Qual é a sua cara?

Nina Lemos
Bia Abramo

por Nina Lemos
Bia Abramo
Tpm #36

Boca de Angelina Jolie, nariz de Jennifer Aniston, sobrancelha de Catherine Zeta-Jones. Hoje, clínicas de cirurgia plástica são capazes de “acertar” seu rosto. Será que teremos todas a cara da Barbie?

Se você visitar consultórios de cirurgiões plásticos de São Paulo e conversar com os médicos, vai se sentir dentro de programas como Extreme Makeover, que mostram o antes e o depois de gente que procura ajuda médica porque não está satisfeita com a própria aparência. Toda a odisséia parece rápida e fácil como uma ida ao shopping center para reformar o guarda-roupa. Fala-se com tranquilidade de boca da moda, nariz mais procurado, novas técnicas de enxerto e por aí vai.

Quem folheia as revistas de celebridades e se sente mal por não ter a boca tão carnuda quanto a da estrela da novela certamente vai se sentir aliviada após consultar um cirurgião e descobrir que nem todo mundo nasce com os lábios da Daniella Cicarelli. Boa parte daquelas mulheres famosas provavelmente injetou alguma substância com nome bizarro na boca. Se você quiser, pode fazer o mesmo fácil, fácil. “A boca da moda é grande, bem beiçuda”, ensina o cirurgião plástico Murillo Ribeiro, da Clínica Vitalitá, nos Jardins, mesmo bairro nobre paulistano onde ficam lojas de grifes sofisticadas como Armani e Versace.

Nariz parcelado

Pois é. Na era da imagem, não são só as vitrines que ditam o que deve ser usado. Agora é preciso redesenhar o corpo e o rosto também. Os cirurgiões estão ao alcance de todos e parcelam seu novo nariz em prestações a perder de vista. Insatisfeita com o tamanho do seu queixo? Peça para deixá-lo mais quadrado e fique super na moda! Não gosta do seu perfil? Que tal mudar nariz, boca e queixo de uma vez só? A perfiloplastia é uma das práticas mais procuradas por adolescentes no consultório de Paulo Jatene, em Higienópolis, outro bairro nobre de São Paulo. As meninas ganham a operação de presente de aniversário dos pais. Sim, em vez de festa ou de viagem para a Europa, há quem prefira comemorar a data internada em hospital.

Quando você liga a TV, vê várias pessoas que entraram nessa onda. Mostrar homens e mulheres transformados (ou em pleno processo) virou tendência. Use o controle remoto e acompanhe gente sendo cortada e serrada em programas como Extreme Makeover e Beleza Comprada. No fim, todos se dizem satisfeitos por terem sido mexidos e remexidos.

Numa visita ao consultório do doutor Jatene, a reportagem da Tpm encontrou na sala de espera uma paciente de 20 e poucos anos com os olhos roxos. Tinha acabado de colocar silicone nos seios e aproveitou para fazer uma blefaroplastia (cirurgia das pálpebras). Mas a operação mais popular por lá é a rinoplastia (procedimento que muda o nariz serrando o osso). Essa também é a cirurgia que mais cresce no Brasil, de acordo com Oswaldo Saldanha, Secretário Geral da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Ter o nariz dos sonhos já superou até o ideal de ficar mais jovem fazendo um lifting. Mas fiqueatenta porque as preferências mudam em ritmo frenético. Há três anos, o grande barato era fazer lipo. Hoje, a ordem é alterar o rosto. De 2001 para cá, as plásticas faciais aumentaram 50% na clínica de Jatene. As rinoplastias já somam 30% dos procedimentos. Em segundo na preferência das clientes vem o lifting (rejuvenescimento facial) e, em sua cola, a mentoplastia (mudança de queixo).

Estranhos no paraíso

“Hoje em dia só é complexado quem quer”, diz o cirurgião. Mas será que é assim mesmo tão simples? “Buscar felicidade mudando a fisionomia é querer preencher um vazio existencial de forma milagrosa”, alerta Alexandre Sadeh, psiquiatra do Hospital das Clínicas. Faz você parar para pensar. Quantas vezes não resolvemos ir às compras apenas porque estávamos entediadas e acabamos voltando para casa com o gosto do prazer efêmero na boca? Comprar aquele sapato tão desejado nos deu quanto? Dez, quinze minutos de satisfação? E depois? Com o boom das plásticas hoje um nariz reformado custa tanto quanto um sapato novo. E agora, Maria?

A banalização das cirurgias preocupa o psiquiatra Táki Cordas, coordenador do Ambulim (Ambulatório de Bulimia do Hospital das Clínicas da USP). Da mesma forma que há quem seja viciado em compras, existe um número considerável de pessoas que não consegue aceitar a própria imagem e quer obsessivamente transformá-la. Essa doença, chamada de dismorfofobia, é semelhante à anorexia. Só que, em vez de ficar maníaca por magreza, a pessoa malha exageradamente. Ou faz várias plásticas. Nos casos mais graves, pode-se querer parecer com outra pessoa, em geral, com um ídolo. A patologia foi exibida mês passado pela MTV, na série I Want a Famous Face. “Essas pessoas não estão satisfeitas com a própria identidade. Só que a identidade não se muda nem se perde”, diz Sadeh.

Afinal, será que estamos nos submetendo ao bacanal do botox porque ele agora é acessível, ou será que por trás da corrida pelo novo nariz existe algo mais arrepiante? Não queremos mais ser quem somos? Estamos tentando resolver crises de identidade com enxertos de colágeno? Com o surgimento de coisas como “a boca da moda” não acabaremos ficando todas iguais? Para onde estamos mandando uma de nossas maiores riquezas, a que atende pelo nome de diversidade?

 

Crítica: deformador de opinião

Quase simultaneamente a telinha foi tomada de assalto por seis programas que mostram a vida de quem se submete a cirurgias plásticas. Colocamos a crítica Bia Abramo para assistir a todos. A conclusão? Não há martelinho de quebrar nariz que derrube o cinismo do discurso sobre as transformações apresentadas em reality shows como Extreme Makeover

O que mais horroriza neste movimento combinado da mídia e de uma parte dos médicos para naturalizar e glamorizar a cirurgia plástica não é a violência das cenas realistas de cortes e suturas. Isso é simplesmente repugnante. O problema é, com trocadilho e tudo, a cara-de-pau. Não há martelinho de quebrar nariz – sim, às vezes há que se esmigalhar os ossos para fazer uma cirurgia dita “corretiva” – que derrube o cinismo do discurso sobre a cirurgia plástica.

Em primeiro lugar, a maldita auto-estima é invocada como justificativa suficiente para qualquer desvario estético. No hediondo Extreme Makeover (Sony), essa é uma das palavras que mais se ouvem – a outra é perfeito/a. Claro que a tal auto-estima para eles é entendida simplesmente como “sou infeliz porque meu nariz é grande, meus dentes são tortos ou tenho menos peito que uma pinup”. Logo, reduzam-se os narizes, consertem-se os dentes, entupam-se os peitos de silicone e, como num passe de mágica, desaparece a infelicidade.

O segundo dos mitos que alimentam essa insanidade é a perfeição. No I Want a Famous Face(MTV), a perfeição não apenas existe, como tem nome e sobrenome: Britney Spears, Elvis Presley. A premissa já é de uma maluquice ímpar – você pode se transformar em outra pessoa. Basta copiar o peito, o nariz, o queixo e a maquiagem de alguém famoso, que automaticamente sua vida besta fica mais próxima do luxo e do sucesso de seu ídolo.

Médicos ou monstros?

Outra coisa chocante é que os programas têm a participação de gente que estudou medicina e odontologia, ou seja, gente cuja relação com os corpos e seus formatos deveria ser menos mentirosa. Eles aparecem no vídeo, tanto no Extreme Makeover quanto em I Want a Famous Face. Em alguns casos, como em Doctor 90210 (E!), são a estrela principal. O programa, que estréia em outubro, relata o dia-a-dia cheio de glamour de um cirurgião plástico de Beverly Hills. Os médicos parecem muito profissionais em seus jalecos, mas mentem descaradamente porque prometem uma coisa que não existe. Pois está na teoria que funda as ciências biológicas modernas, a teoria da evolução, a noção de que os organismos nunca ficam prontos, acabados, perfeitos. E que aproveitam justamente as diferenças e os desvios para evoluir. Quem é perfeito não precisa evoluir, certo?

O envolvimento de médicos e dentistas é chocante, mas de jornalistas e, digamos, profissionais do mundo do entretenimento não o é menos. Para continuar dormindo tranquilos, eles costumam argumentar duas coisas: a) seus programas são imparciais porque fazem um registro das “desvantagens” dos procedimentos

cirúrgicos; b) eles estão dando à audiência o que ela pede. Como se o registro entre o preguiçoso e o burocrático do “outro lado” bastasse para contrapor-se ao rolo compressor dos padrões de beleza. E quanto à audiência, bem, as execuções públicas no século 18 também juntavam multidões...

Operar é preciso

Nos programas, a auto-estima é restaurada num passe de mágica. Esse é o terceiro pilar do edifício da empulhação plástica: os procedimentos médicos equivalem a varinhas de condão, resolvem seus problemas emocionais, profissionais, afetivos, existenciais como que por encanto. Diante da opção mais sensata, rápida e relativamente barata do consultório, quem é que é doido de preferir os caminhos muito mais tortuosos da vida? Operar é preciso, viver não é preciso, parecem dizer esses médicos-monstros.

Recentemente, a Sony exibiu uma edição especial chamada Life After Extreme Makeover, em que operados faziam um balanço “sincero” de como a vida tinha mudado depois das transformações. Às tantas, uma delas diz que, graças às torturas pelas quais tinha passado, agora podia “olhar diretamente para a câmera”. Não para si mesma, nem para o outro e nem mesmo para o espelho. É para uma câmera imaginária e onipresente que se inventa essa beleza

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