Uma casa é quem vive nela

por Fernando Luna
Tpm #161

Uma casa – tema desta edição da Tpm – é muito mais que tijolo, cimento, vidro, madeira e metal. Uma casa é quem vive nela

Quando você for convidada pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, vai lá. Mas depois não deixa de ir conhecer a Casa do Rio Vermelho.

Fica a poucos quilômetros dali do Pelourinho e é um dos melhores exemplos do que deveria ser uma casa: um refúgio e, ao mesmo tempo, um lugar de encontro. Foi nela que o autor do irresistível Tenda dos milagres e a escritora Zélia Gattai viveram por mais de 40 anos.

Ainda na planta, a residência já dava um jeito de reunir os compadres, como Zélia anotou em A Casa do Rio Vermelho: “Jorge chamou os amigos para conosco estudarem o projeto feito pelo jovem Gilberbet [Chaves]. As grades ficam por minha conta, disse Mário [Cravo]; eu me encarrego de pintar os azulejos, disse Carybé; eu pinto as portas e os basculantes de vidro, falou Jenner”.

Deu certo. Subiu uma construção espaçosa o bastante para abrigar o casal e seus filhos, sem ser grande demais. Arejada como pede o clima soteropolitano e cercada por um jardim que parece verdejar naturalmente – ao contrário daqueles em que se enxerga a mão do paisagista em cada buxinho podado.

Em vez de cão de guarda, quem protege a casa é uma imagem de Exu, sempre cercada de oferendas como aguardente e dendê. Não é só enfeite, não: o orixá foi devidamente assentado numa cerimônia conduzida por Mãe Senhora, legendária ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.

(O comunista Jorge Amado dizia que seu materialismo não o limitava. Viveu o candomblé intensamente, numa dialética resumida nos primeiros versos da canção “Milagres do povo”, que Caetano Veloso compôs depois de ouvir do escritor: “Quem é ateu e viu milagres como eu...”.)

Há pouco mais de um ano, a casa foi totalmente reformada e aberta à visitação. A curadoria de Gringo Cardia conseguiu a façanha de transformar um espaço doméstico em memorial público, sem abrir mão do caráter familiar, íntimo, do lugar.

Assim, na cozinha estão réplicas dos pratos que costumavam ser preparados ali, com direito a um vídeo da quituteira Dadá ensinando a preparar moquecas, peixadas e outros clássicos baianos. Na sala, a máquina de escrever de onde saíram Dona Flor, Tieta e Quincas Berro d’Água continua em cima da mesa, como se o antigo dono fosse retomar os trabalhos a qualquer momento. No quintal, entre jaqueiras e mangueiras, dois pavilhões de madeira guardam filmes sobre o candomblé e uma roda de conversa virtual, em que amigos e estudiosos falam do homem e de sua obra.

Nas paredes do quarto de hóspedes são projetadas as fotos que Zélia fazia das visitas: Dorival Caymmi, Tom Jobim, Mãe Menininha do Gantois, Pablo Neruda, Oscar Niemeyer, João Ubaldo Ribeiro, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir... Mas ali quem tinha mais moral era o popularíssimo humorista baiano Zé Trindade. Foi só quando viu o gaiato por lá que a arrumadeira se convenceu: “Bem que eu achava que seu Jorge era importante mesmo!”.

Todas essas histórias é que fazem da rua Alagoinhas, 33, um endereço especial. Uma casa – tema desta edição da Tpm – é muito mais que tijolo, cimento, vidro, madeira e metal. Uma casa é quem vive nela. 

Créditos

Acervo Zélia Gattai / Fundação Casa de Jorge Amado

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