Rosa e casca-grossa

por Diogo Rodriguez

Kyra Gracie herdou o talento da família mas tratou de dar um toque cor-de-rosa ao jiu-jitsu

Como todas as artes marciais, o jiu-jitsu é baseado em tradições que não mudam muito com o tempo. Mas elas de fato se adaptam, nem que sejam um pouco. Por exemplo, o clã Gracie, responsável por trazer a luta para o Brasil modificou alguns aspectos da luta originária do Japão e acabou por criar o que se chama de jiu-jitsu brasileiro, uma adaptação da tradição oriental.

Kyra, 25, faixa-preta e integrante da família Gracie está tratando de dar sua interpretação do que é lutar jiu-jitsu. Começou a competir aos 16 anos, mesmo sob a desaprovação inicial de seus tios e primos, que achavam estranho uma mulher se dedicar tanto à luta. Teve de vencer também a desconfiança dos colegas de escola. Vaidosa, foge do estereótipo da mulher lutadora rasgada e masculina. Faz questão de pintar as unhas antes de competir, gosta de ir ao salão de beleza e treina com um quimono cor-de-rosa, feito sob encomenda por seu patrocinador.

No dia 6 de julho, sagrou-se campeã mundial pela quarta vez, confirmando a trajetória familiar vitoriosa e o esforço de quem segue uma rotina de alimentação regrada e treinos intensos. De volta ao Brasil, conversou com a Tpm em São Paulo e falou sobre o machismo no jiu-jitsu e o apuro que seu namorado passou para ser aprovado pela família de lutadores.

Você começou a lutar por influência da família?
Como todo Gracie, comecei a treinar desde pequena. Sempre assisti meus tios, minha família. Mas quando comecei a levar a sério, eles não gostaram muito. Tive que ir um pouco contra a família. Hoje em dia, eles dão o maior apoio.

O que eles diziam?
Acho que eram muito ciumentos. Não queriam que a primeira sobrinha fosse lutadora de jiu-jitsu. Falaram para eu largar no começo, quando eu tinha 16 anos, mas eu continuei e eles viram que era isso o que eu queria.

Seus amigos e amigas estranharam?
Sempre foi um pouco estranho. Na escola, por exemplo, não era normal, todo mundo fazia balé, saía para as festinhas, eu era um E.T. Com 12 anos tinha um pouco de preconceito. Mais velha, as pessoas entendiam.

A vida de competidora é diferente das outras meninas da escola?
Muito, porque desde pequena eu lutava fora do Brasil. Estava sempre competindo enquanto minhas amigas estavam começando a sair ir pra festinha, ter namorado. Nessa época eu não tinha essa opção. Era bem focada no treino, minha mãe não deixava sair quando tinha campeonato, não podia comer isso, aquilo.

Para você, ser uma Gracie é vantajoso ou pesa?
Prefiro pensar só na vantagem de ser Gracie. O peso de ser Gracie é que as pessoas criam uma expectativa em cima de você, sempre esperam que seja o melhor, o campeão, mas estou acostumada. Você é faixa azul, mas todo mundo presta atenção porque você é Gracie. Tento pegar o lado positivo.

"O peso de ser Gracie é que as pessoas criam uma expectativa em cima de você, sempre esperam que seja o melhor, o campeão, mas estou acostumada."

Como é um dia normal na sua vida?
Acordo às 8h, vou para a academia às 9h, treino duas horas. Vou para casa, como e descanso. Treino uma hora à tarde, volto para casa, como e descanso. À noite, faço academia por mais umas três horas: duas horas de jiu-jitsu e uma de yoga.

Que tipo de música você gosta de ouvir antes de competir?
Tenho um playlist com sertanejo, e música baiana.

Que artistas de sertanejo?
Sou apaixonada por sertanejo. Victor e Léo, gosto muito, Bruno e Marrone, Zezé di Camargo e Luciano, gosto de todos [risos]. Perto da luta eu ouço uma música mais forte.

Como você se diverte?
Gosto de snowboard, mas como a gente não tem neve aqui faço kitesurf no Rio, perto perto da minha casa. Comecei faz uns seis meses. Gosto de curtir o dia, ir à praia. Fico lá o dia inteiro! [risos]. O programa da minha família no fim de semana é ficar por lá, andar de kite, surfar. Gosto de curtir as coisas do Rio.

Que cuidados de beleza o jiu-jitsu permite ter?
A única coisa que não pode é ter unha grande. De resto, eu posso fazer tudo o que uma mulher normal faz. Aquela imagem que as pessoas tem da mulher lutadora fortona, com a orelha estourada... Quero mostrar que você não precisa se masculinizar para fazer jiu-jitsu. Faço tudo. Vou para o salão toda semana, faço hidratação, limpeza de pele.

Como você protege suas orelhas?
Quando você estoura a orelha, é como se você tivesse um machucado e ficasse passando a mão na cicatriz o tempo inteiro. Acaba criando uma quelóide, um calo. Normalmente, você continua treinando em cima do machucado. O que eu faço: uso protetor, aí eu não “quebro” a orelha.

E a história de que você pinta as unhas de rosa antes dos campeonatos?
Virou uma superstição. As meninas do jiu-jitsu não tinham cuidado com nada. Era até um pouco assustador. Eu pensei: “Vou tentar dar um toque feminino”. Comecei a pintar a unha de rosa. Toda vez qe vou lutar, pinto. Se não faço isso, me dá até um bloqueio [risos]! Tenho um quimono rosa também.

Pode usar na competição?
Não. Eu treino e dou aula com ele. Meu patrocinador fez um quimono rosa com o meu nome. Em todo lugar que eu vou, tem sempre uma menina com ele. Quando eu comecei no jiu-jitsu, só tinha quimono branco. Aí fizeram o azul e eu tive a ideia: “Vou fazer um quimono rosa”. Mandei tingir.

Como você se veste fora do tatame?
Sou mais básica. Gosto de calça jeans, sapatilha.

Você tem uma marca de roupas também?
É, fiz para meninas que praticam jiu-jitsu. Eu treinava não tinha onde comprar uma roupa para usar embaixo do quimono, para treinar. Lancei para ter uma coisa mais feminina.

E para namorar? Você prefere homens que lutam também?
Meu namorado luta. Acho que fica mais fácil para entender toda essa rotina de treinamentos, viagens. Imagina, eu treinando e o cara querendo sair. Não vou poder pelo cansaço.

Além dele, você teve algum namorado que não era do meio?
Não [risos]. As pessoas ficam meio assim porque pensam: “Vou ter que passar pela aprovação dos tios!”. Isso é o que mais pega. Tanto tio para pedir aprovação, tanto faixa-preta.

Ele foi aprovado sem problemas?
Foi [risos]!

O jiu-jitsu é um meio machista?
Acho que sim. Quando eu comecei a treinar, era a única menina na academia. Não existia nenhuma mulher de destaque dentro do jiu-jitsu. Nos campeonatos, as mulheres lutavam num dia junto com os iniciantes, não tinham espaço que o masculino tinha. Foi melhorando, estamos ganhando mais espaço, mas continuamos excluídas.

Você sofreu preconceito?
Escutava bastante coisa na escola. Era diferente uma menina lutando jiu-jitsu há 15 anos. Escutei bastante: “Isso é coisa de homem”.

Como você se sentia?
Tentava não ligar. Minha mãe falava para eu não me preocupar. Mas eu fiz balé também.

Além de espaço, as mulheres têm mais respeito no jiu-jitsu?
Sim. Mudou bastante. Hoje em dia não escuto mais isso. Talvez porque as pessoas já conheçam meu trabalho, sabem que eu vivo disso. Espero que mude mais, que as outras meninas possam viver do jiu-jitsu e falar que fazem sem sofrer nenhum tipo de preconceito.

O que é preciso para ser uma lutadora?
Técnica, vontade  e o principal é ter a cabeça boa. Independente de você ter treinado, de ter técnica, na hora você tem que ter uma cabeça boa, porque senão seu corpo não responde. Tem a torcida gritando, a tensão do campeonato.

O que você acha de MMA feminino?
Está crescendo no mundo e o feminino está chegando agora. Vai crescer também, mas não sei se pretendo fazer parte disso ou não. Minha cabeça está focada no jiu-jitsu. Já me convidaram, mas estou em cima do muro.

O que você aprendeu com o jiu-jitsu?

Tudo o que eu aprendi no jiu-jitsu tento aplicar para a minha vida pessoal. Apesar de ser um esporte individual, você sempre precisa de alguém para te ajudar. Ao mesmo tempo, você tem que ajudar outra pessoa a evoluir para você melhorar junto com ela. Eu dou aula de jiu-jitsu numa comunidade carente no Rio de Janeiro [em Vargem Grande, na Família Santa Clara] e tento passar isso para eles. Trabalho com crianças e digo para ajudarem o amigo no treino, em casa, na escola. 

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