Substantivo próprio

por Maria Ribeiro
Tpm #115

Coragem vem do latim cuor agire, agir com o coração. Quer definição mais linda?

 

Substantivo próprio, sílaba tônica, advérbio de lugar, mesóclise. Se o mecânico do meu carro usasse um desses termos em meio a outros como ventoinha do carburador, eu jamais saberia se estava falando português ou se usava aquela estranha língua machista que nos humilha a cada bateria descarregada. A gramática é a necropsia da palavra.

Não ouvia nada disso havia muito tempo, mas fui forçada a um flashback por conta de uma prova que meu filho fez para mudar de escola. Mãe é mãe. Mas como explicar a um garoto de 8 anos que estuda em uma escola construtivista que para o novo colégio é importantíssimo saber a classificação silábica das palavras?

Co-ra-gem. Sim, filho, coragem é uma trissílaba. Não parece, mas é. Talvez, filho, se sua mãe fosse fera em sílaba tônica, fôssemos todos mais inteligentes e importantes. Não consegui convencê-lo, nem a mim, mas estudamos como funcionários aplicados. Corta.

Escrevo esta coluna vestida de hebreia dentro de um estúdio gelado, respirando areia e fumaça para parecer que estamos no deserto e diante do palácio do rei Davi. Estamos mil anos antes de Cristo, numa novela da emissora em que trabalho. Nunca pensei em ser atriz e confesso que ainda hoje não sei se é esse o meu futuro, mas sempre soube que não seria um ser das exatas. E só de pensar que um dia voltarei a encarar uma fração sinto um arrepio na espinha. Raiz quadrada, então, me dava tanto medo quanto o que sinto hoje ao passar na imigração americana.

Lembro pouco de tudo o que aprendi no colégio. Mas guardo firme na memória as pessoas que conheci. E acho que a transmissão de valores importa mais do que a colocação no Enem.
Coragem é mais do que um substantivo comum e trissílabo. Coragem vem do latim cuor agire, agir com o coração. Quer definição mais linda para valente do que ser movido pelos sentimentos? Mas origem etimológica não cai no Enem. Não é importante. Embora, pra mim, a informação acima tenha sido de grande serventia num momento difícil em que achava que ser forte era usar somente a cabeça.

Fundamental para a vida é decorar tabela periódica! Quantas vezes estava angustiada e lembrei que hidrogênio só tem um próton, o que me deu imensa paz e conforto! Sem falar na Revolta dos Farrapos, que muito me inspirou em conflitos domésticos com meu digníssimo esposo. E os diferentes tipos de solo? Mais útil que chaveiro suíço.

Pra não ir muito longe: por que o currículo escolar brasileiro não inclui espanhol? A gente junta aquela graninha pra ir a Buenos Aires, que é pertinho, anda pelas ruas no frio como se estivesse em Paris e na hora de pedir um churros não sabe nem por onde começar...

Palavras adultas

É melhor parar por aqui, pois essa lista é mais extensa do que os livros não lidos da minha estante. Educação moral e cívica, religião, geometria, química, mecânica, biologia, nada disso sobreviveu à minha vida adulta, minha cultura de ensino fundamental é tão parca quanto meus conhecimentos sobre drinks.

Mas não me arrisco aqui a confrontar ninguém. O ministro da Educação deve saber o que faz, e é claro que devo usar muito mais do que imagino tudo o que aprendi sobre reprodução assexuada. Mas me doeu ser a primeira a ensinar ao meu pequeno que as palavras não são somente palavras, que elas têm várias obrigações a cumprir. São adultas, coitadas.

Como nós, que aos poucos vamos aceitando que o tempo passa sem misericórdia e que somos fracos e vulneráveis.

Vulneráveis: polissílaba. Adjetivo. À mercê.


Maria Ribeiro, 36 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite, em 2007, e em Tropa de elite 2, em 2010. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

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