Relatos de viagem: sobre você ou sobre o que você viu?

por Gaía Passarelli

”Para viajar e não entender, basta ficar o tempo todo olhando pra si. E nem precisa ir muito longe: dá pra errar feio na periferia paulistana ou numa comunidade ribeirinha amazônica”

Há séculos, exploradores adentram terras desconhecidas para voltar com interpretações próprias. Esse tipo de relato é a essência da literatura de viagem. Por isso, não deveríamos nos chocar quando alguém viaja para um país sobre o qual não sabe quase nada e volta escrevendo relatos cheios de mancadas histórico-geográficas, ao mesmo tempo em que se coloca como figura central de uma história que não é sua.

Mas esse é o caso da atriz e escritora escocesa Louise Linton. Ela publicou um livro inteiro sobre seu “papel central” na guerra tribal da África Central no fim dos anos 1990 e vem sendo criticada por sua narrativa inadequada. A história cheia de erros de sua temporada na Zâmbia aos 18 anos é contada em In Congo's Shadow e teve um trecho republicado pelo jornal britânico Telegraph com o título “How My Dream Gap Year in Africa Turned Into a Nightmare” (ou "como meu ano na África se tornou um pesadelo”). A página já saiu do ar, mas você pode ler sobre o caso no Independent e na CNN.

Esse é um problema antigo. Os relatos da Idade Média, da Era dos Descobrimentos ou do período das colonizações, por exemplo, também eram (muitas vezes) exagerados ou simplesmente irreais. E os posts autoindulgentes ou listinhas de melhores sorvetes para comer em [insira aqui sua capital européia de preferencia] são o equivalente de hoje. O caso da escocesa é grave, mas o problema é essencialmente o mesmo: a pessoa passa alguns dias num lugar e volta escrevendo como especialista no assunto.

Se podemos ler Freya Stark, escritora inglesa de viagens que morreu aos 100 anos em 1993, defendendo a presença européia no mundo árabe e relevar seu erro de julgamento, é porque ela é um produto de seu tempo. O mesmo tipo de perdão histórico não cabe em 2016, quando a “Muzungu com cabelos de anjo" (descrição que Louise faz de si mesma) não compreende nada do que viu em seu trimestre de turismo voluntário, mas se imagina peça fundamental de uma guerra que matou mais de cinco milhões de pessoas (em outro país, diga-se).

Louise não é única moça privilegiada que sonha em atravessar o oceano e ajudar desafortunados, não é diretamente culpada por séculos de ocupação branca na África e não é a pessoa bêbada de autoimportância e certa de que sua existência terrena será validada pela decisão de sair da zona de conforto. O desejo dela de falar sobre suas experiências pode ser todo atrapalhado, mas é genuíno.

O problema essencial em seu livro é a incapacidade de olhar o outro. Para viajar e não entender, basta ficar o tempo todo olhando pra si. E nem precisa ir muito longe para não compreender um lugar, claro. Dá pra errar feio aqui na periferia paulistana, numa comunidade ribeirinha amazônica ou no interior da Bahia.

Mais importante é a decisão de um jornal de publicar o artigo. Chegamos num ponto em que “essa mulher passou férias na África e o que ela viu vai te deixar espantado” num jornal importante é algo que acontece. E acontece porque alguém acha válido. Na pressa de publicar qualquer coisa, joga lá no site o relato ou opinião de alguém sem nenhuma preocupação com checagem de fatos e parte pra próxima. "Imagina, é sobre a Zâmbia, geral não sabe nem apontar no mapa.”

Bom, talvez mongóis e chineses não pudessem apontar os exageros de Marco Polo lá no século 14, nem os netos dos Incas estivessem preocupados em contestar a interpretação de Hiram Bingham na Machu Picchu de 1911. Mas, em 2016, um trecho de livro como o de Louise, que (entre outras coisas) erra fatos de um conflito grave, vai despertar a fúria de quem se vê mal representado. A população da Zâmbia, no caso.

“Se há um tipo de narrativa sobre a África que se recusa a desaparecer é a do mito do Salvador Branco, e essa sobrevive apesar de algumas das economias emergentes do mundo estarem no continente e de africanos serem perfeitamente capazes de contarem suas próprias histórias e transformarem suas sociedades,” analisa o Washington Post, tocando no ponto certo.

É necessário que as populações contem suas histórias e que elas sejam lidas e ouvidas. Isso impede que alguém viaje para qualquer lugar para relatar os conflitos locais? Não. Mas, se o viajante em questão é incapaz de ouvir as pessoas e mesmo assim quer falar por elas, então temos um problema. E temos tido esse problema há muito tempo.

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