Por onde saem os filhos?

por Natacha Cortêz
Tpm #146

A natureza diz que é pela vagina. Mas, se considerarmos o número de cesáreas feitas no Brasil, podemos dizer que é por um corte na barriga

Segundo informações do Ministério da Saúde, um dos principais desafios das políticas voltadas para a saúde da mulher é a mudança do modelo que fez do Brasil campeão disparado em cesáreas. A maior pesquisa nacional já realizada, Nascer no Brasil, publicada em 2014 pela Fundação Oswaldo Cruz, confirma a preocupação do órgão: cruzamos a linha dos 52% de partos cirúrgicos na rede pública. Nos hospitais privados, o índice pode ultrapassar os 88%. Percentuais muito distantes dos 15% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). São quase 1 milhão de brasileiras submetidas a partos cirúrgicos todos os anos. Contudo, o mesmo estudo diz: 73% das entrevistadas declararam desejar o parto vaginal no início da gravidez.

“São quase 1 milhão de brasileiras submetidas a partos cirúrgicos todos os anos”
.

O que acontece para que essas mulheres não consigam realizar o parto que queriam? A pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado, da Fundação Perseu Abramo, de 2010, dá uma pista: uma entre quatro brasileiras disse ter sofrido violência no parto. E, como explica a obstetra Carla Polido, “violência obstétrica vai muito além de tratamento desumano. Ser privada do contato com o bebê ou receber ocitocina sintética para acelerar o trabalho de parto apenas por conveniência médica também é violência”. Ao se depararem com as duas opções, cesariana e parto normal, ambas permeadas por violência, não é de espantar que as brasileiras prefiram a alternativa mais rápida – no caso, a cirúrgica. “Entre ser maltratada por 12 horas e ser maltratada por meia hora, qual parece mais fácil?”, indaga Raquel Marques, sanitarista e presidente da Artemis, instituição que promove políticas públicas para um nascer mais digno.

Dois filhos > uma cesárea e um parto normal

“Tenho pavor de anestesia. Fiz tudo pra poder ter um parto normal na primeira gravidez, esperei entrar em trabalho de parto, fiquei 12 horas nele, mas não tive dilatação. Na época, meu médico disse que meu filho estava em sofrimento fetal. Fizemos uma cesárea. Chorei muito antes da cirurgia, pois queria muito o parto normal. Na cesárea, tive uma reação terrível à anestesia e odiei o pós- operatório. Fiquei 40 dias em casa sem conseguir me esticar, não conseguia fazer nada. Na minha segunda gravidez, novamente queria parto normal, mas não criei expectativas. Acabei trocando de médico, escolhi um defensor do parto normal e fiquei em uma sala de parto humanizado. Foi muito cansativo, mas faria tudo de novo 10 mil vezes. Ouvi muita história bobona pra me dar medo, mas meu médico me tranquilizou em relação a esses mitos todos. Foi aquele parto de novela mesmo, demorado, exaustivo, mas nunca pensei em desistir. No dia seguinte eu estava de pé, já andava e brincava com meu filho mais velho. Até o leite desceu mais rápido. Tive as duas experiências, e não tem comparação, o parto normal é muito melhor. Se precisasse ter outra cesárea, não sei se gostaria de ter outro filho.” WANESSA CAMARGO, 31 ANOS, CANTORA  

Dois filhos > dois partos normais no hospital

“Sempre me informei sobre parto. Nascer é um sofrimento no mundo ocidental. O ar-condicionado gelado, aquela luz azul e a instrumentalização hospitalar deixam tudo mais cruel. O que pude fazer pra deixar meus partos mais aconchegantes, fiz. Eu tinha 23 anos na primeira gravidez, e 37 na segunda. Os dois partos foram normais e em hospitais. Eu queria ter todos os recursos necessários caso acontecesse alguma coisa, sabe? Mas pedi que demorassem pra cortar o cordão umbilical, abaixassem a luz, desligassem o ar-condicionado e respeitassem meu tempo. Acabei tomando anestesia em um último momento, fiz uma força e, a Stella, minha segunda, nasceu sem dificuldade. Fiquei muito tranquila nas duas vezes e acho que isso ajudou muito. Me preparei bastante para poder fazer os partos. Tenho amigas bem jovens que já deixam a cesárea marcada, não entendo isso.” LETÍCIA SPILLER, 41 ANOS, ATRIZ

“A brasileira está largada à própria sorte quando o assunto é assistência ao parto”
.

Parto não é produto
"A brasileira está largada à própria sorte quando o assunto é assistência ao parto, sejam aquelas que usam o Sistema Único de Saúde ou as que usam a rede privada através de convênios médicos. Não existem notícias boas para essas mulheres. É muito triste quando o parto domiciliar é falta de opção, e não escolha, por exemplo. Quando uma mulher mora em uma área afastada e não consegue chegar a um hospital, se ela tiver pressão alta, se for gravidez de gêmeos, não pode ser domiciliar. Casos assim exigem uma UTI neonatal e outra para a mãe. A questão está na maneira como o parto é tratado. Quando temos um problema e não reclamos por políticas públicas que melhorem a vida de todo mundo, passamos a reivindicar pelo que pagamos e pelo que podemos comprar. Enquanto nos portarmos como consumidores, seremos tratados como tais e só receberemos serviços à medida que somos economicamente interessantes.” RAQUEL MARQUES, PRESIDENTE DA ARTEMIS, INSTITUIÇÃO QUE PRESSIONA O PODER PÚBLICO E PROMOVE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA UM NASCER MAIS DIGNO

Insegurança médica
“Os estudantes de obstetrícia saem da faculdade como excelentes cirurgiões e com pouquíssimo conhecimento da realização de um parto vaginal, saem com menos mão e superinseguros. Não podemos negar que a cesariana também é um procedimento mais interessante tanto para o médico quanto para o hospital, por ser um evento previsível, com hora marcada, rápido e passível de maior controle. Porém, deveria ser uma alternativa de emergência para salvar vidas. Ainda temos o fato de as brasileiras serem pouco informadas a respeito do parto e acreditarem em falácias que envolvem sobretudo o medo de uma dor extrema e o da alteração de sua vagina.

A queixa de ‘alargar’ a vagina é comum, mas para isso existe a fisioterapia urogenital, que parece pompoarismo, só que tecnológico. Toda mulher tem acesso a ela, do SUS ao Einstein. Além do mais, o parto vaginal implica em menores riscos de morte para mulheres e crianças, aleitamento prolongado e melhor prognóstico gestacional para futuras gravidezes. O sofrimento fetal, só possível com o trabalho de parto, produz uma membrana que protege o brônquio da criança. Outro benefício é que esse parto é apertado para o bebê, a pressão no seu tórax faz com que ele elimine o líquido amniótico que fica retido nas vias aéreas superiores.” RENATO KALIL, GINECOLOGISTA E OBSTETRA DO HOSPITAL ALBERT EINSTEIN EM SÃO PAULO 

Um filho > parto em casa (e esperando o segundo)

“Desde que conheci o parto domiciliar, soube que era pra mim. Me sentia preparada por conta de um pré-natal bem-feito e das leituras que fiz sobre o assunto. Uma verdade: imaginava que teria muito menos dor. Ela é como uma cólica forte, só que por muito tempo. A dor vale a pena, faz parte do processo de se tornar mãe. Meu parto foi assistido por uma doula e duas parteiras, mas, na hora que meu filho nasceu mesmo, só estava a doula. Nem meu marido estava no quarto. O nascer domiciliar é completamente natural, não há medicação alguma. Uma mulher que quer parir em casa quer viver a dor e o parto.Otesãoquevocêtemao viver um parto natural é o de se sentir protagonista daquilo. Estou grávida novamente, vai nascer em breve, e quero ter em casa outra vez, não abro mão.” MARIANA MAFFEI, 31 ANOS, EMPRESÁRIA

Um filho > um parto roubado 

“Assim que soube que estava grávida de minha primeira filha, prometi a mim mesma: faria parto normal. Passava os dias lendo sobre tudo que se relacionava a parir. Queria me munir de informações, porque sabia o quão difícil era conseguir realizar o procedimento no Brasil. Apesar de ter seguido os passos recomendados para conseguir um parto normal, minha filha nasceu por uma cesariana. Desnecessária, como descobri mais tarde. Foram 12 horas de trabalho de parto, as contrações corriam como o esperado e tudo caminhava para o desfecho que planejei. Ainda assim, minha vontade foi negligenciada. Sentia minha filha fazendo força pra sair. Então, uma enfermeira brutalmente proibiu que eu ficasse de cócoras, uma necessidade que sentia. Estava vulnerável e não soube me defender. A justificativa que recebi foi que meu bebê passava por sofrimento fetal e uma cesárea precisava ser feita com urgência. Não vi saída a não ser autorizar o procedimento. Fui levada para a sala de cirurgia e em meia hora tudo aconteceu. Tive um parto roubado. Depois, analisando o prontuário, descobri que meu bebê tinha uma frequência cardíaca perfeita para o parto normal. Me senti enganada. O tratamento que tive foi, sim, violência obstétrica.” JULIANA LEANDRO, 32 ANOS, BANCÁRIA 

Violência obstétrica vai muito além de tratamento desumano
“A violência obstétrica é consequência direta da medicalização do parto. Durante anos, intervenções no processo fisiológico de nascimento vêm sendo realizadas como regra de assistência, quando deveriam ser utilizadas apenas de acordo com necessidades específicas. O uso inadequado de procedimentos caracteriza a violência obstétrica, que vai além de tratamento desumano. Uso de soro com ocitocina sintética para aceleração do trabalho de parto por conveniência médica e hospitalar, exames de toque sucessivos feitos por diferentes pessoas, episiotomia (corte entre a vagina e o ânus para aumentar canal de passagem do bebê) e privação do contato imediato entre mãe e filho após o nascimento são formas de violência. O parto ‘humanizado’ (termo, na minha opinião, equivocado e sujeito a interpretações dúbias) é o parto em que nenhuma intervenção é feita sem necessidade, um parto em que a mulher é corresponsável e, pactua todas as condutas e é a personagem principal do processo que gira em torno dela e da criança. Não sou de forma nenhuma contra a cesariana com indicação médica, mas não realizaria o procedimento eletivo sem motivo. Acredito que as mulheres têm o direito, sim, de escolher a cesariana. Mas, para a opção consciente, elas precisam saber de todos os riscos envolvidos, e, na minha experiência, sei que mulheres informadas não escolhem cesarianas.” CARLA POLIDO, OBSTETRA E PROFESSORA ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS 

Quatro filhos > dois partos de cócoras e dois por cesária

“Quando engravidei pela primeira vez, quis parto normal. Doeu muito. Menos de dois anos depois tive meu segundo filho, em hospital, com a mesma médica, novamente de cócoras. Imaginava que quando tivesse o terceiro seria na água. O pré-natal não foi tão bom como os dos primeiros e fiquei apreensiva. Tive um mal-estar com 40 semanas e acabei no hospital. Lá, me consultei com um cesarista assumido que me explicou como seria se escolhesse a cirurgia. Optei pela cesárea. Foi muito tranquilo. A recuperação foi boa e eu pude entender as mulheres que escolhem o procedimento. Quando engravidei pela quarta vez tive certeza: faria cesárea, mesmo se não tivesse indicação. Só não esperava entrar em trabalho de parto dois dias antes, foi a primeira vez que isso aconteceu, meus dois primeiros foram induzidos. Cheguei ao hospital com contrações e desabei diante do médico. Disse a ele: ‘Pelo amor de Deus, não me obrigue a ter um parto normal, eu já passei por isso’. Ele pediu ao médico de plantão, que aceitou operar. Passei mal na mesa de cirurgia e fiquei com medo de morrer. Minha pressão caiu muito e achei que não conheceria minha filha. Se recomendo parto normal ou cesária? Depois de tudo que passei, acho que parto é igual a orientação sexual, não se deve opinar na do outro.” LILA ANANDA, 25 ANOS, ARTISTA PLÁSTICA 

O corpo é poderoso
“No Brasil, muita coisa precisa mudar. Os planos de saúde precisam adequar suas estratégias e tornar o parto normal mais atraente para o médico conveniado. Os hospitais precisam criar estruturas facilitadoras de um parto humanizado, disponibilizando recursos, como banheira, bola, banqueta e um ambiente acolhedor para toda a família. Os profissionais de saúde precisam reciclar suas práticas e prestar um atendimento coerente com a medicina baseada em evidências, que está de acordo com tudo o que é preconizadopelo movimento da humanização do nascimento. As agências reguladoras precisam fiscalizar e punir as cesarianas e intervenções realizadas sem uma boa indicação. Mas, principalmente, as mulheres precisam derrubar mitos e medos, exigir seu direito de serem respeitadas e acreditar mais na natureza e no poder de seu corpo.” ÉRICA DE PAULA, PSICÓLOGA, DOULA E PRODUTORA DO FILME O RENASCIMENTO DO PARTO

fechar