Quero ser menino

por Natacha Cortêz

Adelaide Ivánova passou meses fotografando dois homens trans em seus processos de transição

Adelaide Ivánova, 30, é brasileira de Recife e desde o começo de 2011 vive em Berlim. Para a Alemanha foi mesmo por amor, dois: a fotografia e Armin. Antes, viveu em São Paulo por uns anos e na cidade trabalhou fotografando moda. Da área, tirou inspiração e um senso estético que dialoga de forma única com seu estilo de imagem e os temas que escolhe. Consegue falar de dores e de alma através de fotos limpas, rosadas, granuladas e simples.

Seu mais recente projeto, “Autotomy is the ability some animals have to change or mutilate their bodies to look like something else and protect themselves from the world and I was amazed to notice that we all do it, not just sea cucumbers” ("Autotomia é a capacidade que alguns animais têm de mudar ou mutilar seus corpos para se parecerem com outra coisa e se protegerem do mundo. Fiquei espantada ao perceber que todos nós fazemos isso, não apenas os pepinos do mar"), foi o primeiro produzido totalmente em Berlim. Até o ano passado, Adelaide ainda teimava em registrar o Brasil, mesmo morando fora do país e precisando fazer longas viagens pra conseguir isso. É o caso de It's ok to be a boy: uma série lindíssima, embebedada por poesia e construída por memórias pessoais fortes, do tipo cicatriz. Nele fotografou seus “pares”, meninas que sofreram violência sexual.

Desta vez, ela ainda trata de sexualidade, mas de uma forma nova. A convite do Centre d'art Passerelle, em Brest, na França, acompanhou por meses a rotina de dois garotos que vivem um processo de mudança de gênero. Eles nasceram com genitais femininos, mas se consideram homens e agora passam por uma transição hormonal.

Para a Tpm, Adelaide contou da experiência de fotografá-los. Falou ainda sobre a vontade de tratar a sexualidade mais uma vez e dos rumos que seu trabalho tem tomado. 

Como surgiu a ideia de fotografar a dupla? Ano passado fomos convidados pela curadora do Centre D'art Passerelle, em Brest (França), para produzir uma exposição coletiva sob o tema "juventude". Dentro desse espectro, cada um podia escolher uma pesquisa de seu interesse. Em princípio eu queria dar continuidade ao tema violência sexual, dessa vez aqui na Europa, mas não encontrei personagens. Em busca de um novo tema ainda ligado à sexualidade, comecei a me perguntar como é a vida de um jovem transexual. A gente vê transgenders maravilhosas como a Lea T. ou Amanda Lepore, mas elas são adultas, parecem estar bem na própria pele. E me intrigava muito pensar em como é passar por duas transições ao mesmo tempo, a da adolescência pra vida adulta, e a do gênero, tudo ao mesmo tempo. Foi aí que encontrei o tema.

Como os conheceu e por que os escolheu? Engraçado, eu nunca quis fotografar meninas-que-viram-menino. Nunca me interessou. Nunca entendi como alguém que nasce mulher pode querer ser outra coisa além de mulher. Então o projeto começou com Grete, que mora sozinha, ganha sua grana como bartender e estudou história da arte. Mas ela mudou de ideia e eu fiquei a ver navios. Aí tentei Kitana, mas a história de Kitana era mais triste, com um amante turco violento e sem estudos, e sem trabalho, e vivendo de seguro desemprego, ela era exatamanete o clichê da "vida dura de travesti" que eu queria fugir. Aí o destino, me ensinando a abrir meus horizontes (mesmo quando eu não quero), agiu: um dia, recebi um email de Michael, simplesmente se oferecendo pro projeto. Ele ouviu falar do meu trabalho na ONG em que é atendido e me escreveu.

Como foi esse tempo fotografando Michael e Kai? Não foi a coisa mais gostosa do mundo porque, para além das questões de gênero, eu me deparei de novo com as questões sociais que queria evitar mas, dessa vez, me deixei levar. Michael e Kai abandonaram suas famílias e os estudos, vivem de ajuda social, não trabalham, não fazem nada e têm um nível de auto-piedade típico das pessoas com baixo nível de escolaridade em países ricos - quanto mais o governo dá, mais eles reclamam e menos agem para mudar a própria situação. Por outro lado, foi maravilhoso poder expandir minha visão do papel desenvolvido pelo corpo na construção da identidade, e poder acompanhar esse processo de maneira tão profunda como é para um transexual. Foi doloroso e muito bonito. Me influenciou bastante, também.

De que forma te influenciou? Estava sob um nível de pressão pessoal tão forte que tive uma crise de ansiedade, fiquei internada e tudo. Mexeu muito comigo, o mistério dessa transformação no corpo, até o nome "trans-gênero" era para mim um mistério, uma coisa inatingível, quase "infotográfavel" e, quando cheguei nessa encruzilhada, de achar que não consegueria contar essa história em fotos, tive um treco. Quando estive internada foi que percebi que era hora de usar o meu corpo e minhas vivências como narrador da história, daí os auto-retratos incluídos na série, as fotos encenadas e de infância, o bolo-de-rolo, etc.

Não é seu primeiro projeto que fala trata sexualidade. Primeiro o das meninas brasileiras que sofreram abuso, agora uma dupla de meninos transexuais. O que te atrai no assunto? E ainda teve o primeiro de todos, sobre androginia, feito em São Paulo em 2010. É claro que sei o que me atrai no assunto: meus traumas. E tudo bem, traumas são fonte de inspiração legítimas pra uma pesquisa em arte. O que eu tento e espero conseguir evitar é que o resultado final seja autoterapêutico. O processo é autoterapêutico, mas o resultado tem que ser universal. Mas o que me encanta para além de mim mesma, é a sexualidade ou desejos sexuais como ferramenta de autocompreensão.

Mesmo quando retrata temas polêmicos e fortes, suas fotografias continuam com cores leves, luz rosada e cenas simples e limpas. Como funciona esse diálogo? Eu acho pouco desafiador escolher um tema complexo e tratá-lo com complexidade. É a saída mais fácil: fotografar algo obscuro obscuramente. O desafio está exatamente em usar essa ambivalência, trabalhar em cima dela. Ok, eu tenho aqui na minha frente uma menina que foi molestada aos 9 anos e agora ganha prêmio de melhor atriz em festival de cinema. É lindo e, se as pessoas são tao inspiradoras, não tem como eu fotografá-las de outro jeito.

O que te inspira para criar essa estética? Eu adoro fotografia de moda. Quando é boa, não tem melhor. Mas o que mais me inspira é literatura, o exercício de criar imagens mentais pras coisas que um autor descreve é de um imenso valor na hora de fotografar.

Vai lá: adelaideivanova.com

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