certas empresas estão fazendo um trabalho exemplar. Empresas brasileiras realmente estão fazendo trabalhos que se tornam referencias mundiais. Não pelos seus produtos, mas pelos seus procedimentos, seu senso de responsabilidade e participação social, pela gestão de problemas nas comunidades onde essas empresas estão instaladas. Muitas empresas brasileiras estão se tornando referências mundiais em ações pioneiras.

O Brasil está se tornando referência mundial em empreendorismo social?

Sem dúvida temos uma dinâmica, uma arquitetura social extremamente salutar, em movimento. Está crescendo, inovando, temos exemplos como o Movimento Axé, conhecido mundialmente. Aqui em São Paulo, temos a comunidade Monte Azul, umas das mais dinâmicas e criativas, mais juvenis, de renovação de gerações. Que começou 40 anos atrás, quando ninguém falava nisso. O Brasil tem uma diversidade única. Com toda a injustiça que possa haver, com todo o preconceito que possa haver, a diversidade do povo brasileiro é sua maior riqueza. E essa diversidade dá frutos extraordinários. Temos centenas de nações indígenas, negros de muitas nações africanas e brancos de todas as nações, o que dá um caldo muito suculento. Do qual podemos nos orgulhar sabiamente, pois ainda temos muito o que fazer: crianças continuam nas ruas, o narcotráfico ainda controla as favelas...

Você acredita nas previsões climáticas catastróficas?

Lamento que seja a via dolorosa a desencadeante da consciência. É duro ter que chegar a isso. Os estudos e movimentos pela paz começaram nos últimos 50 anos, depois de a humanidade viver as duas grandes guerras, as mais terríveis da história. Lester Brown, quem cunhou o conceito de sustentabilidade, fez isso 40 anos atrás. Há 30 anos defende-se a preservação do meio ambiente. Sem dúvida, vamos presenciar situações dolorosíssimas e os mais atingidos serão, mais uma vez, os países mais pobres. Hoje, os conflitos se dão entre os muros de um mesmo país. Estamos encontrando níveis de intolerância cada vez mais agudos, sem conseguirmos conviver nem com o vizinho. É um estado de irritabilidade, impaciência e inquietação, para o qual a reflexão e o posicionamento de quais são os meus valores, são questões essenciais hoje.

Você acredita que esteja realmente ocorrendo uma mudança de consciência, ou é só marketing, querendo faturar em cima do conceito de sustentabilidade?

Estamos sendo solicitados para promover cursos e palestras nas secretarias do governo, dentro do Banco do Brasil, na diretoria da Petrobrás. Jamais a Fundação palas Athena faria parte do repertório dos órgãos públicos e empresas... Mas hoje temos que qualificar a capacidade de relacionamento, temos que humanizar a competência e talento dos funcionários. Para fugir do automatismo profissional e funcional, perdendo a capacidade de criar, renovar e inovar. A reflexão está se tornando absolutamente necessária, não é mais luxo. Hoje, pode-se mudar a profissão, há um descolamento nas ideias... Hoje não somos o que fazemos a vida toda, podemos mudar de ocupações, nos recriarmos, nos reinventarmos a partir dos nossos questionamentos.

Você acredita na união entre a ciência e a religião?

Hoje estamos vendo a união da ciência com a religião de forma estraordinária. Uma nova geração de cientistas da Unifesp, da USP, está fazendo trabalhos extraordinários nesse novo caminho entre os dois territórios que se isolaram preconceituasamente. A religião classificando a ciência de desumana e cega. A ciência qualificando a religião de incompetente, fantasiosa, desarrazoada, com o pensamento primitivo. Mas as novas gerações de cientistas e religiosos está construindo uma apromixação entre esses dois territórios. Em 1987, o Dalai Lama chamou cientistas do mundo todo para uma rodada de diálogos entre os monges do seu mosteiro. Biólogos, neurocientistas, especialistas em inteligência artificial, todos trabalhando na fronteira entre a ciência e os estudos da consciência. Por exemplo, como as práticas meditativas impactam na consciência e no cérebro. Como impacta no cérebro a qualidade do padrão mental que você alimenta e nutre no seu cotidano. A Organização Mundial de Saúde foi muito hábil ao propor, em 2002, a inclusão do que se chama de medicinas integrativas ou complentares como coadjuvantes do sistema de medicina convencial ocidental. O SUS vai disponibilizar remédios fitoterápicos agora.

Quais os planos para 2010?

Em 2010 vamos dar continuidade a uma série de seminários gratuitos chamados “Valores que não têm preço”, que estavam destinados aos professores da rede pública de ensino. E, agora, vamos implementar um programa semelhante, o “Da Reta à Curva”, também gratuito, destinado a todos os funcionários públicos. Primeiro, resgatando qual o sentido do público, que aparentemente se diluiu para o de que o público é “de ninguém”. Mas, ao contrário, o público é de todos, quer dizer, é de cada um. Conseqüentemente, eu tenho que me responsabilizar pelo público também. Assim, faremos seminários mensais destinados a todos os funcionários públicos. A Palas Athena não tem mais como atender às demandas que recebemos constantemente. Assim, chegamos à conclusão de que o melhor que a Palas Athena podia fazer era um programa que atenda a todos os funcionários públicos, independentemente de sua área de atuação.

Vai lá: www.palasathena.org.br

 

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