por Heloisa Eterna
Tpm #180

Zezé Motta seduziu o país na década de 70 com sua Xica da Silva. Hoje, aos 75 anos, ela ressignifica sua relação com o corpo e o trabalho enquanto segue transformando as artes no palco para militância

Há 43 anos, Zezé Motta entrou sem querer no imaginário masculino. E de lá nunca mais saiu. Sob direção de Cacá Diegues, interpretou em 1976 Xica da Silva, a rainha negra que ganhou fama e fortuna ao conquistar o coração de um contratador de diamantes. Com o filme homônimo, experimentou as delícias e os inconvenientes que a fama traz. Queria ter o nome reconhecido, mas teimavam em chamá-la de Xica, a personagem com quem todos sonhavam ir para cama – e que despertaria muita expectativa em seus parceiros fora das telas.

De Xica ao momento atual, a trajetória de Zezé é cheia de histórias gostosas de ouvir. Para contá-las aqui, abriu uma garrafa de espumante em seu apartamento, no bairro carioca do Leme, o mesmo onde Clarice Lispector morou em seus últimos anos de vida. “Quando pessoas conhecidas chegam aqui em casa, vão ao meu quarto e falam: ‘Nossa, era aqui que a Clarice dormia?’. Costumo dizer: ‘Não, essa cama sempre foi minha’”, brinca.

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Da menina que saiu do interior fluminense para morar numa favela do Rio de Janeiro, onde ajudava a mãe a ganhar dinheiro costurando, talvez tenha sobrado apenas as gargalhadas escancaradas. No caminho, tudo mudou: da forma como entendia o olhar alheio à maneira como olhava para si mesma.

No fim dos anos 60, foi a Nova York para atuar em duas peças do grupo de Augusto Boal, um dos mais importantes dramaturgos brasileiros. Depois de ser questionada por militantes do movimento negro americano sobre o motivo de atuar com uma peruca Chanel, que escondia seu cabelo alisado, passou também a questionar seu processo de embraquecimento e a ter orgulho de suas origens. A atriz encontrou nas artes o melhor palco para sua militância e, na década de 80, criou um banco de dados listando os artistas negros brasileiros.

Metamorfose

Zezé sempre se permitiu experimentar. Filha de Oxum com Iansã, conheceu várias crenças religiosas e políticas. No passado, se alinhou com a esquerda, mas, na atual conjuntura política do país, não se identifica mais com a esquerda nem com a direita. Suas convicções, porém, são fortes e delas não abre mão. Ainda sonha com um Brasil mais justo, mas confessa cansaço.

Aos 75 anos, falou com tranquilidade, na Casa Tpm, em agosto passado, sobre envelhecimento e saiu amparada por seguranças, diante do assédio. “Procuro pensar mais nos meus projetos do que na minha morte.” E eles são vários, na música (lançou 14 discos até aqui), na TV (com série no streaming e novela na televisão aberta) e no cinema (Zezé foi homenageada neste ano pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro).

Em meio a essa rotina corrida, não abre mão de estar ao lado da mãe, que fez 95 anos no dia desta entrevista. ”Ela reclama que anda um pouco esquecidinha. Aí, falo: ‘Mamãe, eu também’”, diz, com uma gargalhada contagiante. Mas à Tpm Zezé mostra que está com as lembranças em dia e passa a limpo os capítulos mais importantes de sua história, que tem lugar cativo na memória das artes brasileiras.

Tpm. Apesar de ter as credenciais para isso, você não é uma carioca da gema…

Zezé Motta. Pois é, sou uma menina do interior. Nasci bem pertinho de São João da Barra, terra do conhaque, em Campos dos Goytacazes [RJ].

Terra dos Garotinhos [ex-governadores do Rio de Janeiro Anthony e Rosinha Garotinho]... Prefiro dizer que é terra dos índios [risos]. Só depois de adulta soube que Goytacazes era uma tribo indígena. Passei a vida inteira achando o nome estranho. Mas não tenho muitas lembranças de lá, porque vim para o Rio com apenas 3 anos.

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E por que sua família se mudou? Minha mãe precisava trabalhar. Meus pais foram morar no morro do Cantagalo, em Copacabana, e, pra não me deixar sozinha o dia inteiro, me levaram para morar com o irmão da minha mãe, no Leblon. O tio Sebastião era porteiro de um prédio fazia 30 anos. Era uma alma de uma generosidade ímpar. Se existir mesmo reencarnação, essa é uma pessoa que gostaria de reencontrar. Eu morava com quatro primos. Me sentia a Luluzinha na terra do Bolinha. Precisava de companhia e conheci uma moradora do prédio, dois anos mais nova que eu, de quem fiquei amiga. A reencontrei 20 anos mais tarde, ao fazer minha primeira peça profissional, Roda Viva. Era a Marieta Severo.

“Minha mãe acha que não estou rica porque divido tudo com todo mundo à minha volta”
Zezé Motta

Mais tarde você foi morar em um internato. Guarda algum trauma dessa separação? Fiquei no Asylo Espírita João Evangelista dos 6 aos 12 anos. Sou muito grata por tudo que vivi lá, mas, sim, me senti muito rejeitada. Não conseguia entender por que fui para o colégio interno, enquanto meu irmão ficou com a vovó, em Campos. Isso para a cabeça de uma criança é meio louco, né? Cheguei a pensar que era filha adotiva. Mas o internato foi muito importante. Aprendi a bordar, a fazer tricô, crochê, a cozinhar e, sobretudo, a viver em comunidade. Éramos 60 meninas. Conviver é difícil. Aprendi a fazer isso em harmonia e, mais importante, a ser solidária, afinal, você não pode passar a vida inteira olhando apenas para o próprio umbigo. Era para eu ter ficado lá até os 16 anos, mas meus pais melhoraram de vida, saíram do Cantagalo para morar num apartamento no Leblon e me levaram com eles. Minha mãe tinha montado um ateliê de costura no apartamento, que à noite virava residência.

E como a ideia de ser artista surgiu na vida da filha de uma costureira e um motorista? A ideia de ser cantora veio do meu pai, com toda certeza. Ele trabalhava como motorista durante o dia, para ganhar dinheiro, mas era músico erudito. Também dava aulas de violão e tocava música popular na noite para sobreviver.

Foi ele quem descobriu o seu talento? Sou do tempo do rádio. Minha mãe e eu passávamos o dia inteiro costurando e ouvindo a programação. Quando meu pai chegava em casa, eu falava: “Olha que música linda que a Dalva de Oliveira gravou”, e cantava para ele. Um dia, quando eu tinha uns 16 anos, a Ellen de Lima gravou uma muito difícil. Assim que terminei de cantar, meu pai perguntou: “Quantas vezes você ouviu essa música?”. Ela tinha acabado de lançar o LP, tinha escutado umas três vezes. Então, ele disse: “Você aprendeu a melodia, decorou a letra, que é enorme, e não desafinou. Tem que ser cantora”.

E sua mãe? Como reagiu? Era engraçado porque minha mãe torcia para que eu seguisse a profissão dela e, meu pai, a dele. Fiquei muito dividida, até porque ela era uma modista bem-sucedida e sempre me dizia que meu pai não tinha conseguido fazer carreira nem como músico erudito, nem como músico popular.

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Você chegou a trabalhar com outras coisas antes de entrar para o mundo das artes? Sim. Primeiro com a minha mãe. Depois, quando o ateliê dela deu uma baixa, fui trabalhar em uma indústria farmacêutica, a Moura Brasil, onde cuidava das pastilhas Cepacol. No meio disso tudo, eu voltei a estudar, porque até então só tinha cursado o primário. Minha cunhada Vera estudava à noite no colégio João 23, que ficava na Cruzada São Sebastião [conjunto habitacional no Leblon, Zona Sul do Rio]. Eles só aceitavam moradores, mas dei um jeitinho e fiz a inscrição com o endereço dela. Era uma escola ótima, que estimulava muito o envolvimento dos alunos com as artes e a política. Ali descobri meu dom, ganhei uma bolsa para o curso de teatro do Tablado e me percebi uma pessoa de esquerda.Como essa descoberta aconteceu? Fui muito influenciada por Dom Hélder Câmara, o bispo que construiu a Cruzada São Sebastião, com seus dez prédios de oito andares para ex-moradores da favela da Praia do Pinto. Estávamos no auge da ditadura e via esse cara que era recebido pelo papa e, ao mesmo tempo, proibido de dar entrevistas e obrigado a voltar para Recife por ser considerado comunista… Tinha alguma coisa errada com esse país. Hoje não sou nem de esquerda nem de direita, sou Brasil.

Como essa descoberta aconteceu? Fui muito influenciada por Dom Hélder Câmara, o bispo que construiu a Cruzada São Sebastião, com seus dez prédios de oito andares para ex-moradores da favela da Praia do Pinto. Estávamos no auge da ditadura e via esse cara que era recebido pelo papa e, ao mesmo tempo, proibido de dar entrevistas e obrigado a voltar para Recife por ser considerado comunista… Tinha alguma coisa errada com esse país. Hoje não sou nem de esquerda nem de direita, sou Brasil.

““Teve uma época em que minha mãe lavava o rosto com água de arroz, porque diziam que clareava a pele””
Zezé Motta

Na sua estreia como atriz na peça Roda Viva, de Chico Buarque, você teve uma experiência política violenta. A peça, dirigida pelo Zé Celso, fazia uma crítica forte à ditadura. A maioria adorava, mas o pessoal de direita reclamava, dizia que o espetáculo era pornográfico, contra a moral e os bons costumes. A censura não largava do nosso pé. Dois anos depois da estreia, em 1968, durante uma das apresentações, o teatro Ruth Escobar, em São Paulo, foi invadido por estudantes que faziam parte do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). A peça tinha acabado fazia alguns minutos, o público ainda saía, eu conversava com alguém, quando vi uns caras fortões com cassetetes nas mãos. Fui agredida, mas teve gente que levou a pior. É triste pensar nesse episódio e olhar para o presente. Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil passa por uma guinada à extrema direita, um retrocesso. A gente lutou tanto... Estamos vivendo um pesadelo. Mas não vou abandonar o barco agora.

Você se considera uma pessoa espiritualizada? Meu pai era espírita e o internato foi uma escolha natural. Mesmo sem participar diretamente das sessões espíritas, a gente sabia o que acontecia: que as pessoas tomavam passe, recebiam santo; que Mãe Áurea, fundadora do colégio, às vezes baixava na sessão e nos trazia recados. Fiquei mais espiritualizada a partir dali. Me identifico muito com essa filosofia, sem deixar de lado a umbanda e o candomblé, claro. Sou Oxum— Opará, filha de Oxum com Iansã. Mas tenho minhas dúvidas e interrogações. Fico pensando: “E aí, qual é o sentido da vida?”. Porque para cada um há um sentido, né? Para os católicos, ou você vai para o céu, ou vai para o inferno. Para os que são Testemunha de Jeová, ou você é Testemunha de Jeová, ou está do lado do inimigo. Essa é a minha dificuldade.

Sua mãe é Testemunha de Jeová, certo? Sim. Dos 12 aos 15 anos, frequentei a igreja de Jeová, fui até batizada. Mas, com o tempo e as reflexões, comecei a discordar de algumas coisas. E, quando posei nua para uma revista, fui definitivamente afastada.

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Quando foi isso? Logo depois de Xica da Silva [1976]. Posei para a revista Desfile. Não ganhei dinheiro, fiz para divulgar o filme. Compreendo que, se tinha no meu histórico ser Testemunha de Jeová, posar nua era uma contradição. Atualmente, falam para mim: “Jeová é generoso. Ainda está em tempo de você voltar”. Só que hoje tenho convicção de que não é esse o caminho que quero seguir.

Você teve muitos conflitos com a sua mãe por causa da religião? Tive, mas faz algum tempo que a gente não discute mais sobre isso. Mamãe está fazendo 95 anos. Não vou ficar batendo de frente com ela. Tivemos várias conversas bastante francas. Disse para ela: “Mamãe, não adianta eu voltar para congregação das Testemunhas de Jeová para te agradar, porque Jeová vai saber que eu estarei mentindo”.

Em um país dominado por brancos, numa sociedade que dissimuladamente afirma não ser preconceituosa, você conseguiu vencer inúmeras barreiras impostas pelo racismo. Como foi essa luta? Apesar de ter percebido cedo que alguma coisa estava errada, fui empurrando com a barriga. Me interessei pelo movimento negro, mas não me entreguei por inteiro de cara, porque precisava me dedicar à construção da minha carreira. Na adolescência, tive a fase de embranquecimento. Quando meus pais saíram do morro do Cantagalo e foram morar numa área nobre do Rio, amigas minhas que eu considerava brancas, mas que só tinham a pele mais clara, falavam: “Você tem um nariz chato, o cabelo ruim, a bunda grande”. Então, passei a alisar o cabelo, queria operar o nariz, o bumbum. Teve uma época em que minha mãe lavava o rosto com água de arroz, porque diziam que clareava a pele. Uma prima botava limão no olho para deixar mais branca uma área do olho que não era tão branca. Uma tortura!

““Me lembro de transarem comigo e suspirarem: ‘Ah... Quando Xica da Silva se torna realidade...’””
Zezé Motta

Teve ainda a fase da peruca Chanel… Eu já alisava o cabelo, mas pensava: “Não é isso que eu quero. Quero ter cabelo de branco”. Então passei a usar uma peruca Chanel, bem lisa. Até que, em meados de 1969, essa história mudou para sempre. Fui fazer um circuito universitário com o grupo do Boal [Augusto Boal (1931-2009) é um dos mais importantes dramaturgos brasileiros] nos Estados Unidos, México e Peru. Encenávamos Arena contra Zumbi e Arena contra Bolívar. O Lima Duarte interpretava Zumbi dos Palmares. Mas o Boal tinha um sistema que ele chamava de coringa, em que em algum momento do espetáculo cada um de nós fazia o Zumbi. Na encenação que fizemos no Harlem, lá fui eu levantar o braço com meu Zumbi de peruca Chanel.

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E por que desistiu da peruca? Quando acabou a apresentação, chamaram o Boal e falaram: “O que essa mulher alienada está fazendo no grupo?”. Ele se sentiu no dever de me contar: “O pessoal do Harlem ficou chocado com o seu embranquecimento”. Ninguém tem que policiar ninguém. No meu caso, era mesmo um processo de embranquecimento, que comecei pelo cabelo.

Quando deu o estalo para a questão identitária, da negritude? No Harlem, vi aqueles negros maravilhosos, com cabelos black power tão bem tratados que chegavam a brilhar. Me perguntava: “Por que não acho os homens negros no Brasil lindos como estou achando esses daqui?”. Não achava os negros do meu país bonitos porque aqui me diziam que eu era feia e eu acreditava. Quando percebi isso, entrei para o movimento negro na primeira oportunidade que tive. Passei a frequentar as reuniões do 
Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN). Anotava tudo, queria fazer as coisas, mas não era uma ativista completa.

E como foi se transformando em uma? Com o sucesso de Xica da Silva, comecei a ser solicitada para muitas entrevistas. Me perguntavam como era ter protagonizado um filme sendo uma mulher negra, qual era a importância de ter estourado no mundo... Eu ficava frustrada em toda entrevista que dava, pois tinha o sentimento da mulher negra, mas não tinha o discurso articulado. Um dia, lendo jornal, descobri um curso de cultura negra no Parque Lage, com Lélia Gonzalez, antropóloga, socióloga, 
romancista, ativista e, por acaso, negra. Na aula inaugural, ela disse: “Sei por que vocês estão aqui, mas quero deixar claro que não temos tempo para lamúrias. O que nós temos que fazer é arregaçar as mangas e virar esse jogo”. E nós não éramos apenas jovens, não éramos apenas negros.

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E mais tarde, em 1984, você criou um banco de dados listando os artistas negros… Criei, com outras pessoas do movimento negro, o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan), para dizer quem somos, quantos somos e onde estamos. O banco tem mais de 500 atores negros. Já conseguimos, por exemplo, ter um um curso de teatro nas comunidades carentes, patrocinado pela dona Ruth Cardoso [antropóloga, 1930-2008], de quem me aproximei quando fui conselheira de direitos humanos, durante o primeiro governo do Fernando Henrique [1995-1998]. Na época, uma amiga promovia um curso de cabeleireira para comunidades carentes e fui madrinha da primeira turma. Percebi a transformação que iniciativas como essa geram no modo de vestir e de falar. Nós temos a autoestima no subsolo.

““Tive três abortos espontâneos. Acabou que nunca tive filhos naturais. Tenho, entretanto, cinco filhas de coração””
Zezé Motta

Não acha que essa questão da autoestima mudou de lá para cá? Não está resolvida, mas, comparado com 50 anos atrás, melhorou muito. Quando fiz o teste para Xica da Silva, saiu uma nota assim no jornal: “Quem passou no teste foi uma negra feia, porém exuberante”.

Xica da Silva catapultou você não só para a fama, mas para o imaginário masculino. Virei símbolo sexual. E tive problemas com isso, porque todo mundo queria transar com a Xica. Me lembro de transarem comigo e suspirarem dizendo assim: “Ah... Quando o filme se torna realidade...”. Parece mentira, mas ouvi isso de um cineasta. Em outra ocasião, quase fui estuprada por um taxista. Ele olhou pelo retrovisor e disse: “É a Xica”. Quando vi, já estava enfiando as mãos nas minhas pernas. Eu estava de minissaia. Entrei em pânico. Ele começou a furar todos os sinais. Pensei: “Tô ferrada, vou ser sequestrada”. Quase saltei do carro em movimento. Foi tudo muito rápido na minha cabeça. Minha sorte é que o sinal fechou, o motorista teve que parar porque tinha um guarda e eu saltei. Nem paguei o táxi. Brinco que ele já tinha passado a mão nas minhas pernas, então a corrida já estava paga.

Conseguiu se libertar dessa Xica? Quando as pessoas começaram a me chamar de 
Xica na rua, fiquei bem incomodada. Já tinha uns oito anos de carreira no teatro, tinha feito um filme, novelas… Queria que meu nome artístico, dado pela Marília Pêra [antes, ela usava seu nome de batismo, Maria José Motta], emplacasse, mas as pessoas só me chamavam pelo nome da personagem. Mais tarde, percebi que a Xica era minha madrinha, que não tinha que reclamar da vida, não. Estava tudo certo.

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Cacá Diegues disse, certa vez, que você é o tipo de atriz que estava só à espera de um grande papel para revelar o gênio que é. Não chega a ser irônico pensar que muitas vezes, principalmente na TV, foi chamada para papéis considerados secundários, como os de empregada doméstica? Que Brasil é esse, não é mesmo? Bem, o Cacá foi uma coisa mágica na minha vida. Sabia que ele estava fazendo teste, mas não tive coragem de me oferecer. E ele não estava encontrando a atriz para fazer a Xica. Se não encontrasse, como disse em sua biografia, ele não faria o filme. Um dia, Nelson Motta lembrou ao Cacá: “E aquela atriz de Godspell?” [musical que ela encenou em 1974]. Fiz o teste com uma cena bem delicada, quando a Xica é proibida de entrar na igreja. [Naquela época] Até a quarta geração, quem tivesse 
negro no sangue não podia entrar na igreja dos brancos. Tinha dificuldade para controlar minha agressividade. Tenho meu lado Oxum, que é doce, mas Iansã é aquela que vira a mesa. Oxum prevalece, sou muito conciliadora. Mas Iansã, de seis em seis meses, vira a mesa. E o Cacá percebeu isso…

Você já disse que quando ama é quase uma gueixa. Continua assim? Não dá mais para ser gueixa, porque já não admito ser submissa. Mas durante toda a minha juventude foi meio por aí. Hoje sou uma mulher independente e é muito difícil, por mais que esteja apaixonada, o cara chegar e dizer o que tenho que fazer. Só faço o que quero, o que tenho vontade. É claro que cedo, porque se você não ceder, não fica com ninguém, mas me coloco em primeiro lugar.

Como foi o seu romance com o Antônio Pitanga? Ele foi mesmo uma grande paixão? A gente se conheceu quando eu fazia Roda Viva. Ele é uma pessoa muito especial e sempre foi muito cobiçado. 
Eu me sentia um patinho feio na época e, de repente, aquele cara que todo mundo queria estava interessado em mim. Eu era virgem até os 21 anos, e o Pitanga nunca forçou a barra. Ele ia me buscar no teatro, a gente pegava um bonde, namorava no portão da minha casa – olha que coisa romântica... Mas aí, quando pintou um trabalho para ele em São Paulo, me disse: “Você é uma menina legal, muito bonita, mas não tem que ficar presa a mim”. Um ano depois, ainda virgem, nos reencontramos e tivemos um caso de amor maravilhoso. Hoje, somos superamigos, quase irmãos.

Com relação às suas expectativas sexuais, o que mudou dos 30 para os 70 anos? Sempre fui uma mulher fogosa, mas com a idade a gente dá uma acalmada. Faço reposição hormonal, que é o que mantém a chama acesa. Teve uma época que foi complicada, porque os remédios começaram a mexer com o meu corpo. Interrompi e deu aquela brochadinha básica. Agora faço tratamento com hormônio natural à base de inhame mexicano e amora. Mas também é preciso trabalhar a cabeça, porque existe uma 
diferença entre 30 e 75, né? Você tem que se adaptar a essa nova realidade, senão fica competindo de maneira desigual. Mas não sofro muito com isso. Tenho absoluta consciência de que sou uma sedutora.

Numa entrevista recente, você teria dito que está na pista, e que nessa pista caberia uma mulher. Quem seria a mulher ideal? Falei que estava solteira. Daí a entrevistadora afirmou: “Então, você está na pista”. Disse a ela que tinha netos, não gostaria que meus netos lessem isso. Até porque não é assim que me sinto, mas a repórter argumentou: “Imagina, você é uma mulher moderna, ninguém vai achar isso estranho”. Tudo bem. Sobre ficar com mulheres, falei isso há uns 200 anos. Nos anos 1970, tentaram fazer com que eu falasse contra a relação de pessoas do mesmo gênero. Por uma questão de militância, fiz absoluta questão de não dar um depoimento discriminando. Disse: “Se um dia me apaixonar por uma mulher, vou me casar com ela”. Mas, por acaso, minha preferência é homem.

Mas você está se relacionando com alguém? Estou envolvida com uma pessoa.

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Você não tem filhos. Já quis ser mãe? Era meu segundo sonho, depois de ser atriz. Tive três abortos espontâneos e resolvi investigar a causa. Descobri que, para que o problema não se repetisse, teria que ficar os três primeiros meses da gestação de cama. Só que era uma época de muito trabalho e eu não podia me dar esse luxo. Acabou que nunca tive filhos naturais. Tenho, entretanto, cinco filhas de coração. Não as adotei legalmente, mas cada uma delas representa uma história de amor.

A solidão preocupa você? Sinto muito medo. Mas não tenho tido tempo para pensar nisso. Trabalho tanto, que, quando tenho um tempinho, corro para dar atenção para a minha família, principalmente para a minha mãe.

Nos últimos anos você teve que lidar com a morte de duas amigas queridas: Marília Pêra e Elke Maravilha. Quando pensa na sua finitude, o que se passa na sua cabeça? 
Uma das dificuldades que tenho na vida é com as perdas, uma sensação de impotência total. Acabei de perder também uma pessoa da família. Procuro pensar mais nos meus projetos do que na minha morte, mas tem uma música que me faz pensar nesse assunto, sim. Bachianas nº 5, do Villa Lobos, com letra do jornalista e escritor David Nasser, na voz da Elizeth Cardozo. [Nesse momento, Zezé presenteia esta repórter cantando à capela.] Sempre choro quando canto essa canção.

Você experimentou o seu talento no cinema, no teatro, na música, na televisão. Se tivesse que fazer uma “escolha de Sofia”, onde é que bate mais forte? Que pergunta difícil! Fico em estado de graça quando estou representando e quando estou cantando. Agora, confesso que me sinto mais segura cantando. Talvez seja porque representar é um desafio constante, cada personagem é uma personagem.

Acha o mercado cruel por impor a idade como um fator limitador para determinados convites? De um modo geral, sim, mas os atores são privilegiados. Quando criança, interpretamos uma criança, depois a adolescente, a mãe, a avó. Sempre tem algum papel. Já em algumas profissões, a partir dos 60 anos as pessoas são tratadas como incapazes.

Qual é o seu legado? Sem nenhuma modéstia, me considero uma pessoa generosa e não abro mão disso. Minha mãe acha que não estou rica porque divido tudo que tenho com todo mundo à minha volta, mas não me arrependo de nada. É assim que sou feliz.  

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