A pele que habito

por Natacha Cortêz
Tpm #161

A atriz Vanessa Giacomo, a atleta paralímpica Cláudia Santos, a blogueira Jéssica Ipólito e as cantoras Xênia e Tiê contam da relação com seus corpos e de como suas histórias foram moldadas por eles

O corpo carrega história. É com ele que nos colocamos no mundo. Suas marcas, cores e dores falam por si. Somos aquilo que os outros veem ou o que escolhemos para nós? Cinco depoimentos mostram que o corpo é a nossa casa, um espaço imperfeito, e, por isso mesmo, único.

Mãe possível
Vanessa Giacomo, 32 anos, atriz

“Tive meu primeiro filho com 24 anos e em plena ascensão profissional – tinha acabado de filmar a novela Cabocla [2004]. Aos 31, já tinha tido os outros dois. Carreguei esta vontade a vida toda: desde criança pensava em ser mãe e queria três filhos.

Raul, o primogênito, não foi planejado, mesmo assim foi muito bem-vindo. Virei um zumbi por causa dos horários de amamentar, me sentia morta de tão cansada. Lembro que meu maior medo era que ele caísse dos meus braços enquanto mamava, quase dormindo. Ele ainda era bebê quando fui para Londres filmar Jean Charles [2009, de Henrique Goldman], um dos filmes mais importantes da minha carreira. Ele foi junto. Andava com meu filho para todo canto, não queria ficar longe, nem me sentir culpada por estar longe. Em alguns momentos, minha mãe ficava com ele para eu poder filmar. Logo depois resolvemos ter outro filho: Moisés seria um companheiro para o Raul. E Raul para o Moisés. A culpa de deixá--los sozinhos foi embora.

Atrizes, como qualquer mulher moderna, costumam adiar a gravidez para um momento em que a carreira já esteja mais estável. Eu penso diferente: depois dos 30, teria medo, estaria arriscando muito mais. Apostava que me recuperaria melhor – do impacto sobre o corpo e a carreira – se fosse mãe jovem. A família é uma prioridade para mim. Nem passou pela minha cabeça que eu deveria poupar meu corpo ou preservar minha juventude em nome da profissão de atriz.

A cada vez que engravidava, pensava simplesmente: ‘Agora vou viver a gestação, depois resolvo o corpo’. E são períodos difíceis, cansativos. A amamentação foi uma questão muito complicada para mim. A Maria não queria pegar o peito. O Raul teve um impedimento médico e tive que interromper a amamentação. O Moisés foi o que mamou mais. Tudo isso em meio à patrulha que acompanha as mães de recém-nascidos. As pessoas querem opinar em tudo, começam a te alertar e contar histórias mirabolantes sobre bebês. É muito fácil apontar dedos, recriminar modos. Um filho é uma escolha, ser mãe também. Ela não tem que vir de uma pressão social. Fui e sou apenas a mãe que posso ser.

Até hoje tento adequar minha vida profissional à pessoal, e não o contrário. Filmo cerca de 17 cenas por dia em A regra do jogo, de segunda a sábado. É puxado. Decoro meus textos no caos. Aprendi a estudar no barulho, com criança correndo pela casa, a TV ligada. Criei uma dinâmica própria que é quase uma meditação para lidar com a situação. Afinal, ter três filhos foi uma escolha minha.”

 

Não falta nada
Cláudia Santos, 38 anos, atleta

“Fui atropelada enquanto esperava no canteiro central para atravessar a rodovia Raposo Tavares, em São Paulo, em 2000. Tinha acabado de sair do trabalho e a passarela mais próxima da empresa em que dava expediente como telefonista ficava a 1 quilômetro dali. Eu atravessava a rodovia todos os dias. Minha perna direita foi amputada no exato momento em que o carro passou por mim e lançada pra longe. O motorista não prestou socorro.

Durante o tempo em que esperei o resgate, fiquei acordada. A dor física é tanta que cala qualquer pensamento racional. Eu tinha certeza de que ia morrer. E pedia a Deus que não; ansiava para ficar viva. Entrei em coma assim que dei entrada no hospital, e assim fiquei por 30 dias. Ao acordar, ainda estava em choque: era como se o acidente tivesse acabado de acontecer.

A recuperação foi lenta, mas estava na luta, e grata por estar viva: um ano em cima da cama, sete meses usando cadeira de rodas, 13 cirurgias [entre plásticas, enxertos e outras para reabilitação]. Além da perna, perdi o quadril direito. Por mais grave que a situação se mostrasse, tinhas perspectivas, minha perna esquerda funcionava normalmente, meu corpo se recuperava, eu queria recuperar minha liberdade.

Não aceitava a ideia de ficar na cadeira de rodas e comecei a nadar para ajudar na reabilitação. Nunca havia feito nenhum tipo de esporte antes do acidente, então a natação era uma descoberta para mim. Em 2006, por insistência de um professor, conheci o remo. Um ano depois, já era atleta do Clube Pinheiros, participei do meu primeiro campeonato mundial, em Munique, na Alemanha, e fui a campeã. Não tinha nem seis meses de treino! De lá para cá, o esporte está mais competitivo. Conquistei mais duas medalhas, uma de prata e uma de bronze em Mundiais, além de uma boa colocação em uma Copa do Mundo.

Em 2010, tive que tirar o útero. Por causa do esforço do esporte, ele mudou de posição. Foi doído, sempre quis ser mãe, era um assunto que já conversava com meu marido [com quem se casou há dois anos]. Decidi olhar para o lado bom: eu posso e quero adotar um filho.

Uma fatalidade brutal mudou minha vida. Foi este duro caminho que por fim revelou uma pessoa que eu nunca seria sem passar por um atropelamento. Não troco este corpo pelo corpo de antes do acidente. Me sinto mais ‘no controle’ hoje. Veja onde estou: sou uma atleta a caminho de uma paralimpíada no meu país. Estou à flor da pele.”

 

Chega de histórias tristes
Xênia França, 27 anos, cantora

“Sou filha única de uma mulher preta que estudou, me criou e me ensinou a ter autoestima. Nunca me faltou nada, e hoje vivo do que mais gosto de fazer na vida, que é cantar. Sei que sou exceção, não me encaixo na maioria dos estereótipos que segregam. Nem por isso estou livre dos ecos dolorosos de ser mulher, preta e nordestina nesta sociedade racista e misógina em que vivemos.

Cresci querendo ser a apresentadora de TV Glória Maria. Toda vez que ela aparecia na tela, eu ficava fascinada. Já ao programa da Xuxa, assistia com o cabelo coberto com uma toalha de banho. Meu cabelo era duro e crescia pra cima: esse foi um jeito que encontrei de não me sentir excluída. Faltavam crianças negras no programa. E é incontestável que as crianças pretas, sobretudo as meninas, crescem sem se ver representadas, e isso afeta diretamente sua construção da identidade.

As coisas mudaram pouco desde então. É fato, a mulher preta ainda é ‘invisível’ e sua imagem, carregada de estereótipos. Nossos corpos são hipersexualizados. Sempre noto olhares curiosos de gente que ainda acha um absurdo minha liberdade, minha beleza, meu direito de estar em paz comigo mesma. Outro dia um senhor ficou espantado quando eu e umas amigas estávamos em um bar. Veio em minha direção e tentou me tocar. Como quem quisesse ter certeza de que eu era de verdade. Me senti uma atração de circo. Como se qualquer um tivesse o direito de me tocar, de mexer no meu cabelo. Meu corpo não é público. 

O racismo é instucionalizado. Nós, mulheres pretas, ainda somos maioria nos subempregos, recebemos os menores salários, somos silenciadas, assediadas e subjugadas. 

Há 12 anos vivo em São Paulo e essa mudança foi crucial para a transformação e afirmação que me arrebatou nos últimos tempos. Quando cheguei aqui, aos 18 anos, era a única negra de uma agência de modelos. Mesmo sendo a única, trabalhava pouco. Não entendia isso, acreditava piamente em mim. Evoluí muito e me sinto cada vez mais maravilhosa, porque acredito que ter sido educada pra conhecer a minha história virou uma arma potente contra qualquer tipo de segregação.

Com os valores que trouxe da Bahia às minhas vivências na metrópole paulistana e tenho acessado um fundamento ancestral e transcendental que busco expressar tanto na minha vida quanto na minha arte. Meu desejo é fazer do meu trabalho também uma ferramenta de promoção e valorização da cultura preta. Nesse ponto me posiciono e reafirmo todos os aspectos positivos que tenho para exaltar a figura da mulher preta.

Não sou a única. Stephanie Ribeiro, Tássia Reis, Loo Nascimento, Samira Carvalho, Indira Nascimento, Djamila Ribeiro, Maria Clara, Luma Nascimento, Ellen Oléria, Larissa Luz e Diane Lima são mulheres grandiosas, talentosas e conscientes que usam seu trabalho e sua imagem como instrumento de valorização da imagem da mulher preta brasileira.

Quero transcender todo esse histórico negativo. Quero saber do futuro. Chega de histórias tristes.”

 

Corpo político
Jéssica Ipólito, 24 anos, blogueira

“A pele que habito não passa despercebida em lugar algum. De tão única, chega a ser espantosa aos olhos de transeuntes mal-educados. Negra, lésbica, gorda, ensino médio completo, 24 anos, rio-pretense, autora do blog Gorda e sapatão, filha da faxineira da escola pública, sem CLT. Era pra ser Joaquim, em homenagem ao meu avô, mas veio menina e então é Jéssica [por causa do filme O resgate de Jéssica, de 1989]. Essa pele que carrega marcas, desejos, sonhos, também é política e permanece no anseio de mudanças coletivas verdadeiras.

Ser gorda numa sociedade cujo padrão de beleza é o magro traz a certeza de que vão me deixar à parte de muita coisa, como de me sentir confortável em um assento de ônibus, ou de encontrar uma peça de roupa que me sirva. Ao meu cabelo são lançados olhares de repulsa: o racismo se apresenta de todas as formas a fim de menosprezá-lo. Risos, dedos apontados, pessoas que se afastam quando me aproximo, chacota e hostilidade gratuita. Eu insisto em exibir meu crespo por aí do jeito que eu bem entender. A maioria das vezes, solto, em outros momentos, envolto em um turbante, dando força a toda ancestralidade que ele carrega.

Longe de casa há cinco anos, entendo que a melhor coisa que fiz foi ter largado o a universidade por um amor. Me mudei para São Paulo e passei a compreender o que significava sair de mãos dadas com uma mulher na rua, mas não só isso: compreendi a mim mesma. Foi assustador e ao mesmo tempo delicioso. Na rua, quando estamos juntas, os olhares e comentários também marcam presença, num repúdio organizado e bem orquestrado pela norma heterossexual que julga – e mata – quem se ‘desvia’.

Até na família, sou uma espécie de pária, que cresce à parte. Aprendi a lidar da melhor forma possível com familiares que ainda mantém o preconceito velado sobre mim. Aprendi que minhas escolhas vistas como erradas ou desagradáveis serão contestadas até o fim. Talvez por isso tenha feito a escolha de um caminho inverso: faço da minha vida um porto seguro com pessoas que me querem bem, e nós nos enlaçamos e nos fortalecemos como numa nova família.

A pele que habito é composta de amor, empatia, força, coragem. Elementos que se construíram em mim por sobrevivência. E sigo me mantendo, parafraseando Bethânia, como uma haste fina que qualquer brisa verga mas que nenhuma espada corta.”

 

Cara a cara
Tiê, 36 anos, cantora

“Tenho vitiligo. As primeiras manchas apareceram aos 11 anos e o negócio começou a ficar sério quando tinha 15, no Japão, onde trabalhava como modelo. Por ser algo visual, todo mundo comentava (na verdade ainda comentam), de desconhecidos a familiares. Algumas pessoas ficam com nojo, outras ficam curiosas e querem tocar, outras acham que é transmissível. Rola muito preconceito.

Dos 15 aos 24, sofri muito. Parei de modelar porque não conseguia mais trabalho. Parei de tomar sol no rosto. Ia à praia com a cara inteira coberta de pomada. Fiz todo tipo de tratamento possível pra combater a doença.

O vitiligo foi a primeira manifestação de uma doença autoimune. Com o tempo, comecei a entendê-lo; queria ouvir o que meu corpo estava tentando falar. Comecei a chamar as manchas de ‘nemteligo’ e interrompi os tratamentos. Respirei. Passei a usar apenas o protetor solar – faço até hoje. Mas o vitiligo era só um dos alertas que meu corpo me enviaria.

Aos 26, estava em turnê com o Toquinho no Chile e tive uma febre muito forte. Voltei pra São Paulo e comecei a definhar. Ninguém sabia o que eu tinha. Os médicos disseram que eu ia morrer. Foram 40 dias muito doente até passar por uma cirurgia no pulmão para a retirada de um tumor infeccioso benigno. Recebi um novo diagnóstico: lúpus, uma das piores doenças autoimunes que existem. O corpo atacando o próprio corpo. Tratei com muito corticoide e, quando já estava melhor, fui procurar respostas.

Doenças autoimunes são intimamente ligadas à não aceitação de nós mesmos. Aos poucos, fui examinando passagens difíceis da minha vida, que haviam me tornado uma pessoa exigente, desconfiada, dura: uma situação de assédio ainda criança é uma delas.   

O vitiligo e o lúpus me ensinaram demais. Perdi certa ingenuidade, sinto que de fato me conheço. Me salvei de fato quando comecei a compor, quando enfim passei a contar minhas histórias e fui gostando de mim. Parece até engraçado, mas essas doenças me aproximaram mais de mim mesma. Fizeram com que eu olhasse dentro.”

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